segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

"A outra face das fotos": no livro do fotógrafo Aguinaldo Ramos, que trabalhou na Manchete e no JB, a vida por trás das imagens...


O autor de "A outra face das fotos", revela a história surpreendente dessa foto que foi publicada na revista Fatos & Fotos. Foto de Aguinaldo Ramos reproduzida do livro "A outra face das fotos"

Foto de Aguinaldo Ramos reproduzida do livro "A outra face das fotos"

Brizola, 1982. Foto de Aguinaldo Ramos reproduzida do livro "A outra face das fotos" 
por José Esmeraldo Gonçalves
A fotógrafo Aguinaldo Ramos lançou recentemente o livro “A Outra Face das Fotos – Reminiscências e elucubrações sobre a arte e a prática do fotojornalismo”. No texto de apresentação, o autor define o livro como “uma recuperação afetiva” do tempo em que trabalhou como fotojornalista na imprensa carioca. Aguinaldo conta que, depois de fazer os cursos básicos do Senac e de um período como assistente do fotógrafo Marcelo Ribeiro, em Niterói, encarou o “vestibular” que era o processo de seleção de candidatos ao Curso Bloch de Fotografia. A comparação não tem nada de exagerada: eram cerca de 850 postulantes a 30 vagas e, destes, apenas dez eram convidados a um estágio de três meses na editora. Aguinaldo acabou trabalhando por quase uma ano para as revistas Fatos&Fotos, Manchete, Amiga, Manchete Esportiva, Desfile, entre outras publicações da Bloch. “Foi uma experiência marcante”, diz. “Estava cercado por expoentes da Fotografia, a começar pelo chefe, Gervásio Batista, hoje o decano do fotojornalismo brasileiro, e mais Indalécio Wanderley, Antonio Rudge, Gil Pinheiro, Sérgio de Souza e os mais novos e já prestigiados Frederico Mendes e Carlos Humberto TDC, entre muitos outros, e lamento não citar cada um”, completa.  
O passo seguinte, após a temporada nas redações do Russell, foi o Jornal do Brasil, onde trabalhou durantes seis anos, até 1986, quando deixou o jornal para abrir uma agência de fotografia, a Fotossíntese, através da qual prestou serviços ao Estadão, Folha, IstoÉ, Veja e outros veículos, antes de se fixar no mercado corporativo. Atualmente, Aguinaldo volta-se para os interesses acadêmicos e literários, “que ajudaram a resultar neste livro”, explica. Em um dos capítulos, Aguinaldo revela um dilema relativamente comum entre os fotógrafos: interferir ou não no objeto ou situação fotografada.  Mas não é apenas uma questão de fotógrafos. Há casos folclóricos de repórteres que fantasiaram excessivamente suas narrativas. 
Enquanto lia “A outra face das fotos”, lembrei-me de um caso que o tempo tornou mais engraçado do que criticável.  

Folclore de redação: uma questão de ética ou de etílico?

Certa vez, um repórter de muita imaginação e teor alcoólico eventualmente acima do resto da humanidade viajou para a Amazônia e o Centro-Oeste. Sua pauta era a vida nos garimpos ilegais. O parceiro era um fotógrafo brilhante que sofria de surdez quase total mas se recusava a usar aparelho auditivo. A dupla ficou fora por mais de duas semanas, o que era normal, mas inteiramente fora de contato, o que era preocupante. Quando finalmente eles voltaram e entregaram texto e fotos, o editor ficou intrigado: estavam lá as cenas do garimpo, alguns depoimentos, imagens das bombas hidráulicas que reviravam o fundo dos rios, barracos, garimpeiros preparando o rango, mas especialmente nos trechos mais dramáticos (garimpos ilegais costumam ser ambientes extremamente violentos e precários) as fotos não combinavam em nada com a reportagem. Como o repórter alegou que estava com uma perna machucada e pediu dois dias de folga, o editor recorreu ao fotógrafo em busca de explicações. Este, relutante, disse que nada vira e, claro, nada ouvira. Não quis “entregar” o colega, mas deu a entender que algo não tinha corrido muito bem. Normalmente, em matérias nessas regiões de difícil acesso, a equipe solicitava algum apoio logístico a órgãos federais ou estaduais, além de entrevistar autoridades responsáveis pelo problema ou tema focalizados. Uns dois dias depois da volta da dupla, um secretário de governo liga para a redação preocupado porque o repórter que o entrevistou lhe pareceu extremamente “alegre”, além de não ter anotado nada. O fato de o tal secretário ter ligado apenas para o editor da revista, e não para um dos diretores, somado à boa imagem do repórter (sóbrio, era um excelente profissional) contribuiu para aliviar a situação, ninguém foi demitido, mas a reportagem não foi publicada. O jornalismo perdeu, então, um eletrizante relato do repórter, com tons de Hemingway,  contando como esteve encurralado no meio de uma ponte de madeira pelo tiroteio entre grupos rivais de garimpeiro. Segundo ele, os garimpeiros usavam fuzis M-16, não por acaso as armas adotadas pelos marines na guerra do Vietnã. O repórter, segundo o texto, ainda foi sequestrado e mantido em um cativeiro, na verdade um buraco cavado na floresta, onde passou três dias comendo apenas tapioca. Havia na matéria uma personagem, uma “prostituta linda”, que seria uma americana procurada pela Interpol e que havia se apaixonado por um garimpeiro que, por sua vez, era ex-guerrilheiro do Sendero Luminoso. A "matéria" era ótima, dava um filme, prendia o leitor desde a primeira linha. Infelizmente, não havia câmera capaz de captar as cenas tão imperdíveis quanto imaginárias. Além disso, onde estaria o fotógrafo? Segundo a versão que se espalhou depois pelos corredores, tentando convencer o repórter a deixar a “marvada” de lado e apurar o mínimo que fosse da “vida no garimpo”.  
Era conhecida também a tática de um outro fotógrafo que costumava ser escalado para cobrir consequências de enchentes e desabamentos e levava na mochila uma boneca meio desgrenhada,  já previamente enlameada. No local, assim como quem não queria nada (apenas uma foto de abertura) deixava a boneca cair na ribanceira. Depois, era só enquadrá-la em primeiro plano, com a devastação ao fundo. Em graves acidentes, uma ligeira mexida na cena ajudava a dramatizar a imagem: um par de sapatos, um pé caído, o outro improvavelmente pousado no asfalto à frente do carro, ônibus ou trem destruído garantiam a composição e a profundidade da foto. São “causos” que viraram “lendas urbanas” contadas e recontadas no Lamas, no Capela, no Planalto e outros bares frequentados pela rapaziada que trabalhou na Manchete.

