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quarta-feira, 3 de abril de 2024

Fotomemória: Em 2 de abril de 1964, a última imagem de Jango antes da longa e trágica noite que subjugou o Brasil


Foto Revista Manchete

A coletânea "Aconteceu na Manchete - As histórias que ninguém contou", organizada pelo jornalista José Esmeraldo Gonçalves com o saudoso designer J.A.Barros, lançada em 2008, recuperou essa foto que a Manchete publicou com exclusividade mas, infelizmeente, sem crédito. Foi feita no dia 2 de abril de 1964. Adolpho Bloch teria sido avisado que João Goulart deixara o Palácio Laranjeiras e se dirigia ao Santos Dumont, protegido por uns poucos aliados, rumo a Brasília, e enviou uma fotógrafo ao aeroporto carioca. Em Brasília, o golpe já se consolidava. Havia no Planalto quem defendesse uma resistência com apoio de militares legalistas. Jango observou que a situação era irreversível, quis evitar derramamento de sangue, e partiu para Porto Alegre, sua última escala no Brasil, antes do longo exílio no Uruguai.





O Diário de Notícias noticiou que um grupo de oficiais da Marinha
queria empreender uma caçada ao presidente João Goulart.

Jango permaneceu em Brasília durante menos de quatro horas. Naquele momento, circulou uma informação de que comandos da Marinha estariam organizando uma caça feroz ao ainda presidente.
Os capítulos seguintes, a história registra. Jango não voltaria mais ao seu país. Faleceu na Argentina no dia 6 de dezembro de 1976. Causa oficial da morte: infarto. Trinta e sete anos depois foi iniciada uma investigação para apurar a suspeita de que ele poderia ter sido assassinado pela Operação Condor, um esquadrão de execuções de líderes democratas da América Latina montado pelas ditaduras do Chile, Brasil, Argentina e Uruguai. Para a família, dado o longo tempo desde o falecimento do ex-presidente, a exumação não foi cientificamente conclusiva. Um perito contratado pelos Goulart continuou defendendo a continuação da investigação, mas o processo foi encerrado.

Pouco mais de doze anos após a foto histórica no Santos Dumont, Jango foi enterrado em São Borja, como era seu desejo, mas até isso exigiu uma negociação com o governo. O carro que trazia o caixão do ex-presidente foi barrado em Uruguaiana por tropas do 3º Exército. Temendo a repercussão internacional do episódio, o ditador Ernesto Geisel mandou liberar a entrada e o serviço fúnebre, desde que não houvesse público, manifestações de familiares, de políticos, do povo em geral e cerimônia religiosa. Cerca de 10 mil soldados ocuparam São Borja. Apesar disso, calcula-se que mais de 30 mil pessoas ocuparam as ruas da pequena cidade gaúcha. Desafiando as ordens dos militares, o povo exigiu que o caixão fosse levado antes à igreja. No cemitério, Pedro Simon e Tancredo Neves fizeram discursos de despedidas. Sobre o caixão havia uma bandeira com a palavra Anistia, mas esse processo político, decretado em agosto de 1979, não mais alcançou João Goulart.

domingo, 15 de outubro de 2023

João Américo Barros (1931-2023): algumas linhas e imagens para a última página

João Américo Barros.
Paraty, 3 de setembro de 2023.
Foto: Arquivo Pessoal

por José Esmeraldo Gonçalves 

Esta última foto do João Américo Barros nos remete a um instante de profunda paz. Ele esteve em Paraty, no primeiro fim de semana de setembro, com a filha, Lúcia, e o genro Fernando e, de lá, enviou uma mensagem no whatsapp contando suas impressões da cidade. Barros gostava muito de História e a "capital" colonial do Ciclo do Ouro inspirou seu comentário. No domingo, dia 3, qundo voltava de Paraty enviou o que seria a derradeira mensagem. Queria saber do resultado do GP de Monza. A Fórmula 1 era outro dos seus interesses além do Flamengo que, naquele domingo, lhe deu a alegria de derrotar o Botafogo. "Em tempo: ganhamos do Bota", assim ele encerrou o papo virtual. Apenas dois dias depois foi atendido em emergência e, em seguida, levado à UTI com sintomas de uma pneumonia que resultou em infecção generalizada. Não foi embora sem luta. Aos 92 anos, resistiu por mais de um mês. 

