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domingo, 15 de outubro de 2023

João Américo Barros (1931-2023): algumas linhas e imagens para a última página

João Américo Barros.
Paraty, 3 de setembro de 2023.
Foto: Arquivo Pessoal

por José Esmeraldo Gonçalves 

Esta última foto do João Américo Barros nos remete a um instante de profunda paz. Ele esteve em Paraty, no primeiro fim de semana de setembro, com a filha, Lúcia, e o genro Fernando e, de lá, enviou uma mensagem no whatsapp contando suas impressões da cidade. Barros gostava muito de História e a "capital" colonial do Ciclo do Ouro inspirou seu comentário. No domingo, dia 3, qundo voltava de Paraty enviou o que seria a derradeira mensagem. Queria saber do resultado do GP de Monza. A Fórmula 1 era outro dos seus interesses além do Flamengo que, naquele domingo, lhe deu a alegria de derrotar o Botafogo. "Em tempo: ganhamos do Bota", assim ele encerrou o papo virtual. Apenas dois dias depois foi atendido em emergência e, em seguida, levado à UTI com sintomas de uma pneumonia que resultou em infecção generalizada. Não foi embora sem luta. Aos 92 anos, resistiu por mais de um mês. 

O faixa preta Barros foi homenageado pelos colegas do aikido. Maio de 2023.
Foto: Arquivo Pessoal

A segunda foto foi feita em maio desse ano. Registra uma homenagem que a turma de aikido fez ao atleta que era faixa preta desde 2011, quando completou 80 anos. A imagem também é simbólica do seu jeito de ser. Barros não se isolou no outono da vida. Mantinha-se ativo no Facebook, voltou a pintar, era bem informado, conversava sobre política, sempre civilizado e ora com esperança ora com decepção. 

Em um dos seus artigos, ele abordou o ataque
à democracia em 8 de janeiro.

Lamentava não ter tempo para ver o Brasil que sonhamos, socialmente justo e desenvolvido, virar enfim uma realidade. Publicou neste blog reflexões políticas, profissionais e pessoais.

Bem no começo dos anos 1980, o então chefe de Arte da Fatos & Fotos, Ezio Speranza, deixou a Bloch. Barros, que entrou na editora como diagramador da revista Tendência e, em seguida, tornou-se diretor de Arte da Manchete Esportiva, foi indicado para o posto. Era o nome certo. Carregava no currículo nada menos do que O Cruzeiro, a mais importante revista ilustrada do Brasil até meados do anos 1960. Após uma temporada na FF, até 1986, ele foi transferido para a principal publicação da Bloch, a Manchete. Brincávamos que se tornara tríplice coroado como chefe de Arte por ter passado pelo O Cruzeiro, Fatos&Fotos e, finalmente, Manchete, as três revistas mais conhecidas no segmento ilustrado de atualidades e variedades. Trabalhei com o Barros por mais de 15 anos. Certamente enfrentamos bons e maus momentos naquelas revistas semanais intensas e desafiadoras. Este blog, para o qual ele criou o logotipo costuma recontar memórias das redações. Vou citar dois momentos que, tenho certeza, foram marcantes nas nossas trajetórias profissionais. Um de frustração e outro de realização. Em 1984, a Fatos & Fotos agonizava em praça pública travada por pouco investimento e baixa circulação em uma época em que a Bloch priorizava a decolagem da Rede Manchete. Carlos Heitor Cony, o diretor, Barros, o diretor de Arte e eu, editor-executivo, não aguentávamos mais carregar aquele fardo. Conversávamos os três sobre o que poderíamos propor à direção da empresa. 

João Américo Barros, José Esmeraldo e Carlos Heitor Cony.
Foto: Jussara Razzé
 

Cony pensou no assunto e, um dia, nos convidou para uma reunião fora da sede da Bloch. A ditadura também agonizava naquele época, talvez até mais do que a FF, embora ainda exibisse força.  Os milicos conseguiram barrar as Diretas-Já e manobravam para eleger Paulo Maluf no famigerado Colégio Eleitoral quando o nome de Tancredo Neves se impôs como uma alternativa. Cony havia sido convidado por Tancredo para dar  consultoria sobre a campanha. Foi várias vezes a Belo Horizonte. A ideia era - apesar de se tratar de uma eleição fechada em um Colégio eleitoral espúrio, criado pela ditadura, tentar falar com a população, procurar captar parte da força que o país demonstrara na épica jornada das Diretas-Já. 

Barros no Hotel Novo Mundo em 2005: almoço comemorativo
dos 20 anos do lançamento da revista Fatos: o melhor fracasso das nossas vidas.
Foto: Jussara Razzé  

E foi essa possibilidade de mudança no Brasil que Cony usou como argumento para levar a Adolpho Bloch a sugestão de fechar a Fatos & Fotos e lançar a Fatos, uma revista semanal de informação, análise, cultura, economia, política, reportagens investigativas e um time de colunistas, redatores e repórteres de referência. Em uma segunda reunião, fizemos um projeto detalhado para a Fatos. Barros criou o visual da nova revista. Foi feito um número zero, que Adolpho aprovou apesar da resistência de outros diretores. A primeira edição foi lançada em março de 1985. O que não sabíamos era que aquela resistência logo se transformaria em forte campanha interna liderada por pelo menos um jornalista que havia sido informante da ditadura e que mobilizou outros editores da Bloch em uma espécie de brigada contra a Fatos. Após um ano e quatro meses, a "jihad" formada pelo dedo-duro se transformou em sanção financeira. A empresa passou a atrasar sistematicamente o pagamento dos colaboradores, a maioria freelance. As reclamações da equipe, justas e insuportáveis, levaram Cony a virar literalmente a última página da Fatos, um projeto pelo qual lutamos até onde foi possível. Mais uma vez tivemos uma conversa a três e concluímos que não havia mais condição de tentar por em pé uma revista proscrita na própria editora. E, assim, as luzes da redação foram apagadas e eu e o Barros fomos incorporados à Manchete. Cony manobrou junto à direção da Bloch e parte da equipe foi acomodada em outras publicações da casa. 

Ficou o gosto amargo das noites insones de fechamento, do esforço perdido. A realização só viria cerca de 20 anos depois. A Bloch não existia mais em 2005 quando um grupo remanescente da antiga equipe da Fatos organizou um almoço no Hotel Novo Mundo para marcar os 20 anos do lançamento daquela revista, se viva ainda fosse. Foi durante esse encontro que nasceu a ideia de uma coletânea com as memórias dos bastidores das redações da Bloch. Depois de três anos de trabalho, com base em um projeto gráfico idealizado por J.A.Barros, foi lançado o livro "Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou" (Desiderata). Cony chamou a coletânea de "nossa pequena vingança" - e escreveu isso na página de rosto de um exemplar que autografou para mim. A história da Fatos e da "jihad" contra a revista estava lá, exposta e revelada. Naquele dia 3 de novembro de 2008, há 15 anos, com a Livraria da Travessa, no Leblon, lotada de amigos, a frustração foi curada. 

No capítulo que escreveu para a coletânea - "Quarenta e seis anos paginando os fatos e as fotos" - Barros contou sua longa e brilhante trajetória no jornalismo. Em meio às recordações, ele comentou o processo de informatização da Bloch Editores na segunda metade dos anos 1980. Designer formado no lápis, Barros assimilou com rapidez e naturalidade as novas tecnologias. Os analistas de computação mais jovens costumavam duvidar da capacidade das gerações mais rodadas dominarem hard e software. Ele desmoralizou o preconceito. Em poucas semanas tornou-se amigo de infância do Macintosh. Esse era o Barros. Vá bem, irmão.                                          

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Tomando caipivodca e lendo P.G. Wodehouse na Montanha Mágica de Laranjeiras numa hora de crise aos 85 anos: só eu... • Por Roberto Muggiati

Roberto Muggiati no  Armazém Cardosão, Laranjeiras. Foto de Lena Muggiati 

Corrijo T.S. Eliot, para mim “January is the cruellest month”. O ano começou com uma sexta-feira 13. Às oito da manhã me liga a assistente social da UPA de Botafogo convocando para a alta de minha mulher, Lena. Apavorei. Eu tinha internado Lena na segunda-feira 9 – um dia sinistro em que choveu sem parar no Rio e as telas de TV repassavam imagens de um dos episódios mais feios da nossa história, uma turba muito rude quebrando tudo em Brasília. 