O 'morto' muito vivo na foto de abertura 

No livro, Aguinaldo Ramos dá sua contribuição ao chamado folclore de redação. Ele conta que ao fazer uma reportagem sobre criminalidade para a Fatos & Fotos percorreu a Baixada Fluminense e o subúrbio do Rio durante dois ou três dias sem conseguir uma cena impactante. “No dia do fechamento,” – relata – “mais uma vez, saímos em direção a Nova Iguaçu. Chegando à Avenida Brasil, o repórter (e vamos deixá-lo incógnito...) indicou ao motorista: ‘Vira aí, vamos para a Quinta da Boa Vista’. (...)  “Sim, mas eu preciso de uma foto de abertura”.  ‘Deixa comigo”, disse o repórter. Na Quinta, deu-se a “armação”. O repórter pediu ao motorista que posasse teatralmente, sem camisa, largado na grama, mãos amarradas, como se fosse mais uma vítima fatal da violência urbana. “No correr dos preparativos”, narra o fotógrafo, “vieram chegando uns garotos curiosos, um deles de bicicleta, e pararam ao fundo”. Com todos os elementos em foco, Aguinaldo registrou a cena.  “Nem perguntei que história o repórter  contou ao editor. Saiu publicada em página dupla, para orgulho do motorista, que vivia (ainda bem) mostrando a todos. O repórter teve que dar muitas explicações aos “coleguinhas”, repórteres concorrentes, que não tinham registro daquele “presunto” tão elegante”.
Além desse fato que daria um vídeo do “Porta dos Fundos”, Aguinaldo reúne no livro fotos marcantes da sua carreira, como uma famosa imagem de Luiz Carlos Prestes, embarcando em um táxi em frente à Polícia Federal; Fernando Gabeira diante do consulado americano, ao voltar do exílio, em 1979; e Brizola pulando uma fogueira, em 1982. 
O autor revela, de cada foto,  as circunstâncias por trás das imagens. A memória do jornalismo carioca agradece.





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5 comentários:

Edu disse...

As pessoas é quem cuida da memória. no Brasil, as entidades que deviam guardar fotos e documentos só torram dinheiro em viagem e salário grande. As fotos da Manchete li no Globo que estão desaparecida e se estragando e ninguém liga e é só um exemplo.

Hélio disse...

Conheço muitas história desse tipo, fui repórter de polícia no Rio, tinha repórter das antigas que achava um presunto em um lugar e levava pra outra para melhor a matéria e a foto. Teve um que levou um morto para escadaria da igreja da Penha. Os mais antigos vão conhecer tantas outras histórias

Ludmila disse...

É feio isso de inventar notícia e foto

Guina Araújo Ramos disse...

Muito grato, colegas dos tempos da editora Bloch!
É uma honra ter meu livro citado e comentado nesta interminável e impagável página do "Blog que virou Manchete", o PanisCumOvum.
Contei algumas, mas são tantas histórias... Gostaria de ver todos os meus colegas fotojornalistas, em especial, reunindo as suas, que vejo espalhadas pelas redes sociais, em livros, os mais definitivos possíveis.
Não só pelo divertimento das lembranças, mas também para, mais uma vez, alertar os leitores de que a imprensa (é feio isso, mas é a mais pura verdade...) vive inventando notícias e fatos!...
Aqui, alguns lances individuais, do varejo cotidiano, mas é bom lembrar que algumas mídias, no Brasil e mundo a fora, passam anos, décadas, manipulando as informações, sempre na defesa de seus mais particulares interesses, e ainda se dizem democratas...
Ainda assim, não há como negar a importância da imprensa, e devo dizer que fui muito feliz em trabalhar nisso.
Abs,

Guina Araújo Ramos disse...

Aliás, uma correção: trabalhei por quase três anos (Agosto de 1977 a Junho de 1980), principalmente para as revistas Fatos&Fotos, Manchete, Amiga, Sétimo Céu e um pouquinho para cada uma das outras publicações da Bloch.
Fora esta escapada, o texto é excelente, passando bem o que podia acontecer na "outra face das reportagens", até porque assinado por José Esmeraldo, um dos melhores editores com que trabalhei.