O faixa preta Barros foi homenageado pelos colegas do aikido. Maio de 2023.
Foto: Arquivo Pessoal

A segunda foto foi feita em maio desse ano. Registra uma homenagem que a turma de aikido fez ao atleta que era faixa preta desde 2011, quando completou 80 anos. A imagem também é simbólica do seu jeito de ser. Barros não se isolou no outono da vida. Mantinha-se ativo no Facebook, voltou a pintar, era bem informado, conversava sobre política, sempre civilizado e ora com esperança ora com decepção. 

Em um dos seus artigos, ele abordou o ataque
à democracia em 8 de janeiro.

Lamentava não ter tempo para ver o Brasil que sonhamos, socialmente justo e desenvolvido, virar enfim uma realidade. Publicou neste blog reflexões políticas, profissionais e pessoais.

Bem no começo dos anos 1980, o então chefe de Arte da Fatos & Fotos, Ezio Speranza, deixou a Bloch. Barros, que entrou na editora como diagramador da revista Tendência e, em seguida, tornou-se diretor de Arte da Manchete Esportiva, foi indicado para o posto. Era o nome certo. Carregava no currículo nada menos do que O Cruzeiro, a mais importante revista ilustrada do Brasil até meados do anos 1960. Após uma temporada na FF, até 1986, ele foi transferido para a principal publicação da Bloch, a Manchete. Brincávamos que se tornara tríplice coroado como chefe de Arte por ter passado pelo O Cruzeiro, Fatos&Fotos e, finalmente, Manchete, as três revistas mais conhecidas no segmento ilustrado de atualidades e variedades. Trabalhei com o Barros por mais de 15 anos. Certamente enfrentamos bons e maus momentos naquelas revistas semanais intensas e desafiadoras. Este blog, para o qual ele criou o logotipo costuma recontar memórias das redações. Vou citar dois momentos que, tenho certeza, foram marcantes nas nossas trajetórias profissionais. Um de frustração e outro de realização. Em 1984, a Fatos & Fotos agonizava em praça pública travada por pouco investimento e baixa circulação em uma época em que a Bloch priorizava a decolagem da Rede Manchete. Carlos Heitor Cony, o diretor, Barros, o diretor de Arte e eu, editor-executivo, não aguentávamos mais carregar aquele fardo. Conversávamos os três sobre o que poderíamos propor à direção da empresa. 

João Américo Barros, José Esmeraldo e Carlos Heitor Cony.
Foto: Jussara Razzé
 

Cony pensou no assunto e, um dia, nos convidou para uma reunião fora da sede da Bloch. A ditadura também agonizava naquele época, talvez até mais do que a FF, embora ainda exibisse força.  Os milicos conseguiram barrar as Diretas-Já e manobravam para eleger Paulo Maluf no famigerado Colégio Eleitoral quando o nome de Tancredo Neves se impôs como uma alternativa. Cony havia sido convidado por Tancredo para dar  consultoria sobre a campanha. Foi várias vezes a Belo Horizonte. A ideia era - apesar de se tratar de uma eleição fechada em um Colégio eleitoral espúrio, criado pela ditadura, tentar falar com a população, procurar captar parte da força que o país demonstrara na épica jornada das Diretas-Já. 

Barros no Hotel Novo Mundo em 2005: almoço comemorativo
dos 20 anos do lançamento da revista Fatos: o melhor fracasso das nossas vidas.
Foto: Jussara Razzé  

E foi essa possibilidade de mudança no Brasil que Cony usou como argumento para levar a Adolpho Bloch a sugestão de fechar a Fatos & Fotos e lançar a Fatos, uma revista semanal de informação, análise, cultura, economia, política, reportagens investigativas e um time de colunistas, redatores e repórteres de referência. Em uma segunda reunião, fizemos um projeto detalhado para a Fatos. Barros criou o visual da nova revista. Foi feito um número zero, que Adolpho aprovou apesar da resistência de outros diretores. A primeira edição foi lançada em março de 1985. O que não sabíamos era que aquela resistência logo se transformaria em forte campanha interna liderada por pelo menos um jornalista que havia sido informante da ditadura e que mobilizou outros editores da Bloch em uma espécie de brigada contra a Fatos. Após um ano e quatro meses, a "jihad" formada pelo dedo-duro se transformou em sanção financeira. A empresa passou a atrasar sistematicamente o pagamento dos colaboradores, a maioria freelance. As reclamações da equipe, justas e insuportáveis, levaram Cony a virar literalmente a última página da Fatos, um projeto pelo qual lutamos até onde foi possível. Mais uma vez tivemos uma conversa a três e concluímos que não havia mais condição de tentar por em pé uma revista proscrita na própria editora. E, assim, as luzes da redação foram apagadas e eu e o Barros fomos incorporados à Manchete. Cony manobrou junto à direção da Bloch e parte da equipe foi acomodada em outras publicações da casa. 