Lena Muggiati no Hospital Rocha
Maia, em Botafogo

Um surto emocional acompanhado de uma crise de inapetência levara Lena à beira da inanição, um fiapo inerte de 35 quilos. Visitei-a todo dia, melhorava aos poucos, mas ainda não estava em condições de ter alta. Corri até a UPA, por sorte encontrei a médica que a atendia, a assistente social me dera uma informação truncada. Lena ia ser transferida para o Hospital Rocha Maia, em Botafogo, que oferecia melhor suporte médico.

Agora as visitas eram mais complicadas. Saindo de Laranjeiras, se surgisse um raro ônibus 584, que me deixava na sede do Botafogo perto do Rio Sul, era só uma caminhada até o Rocha Maia. Se o também raro 583 (Cosme Velho-Leblon) desse o ar de sua graça, eu descia no metrô de Botafogo e pegava um táxi até o hospital. O pior cenário era tomar o 422 até o Largo do Machado, o metrô até a estação Botafogo-Coca Cola (sic) e daí um táxi até o Rocha Maia. Arriscar uma caminhada até lá sob o sol de verão era estafante e perigoso, em meio a pistas de alta velocidade.

Nada acontece por acaso. Naquelas noites eu revia a versão de A montanha mágica de Thomas Mann num filme de três horas da TV alemã. Mann mostrava o hospital como uma parábola da sociedade e a doença como uma parábola da vida. E eu completamente mergulhado naquela mórbida frequentação nosocomial. 

Meu antídoto para toda essa gravidade literária era ler o autor mais leve e engraçado do século 20, o inglês P.G. Wodehouse (1881-1975). Comprei dois ou três livros dele nos sebos de calçada daqui – onde já encontrei coisas surpreendentes. Quando era editor da Manchete, eu tinha um redator muito culto e querido, George Gurjan. Nos momentos de pausa, entre um leiaute e outro, ele enfiava sempre o nariz num livro do Wodehouse. P.G. descreve com muito humor as aparentemente rígidas relações de classe britânicas e faz até uma inversão de papeis: é o valete Jeeves quem manda no seu patrão-playboy. Seus melhores livros, publicados nos anos 1920/30, são um deleite de linguagem com a colorida gíria inglesa da época.

Moro em pleno vale das Laranjeiras, no que chamo de Baixo-Glicério. Para aliviar o estresse comecei a caminhar até as alturas do Armazém Cardosão. Abreviava o trajeto subindo uma escada de 59 degraus e depois a ladeira que serpenteava até o bar-restaurante. Encurtava a volta descendo direto uma escada de 115 degraus. Chamei aquele cume de Montanha Mágica. Laranjeiras é um bairro estranho, com encostas e morros escarpados, boa parte coberta por trechos de Mata Atlântica do Maciço da Tijuca. Também venta muito por estas bandas, por isso criei um nome alternativo para a região, Cumbres borrascosas, título espanhol do Morro dos Ventos Uivantes, que Buñuel filmou no México como Abismos de pasión.

Na terça-feira 17 de janeiro, Rio 40° com sensação térmica de 50°, acompanhei Lena num passeio de ambulância até uma clínica de Madureira, onde ela foi fazer uma tomografia computadorizada. Na TV da sala de espera vi que tinha morrido o Henrique Caban, meu colega na equipe inicial da Veja em São Paulo em 1968. Depois nos reencontramos na Bloch,  ele foi secretário do Samuel Wainer no malogrado projeto do Domingo Ilustrado, uma revista em forma de jornalão para ser lida na praia – se a brisa marinha permitisse, só na cabeça do Adolpho mesmo... Duas coincidências do dia com um toque do Além: uma semana antes eu presenteara a Sirleine do Pastel, que vende seus quitutes defronte ao Cardosão, com um exemplar do meu primeiro livro, Mao e  China, lançado em São Paulo na segunda-feira antes da sexta-feira 13 de dezembro do AI-5. Costumo comprar livros da minha autoria na Estante Virtual, o da Sirleine portava justamente uma dedicatória ao Caban, em letra vermelha. Caban fazia parte da “Máfia do Partidão”: nas redações brasileiras, quem tinha carteirinha do PCB era sempre protegido e tinha emprego garantido.

Quando voltei para casa – quatro horas de ida e volta até Madureira numa ambulância sacolejante, o piso ao longo do caminho estava sendo recapeado – recebi na portaria do prédio dois livros da Estante Virtual. Quando abri o segundo tomei um choque, um livro que eu não tinha encomendado: De como ser, do Harry Laus, seu nome em maiúsculas gritantes na capa. Harry Laus (1922-1992) era meu editor de artes plásticas na Veja quando eu dirigia o módulo de Artes e Espetáculos. Militar de carreira, inteligente, transgressor, foi reformado como tenente-coronel pelo golpe de 1964. Homossexual, tinha escrito um romance sobre sexo proibido num quartel de fronteira, O batalhão sagrado, que nunca foi publicado. Por conta da minha primeira mulher, chegada a homossexuais, ficamos amigos e compartilhamos alguns programas fora da redação na buliçosa São Paulo daquela época. Depois que deixei a Veja em setembro de 1969 nunca mais vi o Harry Laus, que se tornou um contista ignorado no Brasil, mas muito prestigiado na Europa com a tradução de seus livros.

 Intrigado por aquela súbita aparição, subi para minha caipivodca de seriguela no Cardosão. Por uma feliz coincidência era o dia de jazz na casa. Um grupo compacto com um som fusion competia com os aviões da Ponte Aérea que passavam zunindo a cada dois minutos na descida para o Santos Dumont. O sabor da caipivodca de fruta silvestre, os bólidos prateados silvando a apenas cem metros de nossas cabeças e o jazz num longo improviso sobre o Corcovado do Jobim – e a visão muito próxima do Cristo Redentor que tínhamos de nossas cadeiras – tudo isso me levou a uma iluminação espiritual, aquele fenômeno que James Joyce chamava de epifania e os zen-budistas de satori. 

Uma semana depois Lena voltou para casa. No hospital a entupiram de comida, ganhou oito quilos de peso e estava em franca recuperação. Subi com ela de táxi para fazermos a foto que ilustra esse texto. O chamado do Além do Harry Laus foi explicado: minha amiga jornalista de Curitiba Marleth Silva, que vive insistindo para que eu escreva minhas memórias, mandou o livro como amostra de uma autobiografia. (Ela desconhecia minha amizade com o Laus.) 

Uma palavrinha para Marleth: escrevo minhas memórias todo dia há mais de vinte anos. O blog Panis Cum Ovum, dos ex-Manchete, com quinze anos de existência, abriga já alguns volumes. O problema é que não consigo colocar um ponto final. Cada dia me brinda com encontros, surpresas, descobertas, benesses, pessoas, lugares. O presente me atropela e se transforma instantaneamente em passado, matéria de memória.  Gosto da expressão com que Boris Vian definia a passagem do tempo: “a espuma dos dias”. Intenso, hiperativo, curioso e afoito, uma ida até a esquina hoje para mim equivale a uma verdadeira odisseia. 


sábado, 21 de maio de 2022

Publimemória: do Russell para o mundo. E para o "galinheiro". Entenda porque...

