Novembro de 1965: O segundo filme dos Beatles, Help, estreava no Rio e eu estreava na Manchete. Depois de uma tranquila carreira na Gazeta do Povo, iniciada aos 16 anos na minha Curitiba natal, e de dois vitoriosos anos no Centre de Formation des Journalistes em Paris e três anos no Serviço Brasileiro da BBC em Londres, eu me via na estaca zero da profissão e num outro país: o Brasil da ditadura militar. Nada mais hostil a mim, descendente de velhos anarquistas italianos.
Na Manchete, um estranho no ninho, fui encaixado na categoria de repórter especial porque falava várias línguas. Mas nada disso importava. Naquela casa de loucos, a ordem era o caos. Foi assim que, à hora do almoço num dia do fechamento da revista, recebi a incumbência de entrevistar Roberto Carlos sobre o novo filme dos Beatles. Como chegar ao Rei, que começava a se tornar uma figura inacessível? Naquele justo momento ele estava gravando seu programa na Rádio Guanabara, num arranha-céu da Cinelândia ao lado do Teatro Municipal. Tive de romper a barreira de uma turba de tietes (já não as chamavam mais de macacas de auditório) até chegar ao Rei. Ao contrário do que eu temia – e com uma simplicidade plebeia – topou me acompanhar até o Cine Bruni, na Praia do Flamengo, onde passava Help. Erasmo Carlos, seu parceiro no programa Jovem Guarda, da Record, que estreou em agosto daquele ano, também tripulava o conversível. A tarimbada fotógrafa Eveline Muskat sabia que tipo de imagem emplacava página dupla na revista e ordenou a RC que ficasse de pé no seu carrão conversível, com os braços abertos para a marquise ao fundo da foto com as letras garrafais HELP • SOCORRO • OS BEATLES.
Agora era só voltar à redação e “bater” a matéria na velha Remington. Tarefa aparentemente fácil, se não envolvesse os novos deuses da canção, no caso o Rei em pessoa. Pouco tempo depois, Chico Buarque estourava com A Banda e a Manchete encomendou um perfil literário do jovem “cantautor” ao poeta Ledo Ivo, renomado tradutor de Rimbaud (autor de Le Bateau Ivre, que os invejosos da redação chamavam de Le Bateau Ivo.).
Inseri o nome do Ledo Ivo porque ele é praticamente o personagem principal dessa história. Repórteres de elite como ele e outro poeta, Homero Homem, costumavam chegar à redação por volta das onze horas, tomar uns cafezinhos, jogar conversa fora e subir para o almoço no oitavo andar às treze horas. Não havia ar condicionado em Frei Caneca e ventiladores com pás enormes como hélices de avião, tentavam em vão aliviar o calor. Ao chegar, os jornalistas imediatamente se desfaziam dos seus paletós, que colocavam em cabides num closet à entrada da redação, Quando parti esbaforido atrás de Roberto Carlos, peguei às pressas meu paletó de tropical cinza e o vesti atabalhoadamente enquanto embarcava no carro da reportagem que nos levaria na caça ao Rei. Só nos corredores da Rádio Guanabara, ao levar a mão ao bolso em busca do meu caderninho de notas, me dei conta de que tinha pegado o paletó errado. O tropical cinza superpitex ejetou uma polpuda e surrada carteira de couro preta, com todos os documentos, dinheiros, talões de cheque e fotos de família a que tinha direito. Numa das fotos, Ledo e Leda, o casal. Apavorei.
Ô cara azarado! Eu tinha de pegar logo o paletó do Ledo Ivo! Alagoano com fama de mau de humor e bom de peixeira, autor do romance Ninho de cobras... Aquela gafe certamente iria dar pano pra manga no meio jornalístico, entraria sem dúvida para o anedotário dos focas.
De volta à redação, senti um sopro de esperança: os comensais ainda não haviam voltado. Adolpho Bloch caprichava nas suas cozinhas e dizia que “a Manchete era um grande restaurante que, por acaso, imprimia revistas...” Recoloquei cuidadosamente o paletó da discórdia no seu cabide e respirei aliviado. Ledo Ivo entrou para a Academia Brasileira de Letras – seu grande sonho – na sua 9ª tentativa, em 1986. Imortal, morreu em Sevilha aos 88 anos, em 2012, sem nunca ter chegado a saber das aventuras em que o seu paletó havia se metido meio século antes naquela conturbada hora do almoço em Frei Caneca.
2 comentários:
Ledo Ivo, alagoano de origem, nordestino tarimbado, dava expediente de redator, na revista O Cruzeiro, numa sala pequena onde existia prateleiras de livros, sala que pretendia ser a Biblioteca da revista e Ledo Ivo o seu bibliotecário. Ele chegava bem cedo e fechado na sua sala, poucos percebiam a sua existência, até porque, antes do meio dia não se encontrava mais o Ledo Ivo. Claro ele tinha outro contrato de trabalho com a Bloch Editores S/A e como o conta o então repórter especial Roberto Mugiatti, Ledo Ivo almoçava, todos os dias no restaurante do Adolph Bloch.
O restaurante da Bloch, desde a Frei Caneca, sempre atraiu uns intelectuais e artistas. Não vou falar em nomes mas um deles, famosos como vilão em filmes até internacionais, era figura costumeira lá. Descolava um bom almoço toda semana.Tempos depois, a Bloch criou um ticket para funcionários e a boca livre ficou mais difícil. Mas boa parte do Rio de Janeiro famoso forrou o estômago com comida do chef Severino. Era até comum alguns entrevistados se oferecerem para dar entrevista na própria Bloch. O horário sugerido? Umas onze horas. Ao fim da entrevista, já que tava lá, dava uma parada no terceiro andar e tirava a barriga da miséria.
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