Ficou o gosto amargo das noites insones de fechamento, do esforço perdido. A realização só viria cerca de 20 anos depois. A Bloch não existia mais em 2005 quando um grupo remanescente da antiga equipe da Fatos organizou um almoço no Hotel Novo Mundo para marcar os 20 anos do lançamento daquela revista, se viva ainda fosse. Foi durante esse encontro que nasceu a ideia de uma coletânea com as memórias dos bastidores das redações da Bloch. Depois de três anos de trabalho, com base em um projeto gráfico idealizado por J.A.Barros, foi lançado o livro "Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou" (Desiderata). Cony chamou a coletânea de "nossa pequena vingança" - e escreveu isso na página de rosto de um exemplar que autografou para mim. A história da Fatos e da "jihad" contra a revista estava lá, exposta e revelada. Naquele dia 3 de novembro de 2008, há 15 anos, com a Livraria da Travessa, no Leblon, lotada de amigos, a frustração foi curada. 

No capítulo que escreveu para a coletânea - "Quarenta e seis anos paginando os fatos e as fotos" - Barros contou sua longa e brilhante trajetória no jornalismo. Em meio às recordações, ele comentou o processo de informatização da Bloch Editores na segunda metade dos anos 1980. Designer formado no lápis, Barros assimilou com rapidez e naturalidade as novas tecnologias. Os analistas de computação mais jovens costumavam duvidar da capacidade das gerações mais rodadas dominarem hard e software. Ele desmoralizou o preconceito. Em poucas semanas tornou-se amigo de infância do Macintosh. Esse era o Barros. Vá bem, irmão.                                          

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O Teste Guilaroff de Cinefilia • Por Roberto Muggiati

Sydney Guilaroff e Marilyn Monroe

O primeiro cabelereiro a ter nome nos créditos


Guilaroff, o primeiro à esquerda, no enterro da amiga MM

Amantes do cinema se reconhecem pelo apego ao detalhe. No caso, aqueles créditos de produção que, nos anos 40 e 50 rolavam sempre no começo da “fita”. Dos atores principais ao diretor, passando por cenário, fotografia, música, orquestrações, figurinos e ... cabelos. De tanto ir ao cinema, ficávamos – os mais curiosos – com aqueles nomes gravados na memória. Foi assim que nosso diagramador João Américo Barros me surpreendeu uma tarde na redação ao perguntar a um crítico da
Manchete, à queima roupa, se ele conhecia Sydney Guilaroff. O crítico não era um crítico qualquer, mas um daqueles Moniz Vianna’s boys que galopavam com os cavalarianos de John Wayne no Monument Valley e davam relutantes duas ou três estrelas aos filmes em cartaz no famoso quadro de cotações do Correio da Manhã. Sem nenhum pudor ou culpa o crítico respondeu: “Sidinêi quem?” Vibrei com o Barros, Sydney Guilaroff foi um nome que, desde que o vi na tela pela primeira vez, eu carregaria na cabeça para o resto da vida, mesmo sem conhecer ainda sua incrível história. E saquei na hora também que o Barros tinha criado o teste definitivo de cinefilia. Se o cara ignorava Sydney Guilaroff, não merecia ser considerado cinéfilo, mesmo assinando todas as críticas do mundo. 

Joan Crawford

Filho de um casal russo, Sydney Guilaroff nasceu em Londres em 1907 e ganhou fama em Hollywood. Cabeleireiro principal da Metro Goldwyn Mayer, atuou em mais de 2000 filmes, shows de televisão e apresentações públicas. Tornou-se o primeiro cabeleireiro a ter o seu nome nos créditos de um filme. Em 1930, Guilaroff foi responsável pelo icônico penteado (“capacete”) de Louise Brooks, a maior estrela do cinema mudo. Mas foi Joan Crawford quem mudou sua vida: depois que Sydney penteou seus cabelos nunca mais quis abrir mão dos seus serviços. Durante três anos, a cada novo filme, ela atravessava a América de Hollywood a Nova York para que Sydney criasse um estilo de cabelos para cada papel. Irritado com aquilo, o chefão da MGM Louis B. Mayer resolveu o problema contratando Guilaroff para dirigir o departamento de cabelos do estúdio. Guilaroff trabalhou para a MGM de 1935 a 1970. Correu até a anedota de que, antes de filmarem o leão rugindo para o logo da MGM, Guilaroff penteou suas jubas. Veja aqui

https://www.youtube.com/watch?v=DhNMHcRSNdo

Vivien Leigh

Embora exclusivo da MGM, foi Guilaroff quem fez os penteados de Scarlett O’Hara em ...E o vento levou. Insatisfeita com os profissionais do estúdio de David O. Selznick, Vivien Leigh contratou Guilaroff para criar os penteados que ela desfila ao longo de um dos maiores filmes de todos os tempos. 