A revista Manchete produzia edições anuais em inglês, francês e, pelo menos uma vez, em russo. Essa última, revista especial que acompanhou a comitiva do então presidente Sarney a Moscou. Eram produtos dirigidos e realizados com apoio de empresas exportadoras para os países focalizados e de multinacionais daqueles países instaladas no Brasil. Uma fórmula que dava comercialmente certo. As redações contribuíam com textos sobre os vários setores exportadores e produziam um panorama fotográfico da indústria, dos pontos turísticos, da Amazônia, praias, a visão urbana das capitais. Equipes fotográficas pecorriam o Brasil para captar essas imagens. Em conjunto, elas mostravam um Brasil de várias épocas. Todo esse acervo produzido desde os anos 1950 até a década 1990 está desaparecido desde que foi leiloado, em 2010 - mal divulgado e sem qualquer noção do valor cultural do acervo -  pela Massa Falida da Bloch Editores. O arquivo da Manchete (e Fatos & Fotos, Fatos, Domingo Ilustrado,  Desfile, EleEla, Geográfica, Mulher de Hoje, Sétimo Céu, Amiga, País& Filhos, Manchete Esportiva, Enciclopédia Bloch, Carinho, Tendência, Medicina de Hoje, Manchete Rural, Jóia, Conecta) estaria se perdendo em um galpão - ou seria um antigo "galinheiro"? - no interior do Estado do Rio de Janeiro.  É até hoje um completo mistério esse desfecho. Por que um indivíduo se dispôs a pagar cerca de R$300 mil, na época - valor bem abaixo do avaliado - para arrematar um arquivo e sumir com milhões de cromos, negativos e cópias fotográficas? Não há resposta inteligível. Manchete publicou fotos, pela primeira vez, em abril de 1952, há pouco mais de 70 anos. Pelas leis brasileiras, fotos caem em domínio público a partir de 70 anos. Agora, a cada virada da folhinha, milhares de imagens originais se tornarão públicas. O problema é: o acervo ainda existe? Em que condições foi guardado? O que salva a memória é a Biblioteca Nacional, que digitalizou toda a coleção da revista Manchete.  Visitem esse extraordinário acervo e vejam o que, tratando-se de imagens originais - a irresponsabilidade ou outra motivação insondável destruiu.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

"O Marajá": novela proibida reaparece misteriosamente no You Tube.

 

Na Folha de São Paulo, o místério da minissérie O Marajá.

por José Esmeraldo Gonçalves

A edição de ontem da Folha de São Paulo revela mais um mistério em torno da extinta Rede Manchete. Em 1993 a emissora gravou a minissérie O Marajá, com estreia prevista para 26 de julho daquele ano. A trama recriava os anos tumultuados do governo Collor de Mello. E, claro, o personagem principal, chamado "Elle", caricaturava o próprio político, que hoje é um apêndice do bolsonarismo. 

Escrita por José Louzeiro, Regina Braga, Eloy Santos e Alexandre Lidya, O Marajá foi censurado. O ex-presidente, cujo impeachment havia sido aprovado em setembro de 1992, entrou com uma ação na justiça impedindo a transmissão da minissérie. 

A partir daí, entra em cena o mistério da vida real. Adolpho Bloch acatou a decisão e pessoalmente mandou trancar todas as fitas em um cofre. Enquanto Collor permaneceu livre e solto, "Elle" passou anos aprisionado no tal cofre instalado em algum lugar do Edifício Manchete, na Rua do Russell. Em novembro de 1995, Adolpho Bloch faleceu. Cessava sua responsabilidade pessoal sobre o cofre blindado. A Rede Manchete, por sua vez, começava agonizar envolvida em dívidas e em operações sucessivas e mal sucedidas de tentativas de venda da rede. Ora era adquirida por empresários e até um  "bispo" evangélico, ora retornava aos Bloch por calote dos compradores. A crise desgastava a empresa, mas O Marajá, pelo que se sabia, repousava no escurinho do cofre, já quase esquecido, praticamente. Mas não por todo mundo. Alguém lembrou de  resgatar "Elle", que sumiu sem deixar pistas até reparecer agora no You Tube,  

A venda da Rede Manchete, afinal concretizada em 1999 e, no ano seguinte, a falência da Bloch Editores, colocaram um ponto final no que foi um importante conglomerado de comunicação.

Anos depois, algumas novelas da Rede Manchete reapareceram no SBT. Surgiram notícias de que parte do acervo estava com a TV Cultura, em São Paulo e haveria a intenção de levar ao ar alguns programas. Aparentemente, o temor de questões jurídicas ligadas a direitos autorais provocou o cancelamento do projeto.

 Recentemente, em leilão realizado pela Massa Falida de TV Manchete, sediada em São Paulo, um comprador não identificado, que teria sido representado por um procurador, adquiriu milhares de gravações de telejornais, programas especiais de jornalismo, shows, documentários, novelas, entrevistas, grandes eventos etc que pertenceram à Rede Manchete. Não se conhece o estado de conservação desse material. É certo, apenas, que é de grande valor para a memória da TV brasileira. 

Aliás, a Bloch não deu sorte com o seu legado jornalístico. Também mistério, como se sabe, é o destino do arquivo fotográfico que reunia décadas de produção fotográfica das revistas Manchete - que no dia 26 de abril comemoraria 70 anos, se viva fosse -, Fatos & Fotos, Fatos, Amiga, Desfile, Domingo Ilustrado, Mulher de Hoje, Ele Ela, Sétimo Céu, Joia, além de publicações dirigidas de economia, agricultura, medicina, informática e edições especiais sob os mais variados temas. O acervo foi leiloado, adquirido por um advogado, e sumiu como O Marajá. 

A minissérie, pelo menos, reaparece agora. O acervo das TV materializou-se no leilão em São Paulo. Já o arquivo fotográfico, com milhões de cromos, negativos e cópias, continua desaparecido. 

O que não desapareceu totalmente ainda foi a dívida da Massa Falida da Bloch Editores com seus ex-funcionários. A maioria recebeu os valores principais das indenizaçoes, mas não vê a cor da correção monetária devida (foram pagas apenas três parcelas). Há cinco anos esses pagamentos também viraram mistério. Além disso, há funcionários habilitados que ainda não receberam nem mesmo os tais valores prncipais das indenizações. 

Os ex-funcionários da TV Manchete - que não faliu, foi vendida - enfrentam uma luta também difícil. A venda da Rede Manchete foi uma operação que os lançou em um jogo de empura que se revelou uma armadilha. A TV Ômega, que adquiriu as concessões, conseguiu na justiça escapar da responsabilidade sobre as indenizações trabalhistas (chegou a pagar alguns processos de ex-funcionários da Bloch, mas foi ressarcida pela Massa Falida da Bloch Editores); uma segunda empresa envolvida na compra, denominada TV Manchete Ltda, foi adquirida por outro empresário que tomou um sumiço equivalente ao Marajá. A muito custo, ex-funcionários obtiveram a formação da Massa Falida de TV Manchete, essa que realizou o citado leilão de fitas de gravação e de um terreno com edificação em Campinas (SP), cujos resultados financeiros, não tão expressivos, seriam destinados a pagamentos aos credores trabalhistas.

O que preocupa os ex- funcionários da Bloch Editores é que massas falidas em geral costumam praticar autofagia aguda: quanto mais demoram mais consomem os bens garantidores das indenizações. Despesas judiciais, custos de administradores, advogados, seguros, manutenção, derrotas em processos etc pulverizam o patrimônio. Imagine isso ao longo do tempo: a Massa Falida da Bloch Editores apagará velinhas de 22 anos em agosto próximo.

Como se vê, não é apenas o mistério de O Marajá que assombra o desfecho da Bloch Editores e da Rede Manchete. 


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Domingo Ilustrado: arqueologia do "unicórnio" jornalístico de Samuel Wainer








por José Esmeraldo Gonçalves 

A revista Domingo Ilustrado - publicação em formato jornal criada por Samuel Wainer para a Bloch, em 1971 - teve trajetória meteórica. É também uma espécie de "unicórnio". Poucos a viram e é quase impossível exumar seus fósseis na internet. 

Em janeiro de 2021 publiquei aqui um post sobre a DI. Garimpei apenas algumas poucas reproduções em repetidas buscas no Google. 

Há poucos dias, um leitor que assinou como "unknow", nos enviou em comentário mais imagens da revista. Reproduzo algumas e repasso o link do blog Antiguinho que tem mais informações. Incluo também um link da matéria que fiz para o Panis.

Agredeço ao "unknow". Aos poucos o unicórnio jornalístico lançado por uma dupla improvável e que se detestava - Samuel Wainer e Adolpho Bloch - mostra sua cara.

http://antiguinho.blogspot.com/2021/07/vi-festival-internacional-da-cancao-1971.html?m=1

https://paniscumovum.blogspot.com/search?q=Domingo+Ilustrado


terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Domingo Ilustrado: fragmentos do tabloide perdido de Samuel Wainer




Reprodução Domingo Ilustrado



por José Esmeraldo Gonçalves

O semanário Domingo Ilustrado talvez tenha sido a publicação de vida mais curta da história da Bloch. Durou de 1971 a fins de 1973. Samuel Wainer era o diretor. 

 "Samuel Wainer, o homem que estava lá', de Karla Monteiro" lançado em setembro passado - aliás um ótimo livro - tem um capítulo sobre essa aventura jornalística. A redação reunia Maria Lúcia Rangel, Tato Taborda, Luís Carlos Maciel, Martha Alencar, entre outros, além de colaboradores de prestígio levados por Samuel, como Bruno Pedroso e Arthur da Távola.. 

Domingo Ilustrado vinha com o slogan "o jornal-revista do fim de semana". Era um tabloide colorido, excessivamente colorido, popularzão, estilo France Dimanche, sem grampos, impresso no mesmo couchê das revistas. 

O livro conta que Adolpho detestava Samuel e Samuel detestava Adolpho. Quem ousou juntar os dois em um mesmo projeto, supremo risco, foi João Pinheiro Neto, que quis ajudar o amigo então desempregado e apelou para Adolpho. Samuel desprezava o patrão. Com licença do título da Karla, era o homem que não devia estar lá, mas engolia sapos para não perder o emprego. "Samuel se submeteu a muita coisa humilhante. Ele (Adolpho Bloch) era tão grosso que virava piada. Se a gente apertava o botão do elevador duas vezes, batia na sua mão", recorda Martha Alencar em um dos depoimentos colhidos para o livro. 

Domingo Ilustrado acabou como começou, de repente. Adolpho cansou do prejuízo. Uma das expectativas, imaginem, era que os cariocas levassem o tabloide para ler na praia, junto com a cadeira, a esteira e a barraca, os apetrechos da época. Talvez um ou outro desafiasse os ventos e levasse mesmo o Domingo à areia, mas não virou moda e não garantiu as vendas.

Tente encontrar o Domingo Ilustrado em sebos de revistas. É impossível ou difícil. Vá ao Google, há poucas referências, algumas indexadas justamente do livro da Karla Monteiro. 

Refinando buscas, variando comandos na barra de pesquisa, encontrei dois sites que reproduzem matérias do jornal-revista: os blogs http://caetanoendetalle.blogspot.com/http://antiguinho.blogspot.com/2016/06/jornal-domingo-ilustrado-wanderleia.html

E só.

Domingo Ilustrado é o Percy Fawcett do jornalismo. A Atlântida da mídia impressa.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Alberto Dines, nossa longa vida pelas Redações dos jornais e a histórica primeira página do JB, sem manchete. Por Nelio Barbosa Horta

Alberto Dines no front jordaniano, em 1967, quando cobriu para Manchete a guerra no Oriente Médio.

Em 1962, no almoço de comemoração de um ano da revista Fatos & Fotos, ao lado de Austregésilo de Athayde, Juscelino Kubitschek e Adolpho Bloch


por Nelio Barbosa Horta 

Eu achava que o Dines ia chegar aos 100 anos. Era uma pessoa extremamente saudável. Extrovertido, criativo, feliz ao lado de sua companheira, a jornalista Norma Curi, que também foi do JB nos anos dourados. Confesso não pensei que nos deixaria antes do centenário, trazendo muita tristeza a todos que tiveram, como eu, a honra de trabalhar e conviver com ele na sua longa e brilhante trajetória pelos jornais e revistas brasileiros.

Conheci o Dines nos anos 50, no antigo Diário da Noite, jornal verde, cujo secretário era o Carlos Eiras (só os mais antigos se lembrarão dele), jornal do Paulo Vial Corrêa, do Austregésilo de Athayde, do Fernando Bruce, do Brício de Abreu, (o Briabre), do Marcelo Pimentel, do Nelson Rodrigues e que ficava na Rua Sacadura Cabral, 103.

Como o jornal enfrentava grandes dificuldades financeiras, apesar da grande equipe, o Dines foi contratado e transformou o DN verde em tabloide, numa desesperada tentativa de recuperá-lo. Conseguiu, já que houve momentos em que o novo tabloide triplicou a vendagem, coisa rara na época.

Deixando o DN, Dines foi ser editor da Fatos&Fotos, revista de Bloch Editores, onde seu brilhante espírito de liderança e competência se fez sentir, já que ele chegou a balançar e a concorrer com a tiragem da revista mais importante da Bloch, a Manchete. Naquela redação havia muita gente competente, o Macedo Miranda, o Ney Bianchi, o Itamar de Freitas, o Paulo Afonso Grisoli. Na Arte, o Ézio Speranza, eu e o Laerte Gomes. Trabalhei no Diário de Notícias, que tinha o José Carlos Oliveira, o Luiz Alberto, o Ascendino Leite, o Teixeira Heizer e tantos outros. Depois trabalhei na Folha da Guanabara, com o Rennée Deslandes.  Passei pelo Mundo Ilustrado, onde conheci o Hugo Dupin, pai do Fábio Dupin. Mais tarde, Tribuna da Imprensa, com o Hélio Fernandes e o Guimarães Padilha, em plena ditadura. Também trabalhei na precária cenografia da TV Tupi. Meu chefe era o Carlos Thiré, casado com a Tônia Carreiro e pai do Cecil Thiré. Quando saía, por volta das 23 horas, ia, a pé tranquilamente até o Largo de São Francisco pegar o bonde São Januário que me levava até São Cristóvão, onde morava. O Aterro ainda não existia...

Voltei a trabalhar com o Dines em 1º de maio de 1965, Dia do Trabalho, naquele lindo prédio da Av. Rio Branco, quando ele me convidou para o JB, para me juntar à equipe que ia fazer da edição de  domingo um “jornal diferente”, segundo suas palavras. Não havia vaga na Arte e eu fui ser repórter- especial . Meu chefe era o Aluizio Flores, o “Amiguinho” lembram dele?

 Como o JB estava em grande fase de expansão, o jornal se dava ao luxo de “exportar” profissionais, o Dines me mandou para a Gazeta do Povo, de Curitiba, para uma reestruturação gráfica e editorial. Fiquei lá por três meses. Muito frio, 16 horas de ônibus pela viação Penha, mas acho que o nosso trabalho foi reconhecido, apesar do jornal ter saído, naquele período, com a “cara do JB”.

Na volta para a Redação do JB encontrei grandes profissionais e editores: Wilson Figueiredo, Oldemário Touguinhó, Luiz Orlando Carneiro, Carlos Lemos, Gazzaneo, Joaquim Campelo, Humberto Vasconcelos, Macksen Luiz, Zózimo, Zuenir Ventura, Luiz Paulo Horta, Fleury, Regina Zappa, Bella Stall, Ana Arruda, Iesa Rodrigues, Rose Esquenazi, Sandra Chaves, Celina Côrtes, Léa Maria e tantos outros e outras, todos brilhantes profissionais.

Em 2004, participei da equipe que ganhou o último Prêmio Esso do JB com a 1ª página: Ministro Berzoíni: “ Eu odeio filas”. Na equipe, o Augusto Nunes, o Otávio Costa, o Marquinho e eu.