Claudette Colbert

Judy Garland

Lucille Ball

Greta Garbo em versão cacheada

E a Garbo como Ninotchka

Ingrid Bergman com o cabelo que virou moda
e foi capa da Time



Marlene Dietrich

Entre outras criações, Sydney assinou a franjinha de Claudette Colbert que ela adotaria para o resto da vida), as tranças de Judy Garland em O mágico de Oz, transformou Lucille Ball numa ruiva, fez os cabelos da turma de Cantando na chuva; modelou duas Garbos radicalmente opostas, em A dama das camélias e Ninotchka. Quando Ingrid Bergman ia estrelar em Por quem os sinos dobram – baseado no romance de Hemingway sobre a Guerra Civil da Espanha – o produtor David Selznick pediu a Guilaroff um corte despojado que o papel exigia. Os cabelos curtos e cacheados da heroína Maria viraram moda e foram adotados por mulheres no mundo inteiro. Já o estilo elaborado que Sydney criou para Marlene Dietrich em Kismet foi algo espetacular e também ousada e diferente a peruca que criou para Marlene em A marca da maldade, de Orson Welles. 

Jean Harlow

Fez ainda perucas para Jean Harlow, a Vênus Platinada, que estava ficando calva de tanto oxigenar os cabelos e morreu precocemente aos 26 anos. E como Esther Williams mantinha os cabelos em ordem sem sair das piscinas? Guilaroff encontrou uma solução simples: um toque de vaselina. 

Guilaroff com Liz Taylor

Grace Kelly no altar by Guilaroff. 
Fotos DP

Elizabeth Taylor, outra estrela que se tornou sua amiga, ameaçou abandonar a filmagem de Cleópatra na Inglaterra quando os sindicatos locais proibiram o ingresso de Guilaroff. Liz insistiu e conseguiu que Sydney fizesse seus cabelos todas as manhãs bem cedo, sem colocar os pés nos estúdios em Pinewood. Foi ele quem penteou Marilyn Monroe para o seu primeiro teste e ficou seu amigo e confidente pelo resto da vida. Foi o cabeleireiro do ultimo filme de MM, Os desajustados, e um dos amigos que carregaram o caixão da estrela. . "Sydney conhecia todo mundo e os segredos de cada um”, disse Debbie Reynolds, estrela da Cantando na chuva e sua amiga. “E era totalmente confiável.” Quando Grace Kelly casou com Rainier de Mônaco, Guilaroff atravessou o Atlântico em voo VIP a fim de preparar suas madeixas para a cerimônia nupcial. 

Guilaroff nunca se casou e em 1938 se tornou o primeiro solteiro nos Estados Unidos a adotar um filho (chamou-o Jon, em homenagem a Joan Crawford.) O estado da Califórnia tentou sustar a adoção, mas Guilaroff não só venceu a causa, como adotaria mais dois filhos. Em seu livro de memorias, Crowning Glories, ele alega que teve relações românticas com greta Garbo e Ava Gardner. Não só as estrelas o adoravam, Sydney era o cabeleireiro favorito de astros como Cary Grant, Clark Gable, Fred Astaire, James Stewart, Spencer Tracy, Tyrone Power, Robert Taylor e Frank Sinatra. 

Satisfeito? Agora você já pode passar no Teste de Cinefilia Sydney Guilaroff…


PS • Nem nossa Pequena Notável escapou de Sydney Guilaroff. Em 1948, o produtor Joe Pasternak convidou Carmen Miranda a fazer dois musicais em cores para a Metro Goldwyn Mayer, A Date with Judy/O Príncipe Encantado e Nancy Goes to Rio/Romance carioca (1950). Particularmente na primeira produção a MGM se esmerou para oferecer uma imagem diferente de Carmen, sem os turbantes típicos e revelando pela primeira vez seus cabelos, com penteados criados por Guilaroff e trocando os trajes de baiana por vestidos e chapéus elegantes desenhados por Helen Rose.