 Como eu trabalhava de dia em Bloch Editores só podia chegar ao JB à noite, às 18 horas, eu era o “fechador”, responsável pelas edições diárias. Eu ficava na primeira página junto com o copy-desk. Não tinha hora para sair, mas meu esforço era compensado porque o jornal, naquela época, já estava na Av. Brasil, próximo da subida da ponte. Eu morava em Niterói e subia a ponte rapidamente. Eu tinha uma Brasília que vivia enguiçando, quase sempre no vão central. Os funcionários já me conheciam e diziam: “outra vez seu Nelio...”, uma festa!

 Passei por todos os cadernos do JB, especialmente o Caderno Especial, cujo fechamento era às sextas-feiras, de madrugada. Era um super-pescoço e várias vezes eu amanhecia no jornal, esbarrando nos que chegavam para “abrir” as edições do fim-de-semana. Foram 46 anos, ininterruptos, até 2011, no Rio Comprido, já na edição digital.


A antológica capa do JB, em 12 de setembro de 1973
A famosa e histórica primeira página do SalvadorAllende ficou decidida bem tarde. O Dines e o Lemos já tinham deixado a Redação e a ordem da censura para que o jornal não desse manchete foi recebida pelo Maneco (Manoel Bezerra), que era o secretário da noite. O Maneco ligou para o Dines avisando da nova determinação da censura. O Dines chegou rapidamente à Redação e disse:
“-Vamos obedecer à censura, a página sairá sem manchete”.

A ideia da página sem manchete foi dele. Como o Avellar, (José Carlos Avellar) que era o diagramador oficial da primeira página já tinha saído, a “bomba” estourou na minha mão. Confesso que foi a página mais fácil de se fazer. Sem manchete, sem foto, apenas com o “L” dos classificados. Antes de tirar a manchete que seria, ‘Golpe derruba e mata Allende’... O texto, acho que foi a editoria internacional que mandou uma parte (Humberto Vasconcelos, que estava em Santiago) e o Lutero, que escreveu o restante, com a supervisão do Dines, e do Lemos, que àquela altura já haviam voltado ao jornal. Infelizmente, talvez tenha sido aquela página o “estopim” para a saída do Dines do JB.

Deve-se a Nelson Tanure a manutenção do jornal, primeiro impresso e depois “digital” e a Omar Catito Peres o relançamento, há pouco mais de um ano, do grande JB.

Agora, é só saudade. Dines, companheiro de tantas trincheiras, de tantas lutas, o mais completo jornalista do século passado, nos deixou aos 86 anos, em 22 de maio de 2018, há um ano.

Deus o abençoe e até qualquer dia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

HÁ 50 ANOS: A GRANDE AVENTURA DO LANÇAMENTO DA VEJA • Por Roberto Muggiati

SORRIAM, O MUNDO É DE VOCÊS • A ideia deve ter sido do próprio capo, Victor Civita, que assinou pomposamente o texto da Carta do Editor ao lado da foto da redação publicada no número 1. Foi convocado o chefe de fotografia da Abril, o excelente Lew Parrella, para registrar a foto para o álbum de família da primeira equipe de Veja. Algumas pinceladas sobre o que aconteceria com alguns que figuram aí e outros que chegariam pouco depois. O gaúcho Caio Fernando de Abreu, tímido de morrer, completou vinte anos no dia da data de capa da primeira Veja. Trocou o jornalismo pela literatura, morreu cedo e se tornou talvez a figura cult mais destacada dentre todos nós. O gaúcho José Antônio Dias Lopes foi o último a sair (não sei se apagou a luz), 22 anos depois, quando era editor de religião e correspondente da Veja no Vaticano. Criou a revista Gula e se deu bem. Eu, com os exageros capilares da época, postei-me coerentemente na extrema esquerda da primeira fila. Tornei-me o editor de Manchete que mais tempo durou no cargo. O paulista Tão Gomes Pinto veio dirigir a Manchete em 1996 e foi, talvez, o editor que menos tempo ficou no cargo, sorte dele... Mino Carta continua um grande jornalista, impávido com suas adoráveis contradições. Elio Gaspari e Dorrit Harazim conheceram-se na redação e continuam suas carreiras vitoriosas: ele se tornou o maior historiador da ditadura militar no Brasil, ela ganhou recentemente o Prêmio Maria Moors Cabot. Harry Laus, que não teve reconhecimento literário enquanto viveu – chegou a ser dono de uma birosca de loteria esportiva da Caixa – tornou-se um autor cada vez mais prestigiado no exterior. Bernardo Kucinski escreveu sobre o assassinato da irmã pelos carrascos militares e, mais recentemente, aderiu em definitivo à ficção. Henrique Caban trocou a Veja pela Bloch, onde foi assistente de Samuel Wainer no semanário Domingo Ilustrado, que durou um ano, quando retomou a carreira no Globo. Enio Squeff destacou-se na literatura, na música e nas artes plásticas. Sylvio Lancelotti herdou um hotel na Itália, tornou-se chef e crítico gastronômico e ainda comentarista de jogos do campeonato italiano pela TV. Paulo Cotrim também se tornou chefe e crítico de culinária. Tárik de Souza, que foi meu repórter na editoria de música, virou o dono do pedaço e é um dos mais sólidos comentaristas sobre a MPB, com vários livros publicados. Marcos Sá Correa, jovenzinho, começou sua brilhante carreira na Veja, lembro o Mino comentando: “Ele tem uma cara boa...” Muitos já morreram, de outros nunca mais ouvi falar. Encerro com uma vinheta trágica. Nello Pedra Gandara, pesquisador da minha editoria, foi um inadaptado na Abril e depois na Bloch, queria outras coisas do mundo. Um dia encontrou o seu caminho: começou a criar cachorros, montou um canil bem sucedido, depois outros, ficou finalmente bem e feliz da vida. Mas tudo terminou bruscamente quando Nello morreu atropelado ao atravessar uma destas avenidas que são o orgulho da Pauliceia. Foto Lew Parrela


Clique na ilustração para ampliar. Reprodução/Esquina

POR ROBERTO MUGGIATI

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos – a Era das Luzes, a Era das Trevas. Foi o ano da maior aventura do jornalismo brasileiro. Na segunda-feira, 9 de setembro de 1968 (com a data de capa do dia 11), saía o primeiro número da revista Veja.

Numa época de grandes lançamentos espaciais, a operação para levar às bancas a revista semanal de informação da Abril lembrava o planejamento e logística da NASA. Na Carta do Editor, em página dupla, ao lado da lendária foto da equipe diante das máquinas que imprimiam a revista, o próprio Presidente, Victor Civita, cobrava o pênalti: “Selecionamos entre 1.800 universitários de todos os estados e realizamos um inédito Curso Intensivo de Jornalismo. Com 50 destes moços e outros tantos jovens ‘veteranos’, formamos a maior equipe redacional já reunida por uma revista brasileira.”

Aos 30 anos, com 16 de jornalismo, eu fui um daqueles “jovens ‘veteranos’” da grande empreitada. Comecei a carreira em 1954, na Gazeta do Povo de Curitiba. Em 1960 fui estudar jornalismo em Paris, em 1962 entrei para o Serviço Brasileiro da BBC de Londres. Em 1965, comecei na Manchete, no Rio (ainda em Frei Caneca) como repórter especial; em março de 1968, a Bloch me ofereceu o cargo de editor de Pais e Filhos, uma franquia da Eltern alemã. Eu não tinha filhos e queria era fazer jornalismo de verdade, não uma revista mensal de fraldas e papinhas. Além do mais, só teria salário de editor lá pelo fim do ano, depois que a revista fosse lançada, e com uma condição: se a revista vendesse bem... Era muita incerteza para minha pobre cabecinha.

E havia mais em jogo. Já em 1967 falava-se muito numa revista Veja, que seria a semanal de informação da editora Abril. Numa ida a São Paulo, procurei o Alessandro Porro – figura icônica da empresa, diziam até que seria filho do próprio Victor Civita. Porro me garantiu: “Quando chegar a hora você será chamado.” As contratações para a Veja provocaram um verdadeiro terremoto no mercado de trabalho. A Manchete, como líder de vendas entre as semanais, foi um dos celeiros mais visados pelos caçadores-de-cabeças da nova publicação. Eram curiosos os telefonemas da sucursal carioca da Abril para a redação da Bloch: chamavam o Paulo Henrique (Amorim), que atendia a ligação, falava rapidamente e passava o telefone para o Lucas (Mendes), que por sua vez o passava para o Nilo (Martins) e assim sucessivamente. Adolpho Bloch ficava injuriado de ver aquela evasão do seu plantel debaixo do seu próprio nariz, mas tudo se fazia dentro das leis clássicas do capitalismo: jornalistas de esquerda (quase um pleonasmo) respondiam à lei da oferta e procura, atrás de melhores salários.

Peguei a ponte aérea e fui conversar em São Paulo com o futuro diretor de Veja, Mino Carta. Durante um cozido no Ca’ d’Oro, convidou-me para ser um dos editores da revista, dividida em quatro grandes fatias. Coube-me a fatia mais suculenta, a editoria de Artes e Espetáculos – imaginem, num ano em que a cultura brasileira e mundial ferviam.

O modelo da Veja era a semanal de informação americana Time, fundada em 1923, que oferecia uma visão do mundo segmentada por assuntos. O texto da Time pretendia ser informativo, claro e elegante, escrito numa linguagem uniforme, sem crédito ao autor, para dar a impressão de que a revista era redigida por uma única pessoa (quem sabe o próprio Deus?) Transplantar tal modelo para o Brasil seria o desafio da Veja – e seu grande desastre. O absurdo inicial foi copiar a grade funcional da Time e preencher os escaninhos com a nata do jornalismo brasileiro. A Veja começou com um total de 157 jornalistas, entre editores, redatores, repórteres, fotógrafos e correspondentes.  A Time só chegara àquela estrutura após 45 anos de hesitações e adaptações: Veja também teria de evoluir dentro da realidade do país e da época, aprendendo com seus erros Seria – e foi – um processo muito doloroso.

A Editoria de Artes e Espetáculos tinha seis editores assistentes, dos quais só um foi escolhido por mim, o de Cinema, Geraldo Mayrink, mineiro com experiência das redações cariocas, cinéfilo e jornalista cultural, que correspondia plenamente ao perfil de redator buscado pela “proposta” da Veja.

Os outros editores já estavam lá quando cheguei, escolhas pessoais do próprio Mino: Paulo Cotrim (música), Paulo Mendonça (teatro), Luiz Gutemberg (rádio e TV), Leo Gilson Ribeiro (literatura) e Harry Laus (artes plásticas), esse indicado por Leo Gilson. Os critérios? Cotrim fora o dono do João Sebastião Bar, berço da bossa nova em São Paulo. Mendonça era aparentado com a família Mesquita, do Estadão, onde trabalhara o pai de Mino, também jornalista. Leo Gilson, doutor em Literatura pela universidade de Heidelberg, era o melhor amigo da tia de Mino, Bruna Becherucci, que também colaborava em Veja fazendo resenhas literárias. Nenhum deles tinha qualquer vivência do texto jornalístico: eram críticos acadêmicos sem poder de comunicação com o grande público. Cotrim sequer escrevia; muitos anos depois, encontraria sua vocação como crítico de gastronomia. Cada editor tinha dois pesquisadores (o nome que a Abril dava aos repórteres) – daqueles 50 jovens universitários do país inteiro selecionados por Veja. E cada editoria tinha colaboradores para escreverem resenhas, dois em São Paulo e dois no Rio de Janeiro. Ou seja: eu, os seis editores, os doze pesquisadores, mais 24 colaboradores, a equipe da editoria de Artes e Espetáculos totalizava 43 profissionais, mais um carona, o famigerado José Ramos Tinhorão: já na fase dos números zero, ele fora rejeitado por outras editorias e desovado na nossa. A última coisa que a Veja ia querer era o Tinhorão escrevendo sobre música e demolindo a bossa e a tropicália com seus dogmas do materialismo dialético. Foi posto a escrever a seção de Cartas do Leitor.

Além de planejar minha fatia cultural da revista, que nunca ultrapassava as dez páginas – vivíamos um momento altamente politizado, embora a cultura também participasse dele – eu tinha que reescrever praticamente todos os textos (o que gerava atritos terríveis) e me comunicar com aqueles 24 colaboradores que, sem espaço, invariavelmente ficavam sem escrever. Aquilo era um imenso desperdício de tempo, deles e meu. No ano e meio que passei em Veja, só tive oportunidade de publicar uma resenha do grande José Rubem Fonseca, sobre o filme As aventuras de Tom Jones.

Numa época sem fax e, nem falar, e-mail, o principal meio de comunicação era o obsoleto telex, o que tornava um verdadeiro suplício o fechamento das reportagens de capa. Segunda-feira de manhã, mal refeitos do esforço de fechar mais uma edição, Mino Carta reunia os editores em sua sala. Comentávamos o número que acabava de ir às bancas e discutíamos a pauta do seguinte. Traçadas as prioridades, o chefe de reportagem Sérgio Pompeu iniciava a faina desesperada de disparar os pedidos para as sucursais.

O redator destacado para escrever o texto da matéria de capa passava três dias torturantes sem fazer nada. Os textos só começavam a chegar ao apagar das luzes, lá pelo fim da tarde de quinta-feira, quando jorravam sobre a mesa do pobre coitado vários metros de folhas de telex, além de folhetos, jornais e revistas enviados por despacho urgente. Não havia tempo material para digerir tudo aquilo e escrever um texto decente, o que aumentava o desgaste físico e mental do redator. O trabalho de fechamento se prolongava da sexta até o amanhecer de sábado na paisagem sinistra da Marginal do Tietê, segundo Mino “lamaçal fétido em movimento preguiçoso, rio morto prova de muitas coisas más. Se o lago de Tiberíades fosse igual ao Tietê, a caminhada de Cristo sobre a água não seria milagre.”

Uma palavra sobre o espaço físico onde se fazia a Veja. No começo de 1968, a Abril juntara suas redações num prédio construído sobre a própria gráfica, na Avenida Otaviano Alves de Lima, 800, na Marginal do Tietê, tendo mais aos fundos a Freguesia do Ó. A redação da Veja ocupava o oitavo e último andar. Mino Carta e os editores tinham salas fechadas na frente, com direito à abominável paisagem do rio poluído. Os editores assistentes, redatores e repórteres ocupavam compartimentos quase fechados, as execráveis “baias” – mais um fator a truncar a comunicação em todos os sentidos. Não era uma redação “aberta”, com fileiras de mesas como nos jornais e na maioria das revistas, o que promovia interação constante entre os redatores. Ao longo do corredor, do lado de fora das salas dos editores, havia baterias de datilógrafas que “preparavam” os textos para a gráfica, redigitando-os em colunas de 37 batidas, a medida da coluna tipográfica. O editor, depois de reler, corrigir ou até reescrever o texto do subeditor, tinha ainda de rever (e rubricar) as laudas finais batidas à máquina por mocinhas que não tinham a menor ideia do que estavam datilografando.

O número zero da Veja

A primeira capa

O lançamento de Veja foi feito com uma megacampanha publicitária que culminou com a transmissão em rede nacional pela TV, às 20 horas de domingo, de um filme de Jean Manzon sobre a revista, tão bombástico que as pessoas correram às bancas na manhã seguinte esperando comprar a maravilha das maravilhas. Os 700 mil exemplares lançados em todo o Brasil esgotaram em poucas horas. A decepção foi imensa. Acostumados ao arrojo visual da Manchete e ao jornalismo vivo da Realidade, a vitoriosa mensal da Abril abortada em função dos investimentos na Veja – os leitores rejeitaram de saída a revista de formato pequeno, quase toda em preto-e-branco e com excesso de texto. Até o nome da revista era inadequado, convidava a “ver” mais do que a “ler”, por isso ela circularia muito tempo com o logotipo ambíguo de Veja e Leia.


Algumas capas, com chamadas em paulistês, como Ah, Jaqueline! (quando a viúva de Kennedy fez um contrato nupcial com Onassis), foram alvos de chacota.

O segundo número de Veja baixou a tiragem para 500 mil exemplares; o terceiro, para 250 mil; o quarto para 100 mil e o quinto para 50 mil.


Quatro meses depois, a vendagem chegava ao fundo do poço: apenas 30 mil exemplares no país inteiro. Foi a tiragem da capa de 15 de janeiro de 1969, uma produção tosca e óbvia que mostrava um executivo de terno carregando uma barra de gelo debaixo braço, com a chamada QUE VERÃO! (Na minha memória idiossincrática eu jurava que a chamada era UFA, QUE CALOR!)

Guardo duas ou três boas lembranças da minha temporada na Veja.




• Uma matéria de duas páginas no número 10 (13/11/68) intitulada Existe algo de concreto nos Baianos, mostrando as relações entre os tropicalistas e os poetas neoconcretos, incluindo um quadro comparativo com as letras da Tropicália e a poesia dos concretistas.


• A reportagem de capa do número 38 (28/5/1969), quando Glauber Rocha ganhou em Cannes o prêmio de Melhor Diretor com o filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ou Antônio das Mortes. Não só era raro uma matéria cultural emplacar capa na Veja, como Mino Carta creditou a mim o texto em sua Carta ao Leitor. Quando preparava o texto com antecedência – aguardando a decisão de Cannes – recebo a visita insólita em minha sala da Marginal do Tiete de ninguém menos do que o próprio Glauber. Numa longa conversa telúrica acompanhada de muitos gestos, ele me deu muitas informações de cocheira que enriqueceriam o texto. Como esta: “Quando filmavam Deus e o Diabo na Terra do Sol, no interior da Bahia, Glauber e Maurício subiam um morro íngreme discutindo sobre Deus. De repente um pé de vento derrubou a câmara, que rolou alguns metros morro abaixo. Mas o equipamento ficou intato. Maurício do Valle, que é muito religioso, falou: ‘Deus existe.’ Glauber respondeu: ‘É possível...’”

• E a cobertura da morte da mulher de Roman Polanski, na sua casa de Los Angeles. Sharon Tate, com o filho na barriga (a quinze dias de nascer), três amigos e um estudante amigo do caseiro, foram barbaramente assassinados por um bando de fanáticos que seguiam as ordens do guru do mal Charles Manson. Por exigência do Mino, Geraldo Mayrink, escreveu a matéria em forma de roteiro cinematográfico. O texto, um roteiro perfeito publicado no número 50 (20/8/1969), estava pronto para ser filmado.

Veja surgiu num ano crucial do século 20, um tempo de confrontos violentos e mudanças radicais que moldariam as décadas seguintes. No caso do Brasil, mudanças para pior. Em dezembro, o AI-5 instalou a repressão total no país, obrigando a resistência à ditadura militar a cair na clandestinidade.
À minha modesta maneira, como escritor, eu vinha fazendo propaganda de esquerda.



O lançamento do livro Mao e a China em São Paulo, dezembro de 1968. Foto: Arquivo Pessoal R.M.

Uma semana antes do AI-5, lancei em São Paulo o livro Mao e a China, uma declaração de amor ao comunismo chinês. O livro, uma incitação à luta armada, passou a aparecer menos nas vitrinas das livrarias do que nas exposições de material subversivo apreendido pelo exército. Quando o guerrilheiro Carlos Lamarca morreu fuzilado em 1971, no sertão da Bahia, os jornais do país inteiro publicaram trechos de suas cartas para a companheira Iara Iavelberg. “12 de julho: Lendo Mao e a China, de Roberto Muggiati, me impressiono cada vez mais em tudo e vejo a necessidade urgente da Revolução Cultural dos quadros de vanguarda.” Mao e a China foi o último livro que Lamarca leu. Estranhamente, em momento algum a ditadura veio bater à minha porta. Com um forte sentimento de rejeição, eu me autointitulei O Homem Invisível dos Anos de Chumbo.

Só tempos depois matei a charada. Em 1969 voltei para a Manchete e para o Rio. Tivesse ficado em São Paulo, a coisa seria bem diferente. Num documentário sobre Vladimir Herzog, vi colegas meus da Veja e da Realidade – ideologicamente autênticos sacristães comparados a mim – que foram presos e torturados nos porões do DOI-CODI em São Paulo. Eu tinha tudo a ver com Vlado: nascemos no mesmo ano e, quando deixei o Serviço Brasileiro da BBC em Londres, em 1965, ele foi ocupar a minha vaga. A volta para o “balneário da República” – quem diria? – salvou a minha vida.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Da Manchete para a Lava Jato: quando o inimigo morava ao lado...

Quando ainda não era vilão e o presídio de Benfica não fazia parte do seu currículo, o ex-presidente do TCE-RJ, Aloysio Alves, o primeiro a partir da esquerda, participa de uma comemoração na Manchete ao lado de Wilson Cunha, Roberto Muggiati, Lairton Cabral e Marechal. Este, na ponta direita, apesar de mais distante do personagem que hoje é alvo
da Operação Quinto do Ouro, protege o bolso: coincidência ou premonição?   

por Flávio Sépia

No ano passado, a Polícia Federal atirou no que viu - a Operação Quinto do Ouro, desdobramento da Lava Jato que atingiu figuras do Tribunal de Contas, Assembléia do Rio de Janeiro e da Fetranspor - e acertou no que não viu: um antigo personagem da Manchete.

Como então presidente do TCE-RJ, Aloysio Neves foi conduzido ao presídio de Benfica para cumprir prisão temporária. Antes jornalista, o conselheiro agora atrapalhado passou pelo Jornal do Commercio, foi colaborador da coluna Carlos Swann no Globo e, de 1970 a 1978, trabalhou na Bloch Editores. Começou como uma espécie de relações-públicas que evoluía no foyer do Teatro Adolpho Bloch, logo passou a colaborar com as revistas Domingo Ilustrado, Fatos & Fotos e Manchete.

Neves acalentava objetivos mais altos: tornou-se Assessor Especial da Presidência do Grupo Bloch Editores e Diretor Administrativo do Teatro Adolpho Bloch. Logo depois ingressou no serviço público e nos gabinetes de secretários e governadores até chegar a consultor de Neuzinha Brizola para amenidades, assessor legislativo de Sérgio Cabral, ao TCE-RJ e, finalmente, às grades.

Aloysio Neves ao receber a Medalha do Mérito
 Legislativo da Câmara dos Deputados.
Reprodução/TCE-RJ

O currículo de Aloysio Neves registra condecorações como o Colar do Mérito Judiciário, Comendador da Ordem do Mérito do Trabalho e uma "Medalha Avante Bombeiro". A Associação Brasileira dos Colunistas de Marketing e Propaganda lhe concedeu o prestigiado Diploma do Destaque do Ano de 2009 do Prêmio Colunistas de Publicidade. Não só os pares nacionais reconheceram as "subidas honras' do atual investigado na Operação Quinto do Ouro: a Rainha Elizabeth também foi enrolada e deu ao intrépido Aloysio a Medalha da Ordem Royal Victorian. É mole? E Marcelo Caetano, ex-Primeiro Ministro de Portugal pregou na lapela do brasileiro a insígnia de Oficial da Ordem Militar de Cristo.


A revista Veja Rio colocou na capa, na primeira edição de 2018, o endereço carioca mais badalado do momento: o presídio de Benfica, que entra para a história como o "resort" compulsório e oficial de 2017 para várias ex-autoridades e empresários. A matéria feita pelo repórter Rafael Sento Sé tem momentos revista "Caras" e revela a intimidade das "celebridades" do "castelo" de Benfica. Uma dessas inconfidências envolve Aloysio Neves.


A Veja Rio relata:"um escândalo de corrupção que veio à tona em meio à Operação Asfalto Sujo 2 acabou expondo um relacionamento que não seria da conta de ninguém não fosse o teor das conversas gravadas na investigação".

Pelo jeito, as histórias secretas de operações como Quinto do Ouro, Irmandade, Cui Bono, Leviatã, Tesouro Perdido, Lava Jato, Recebedor, Gotham City, Unfair Play, Descontrole, Senhor dos Anéis, Carne Fraca, Good Vibes e Saia Justa ainda vão fazer a alegria dos cineastas que investem no filão de longas e séries sobre delatados, delatores, justiceiros, heróis e vilões do novelão brasileiro.

sábado, 3 de junho de 2017

Quinze anos sem o repórter guerreiro • TIM LOPES NASCEU NA MANCHETE



Reprodução timlopes.com.br

por Roberto Muggiati

Da maré humana que escoou por MANCHETE ao longo das décadas, havia aquela que chafurdava nos subterrâneos obscuros da Bloch. Era a raça dos "siris", como eram chamados os contínuos. Camisa azul claro, calça azul marinho, eles percorriam todos os andares da casa e — além dos serviços básicos, como ir aos bancos e pagar as contas dos bacanas — executavam também as mais insólitas tarefas. E envolviam-se nas histórias mais estranhas.

Sammy, à minha direita, na redação
da Manchete, anos 70
Um deles, o Sammy Davis, caolho, muito parecido com o cantor americano, prometeu a Adolpho Bloch que convenceria a dona da casa vizinha ao prédio da Manchete a vender o terreno para ele. Depois de uns cinco anos de conversa, a velha senhora cedeu e Adolpho pôde construir seu terceiro prédio, colado aos outros dois. Se Sammy levou a almejada comissão — de um ou de outra, ou de ambos — ninguém ficou sabendo.

Um contínuo do Justino Martins, o Rosinei, que levava revistas para o escritor francês Jean Genet, hospedado ao lado, no Hotel Glória, acabou virando caso do escritor, homossexual militante, que ficou alguns meses no Rio. Rosinei parece ter gostado da sua nova atividade e também prestou serviços de delivery sexual para uma ex-repórter da Manchete que tinha virado autora best-seller e escrevia suas colaborações em casa.
Contínuo era profissão de alta rotatividade na Bloch. Como o mordomo dos romances policiais, o contínuo era sempre o culpado. E na revista Manchete, o setor mais nervoso da empresa, a toda hora tinha "siri" na fritura. O novo contínuo chegava sempre desconfiado, com o rabo entre as pernas, achando que iria sobrar para ele.

Em meados dos anos 1970 apareceu um destes, o Paulinho, garoto sério, tratando todo mundo de senhor, sem nenhuma intimidade. João Luiz Albuquerque, o chefe de reportagem, já nos primeiros dias falou: "Eu conheço esse cara de algum lugar." E ficou semanas matutando. Um belo dia, com um sorriso de triunfo, João Luiz exibiu um exemplar da coleção de Fatos&Fotos do início dos anos 1960. O nosso Paulinho era o famoso “Pablito Cubano”, menino pobre da Baixada que viajara no trem de aterrissagem de um avião do aeroporto do Galeão até Havana. Recebido com honras de chefe de estado por Fidel Castro, Paulinho foi repatriado e voltou ao Rio de avião, desta vez numa confortável poltrona.

Nos primeiros tempos da nossa masculina mensal EleEla, dirigida por Carlos Heitor Cony, vivíamos o auge do AI-5 e dos Anos de Chumbo. Peitinho de fora, nem pensar! Não eram permitidos nus, as moças apareciam de biquíni, e os textos eram bem comportados. Apesar de toda essa repressão, a ditadura militar exigia ainda a censura prévia. Antes da impressão, as páginas da revista, em arte final, eram levadas pelo contínuo à casa da censora — não sei por que, no caso do EleEla o censor era uma mulher. Certa vez, o Netto, que fazia este serviço, foi recebido pela censora num peignoir transparente. Rapaz sério, recém-casado, Netto — superado o choque inicial — desculpou-se polidamente dizendo que tinha de "fazer os bancos" e voltaria mais tarde.

Foi nesse berço improvável de heróis que surgiu um dia Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, nascido em Pelotas, RS, quarto de doze filhos. Aos oito anos, a família mudou-se para o Rio de Janeiro, instalando-se na favela da Mangueira. Aos vinte anos, em 1970, Arcanjo Antonino encontrou guarida como contínuo no Domingo Ilustrado, jornalão semanal dirigido por Samuel Wainer, que Adolpho Bloch resgatava do exílio parisiense após o golpe militar de 1964.

Reprodução
O rapaz de vinte anos ostentava uma frondosa cabeleira afro, que lhe valeu o apelido de Tim, dado pelo próprio Wainer. Ele abraçou orgulhoso o novo nome – Lopes, Tim Lopes – e passou a usá-lo nas primeiras matérias que fez para as revistas menores da Bloch, no vistoso prédio da Rua do Russell, na Praia do Flamengo. Repórter investigativo, era o que gostaria de ser, o sonho da sua vida. Um sonho que concretizou, para aprender – com a vida – que repórter investigativo é uma profissão de altíssimo risco neste país.



domingo, 25 de setembro de 2016

Instituto Moreira Salles adquire arquivos de fotos do "O Jornal", "Diário da Noite" e "Jornal do Commercio"



Ao longo da sua travessia jornalística muitas vezes polêmica mas sempre profícua, os Diários Associados produziram boa parte da memória fotojornalística brasileira.

Não apenas a geração de imagens que formam o espetacular acervo da revista "O Cruzeiro', que permanece ativo e preservado em poder do jornal Estado de Minas, mas o de dezenas de jornais de Assis Chateaubriand que registravam os fatos, especialmente do Rio de Janeiro, a antiga capital do país.

Segundo a coluna Ancelmo Gois, no Globo de hoje, o Instituto Moreira Salles, que mantém uma elogiável política de valorização do fotojornalismo, acaba de adquirir os arquivos do "Diário da Noite", do "O Jornal" e do "Jornal do Commercio".

Uma ótima notícia.

Impossível deixar de lembrar aqui, a propósito, o misterioso destino de um acervo igualmente importante.

Desde que foi leiloado, há alguns anos, o arquivo fotográfico das revistas da antiga Bloch (Manchete, Fatos & Fotos, Amiga, Desfile, Fatos, ElaEla, Sétimo Céu, Carinho, Tendência, Manchete Rural, Mulher de Hoje, Pais & Filhos, Enciclopédia Bloch, Domingo Ilustrado, Geográfica, entre outras publicações) permanece inalcançável.

Os maiores profissionais do país passaram pela Manchete. Inúmeros outros jovens fotógrafos, hoje consagrados, lá iniciaram suas carreiras.

Não se sabe, na verdade, onde estão e em que condições estão guardados milhões de negativos, cromos e ampliações produzidos ao longo de 48 anos, além de coleções particulares e jornalísticas anteriores a 1952, data de lançamento da Manchete, adquiridas por Adolpho Bloch. É tão frequente quanto inútil a busca, por parte de escritores, pesquisadores e documentaristas, de imagens icônicas do acervo sumido.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro já procurou informações via Justiça, há poucos anos.

Em vão.

Com o sumiço, rumores não confirmados, digamos, "lendas urbanas", correm entre alguns fotógrafos: um grupo de mídia teria adquirido secretamente o acervo; o arquivo não seria mais digno desse nome por ter sido desmembrado; o material já estaria deteriorado. Até uma versão mais hilária já foi considerada: Bill Gates comprou o arquivo, digitalizou tudo, e guardou os originais em uma antiga mina de sal.

Lamentavelmente, entre surrealidades e fantasias, o fato é que o acervo da Bloch não encontrou um IMS no meio do caminho.

Um IMS ou outra instituição pública ou privada capaz de um gesto de cidadania: o de recolher valiosa memória jornalística hoje à deriva.