sábado, 22 de agosto de 2020

Lairton Cabral: um amigo que se despede

 


Lairton Cabral 


por José Esmeraldo Gonçalves

Dez entre dez jornalistas que passaram pela Bloch viram, em algum momento, essa imagem, ao vivo. 

Lairton Cabral na sua sala do oitavo andar do prédio da Rua do Russel, ao telefone. 

Lalá, como era carinhosamente chamado nas internas da Manchete, tinha multifunções executivas junto à diretoria da empresa, mas para as redações era o eficiente "agente de turismo" que marcava as passagens aéreas das equipes de reportagem, reservava hotéis e transportes locais. Não era pouco trabalho para atender à rotina de cerca de 20 revistas. Uma publicação como a Desfile cobria as semanas da moda em Paris, Milão e Nova York e, além, disso, pelo menos uma vez por ano, levava à Europa repórteres, fotógrafos, modelos e produtoras para edições especiais de coleções de verão. A Manchete, que investia regularmente em viagens internacionais ou pelo Brasil, tinha as grandes coberturas fixas, do tipo Copas do Mundo, Olimpíadas, Copa América etc que mobilizavam comitivas numerosas, muitos deslocamentos e até roteiros imprevistos determinados pelos resultados esportivos. Problemas que  pousavam na mesa do Lairton e de lá decolavam perfeitamente resolvidos. 

Quando a Bloch instalou a Rede Manchete, Lairton assumiu, com a calma de sempre, as intensas demandas logísticas da TV. Ele chegou à empresa em julho de 1968, vindo da antiga Panair, para secretariar as redações. Com o tempo, ganhou novas funções próximas à "sala de crise", de Adolpho Bloch e Pedro Jack Kapeller, onde paravam as mais diversas situações em busca de soluções. 

Na coletânea "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" (Desiderata), Lairton recordou um desses casos. 

"Adolpho era um homem de objetivos e movia mundos para alcançá-los. Certa vez, ele convocou à sua sala o diretor de teatro Flávio Rangel e lhe pediu que fosse a Santiago do Chile para assistir ao musical Pippin, em cartaz na capital chilena. 'Quero montar essa peça aqui no nosso teatro. Dizem que é uma maravilha. Quero sua opinião", falou Adolpho. Espantado, Flávio, que para o governo militar era um subversivo perigoso, respondeu que não o deixariam viajar, ainda mais para o Chile, que abrigava exilados brasileiros. Nem passaporte ele tinha naquele momento. Adolpho limitou-se a dizer que 'dava um jeito'. 'Vamos lá em casa que eu verei o que posso fazer'. E lá fomos nós, Carlos Heitor Cony, eu, Flávio e Isolda. Um parêntese: Isolda, compositora e autora de um dos maiores sucessos de Roberto Carlos, a canção Outra Vez, trabalhava na Bloch e teria um papel-chave na história. Quem imaginava que Adolpho acionaria algum contato para conseguir a liberação da viagem de Flávio estava enganado: a reunião era para encontrar um meio criativo de driblar a proibição. Na época, Isolda era amiga de um inspetor de polícia e tinha algum conhecimento na área. Ficou resolvido que eu - sobrou para mim - faria o papel do general Antônio Faustino, então secretário de Segurança do Rio de Janeiro, e ligaria para a Polícia Federal pedindo que emitissem um documento de viagem para o diretor de teatro. O próprio Flávio, imitando voz feminina, e daquelas bem melosas, ligou para a PF, identificou-se como secretária do general Faustino e pediu que o delegado do setor aguardasse. 'O secretário de Segurança quer dar uma palavrinha', disse a "secretária". Flávio me passou o telefone. Tentei fazer uma voz amistosa mas autoritária e determinei ao delegado que naquele momento eu, o "general Faustino", estava autorizando a emissão de um documento para a viagem do diretor Flávio Rangel ao Chile, tratava-se de um assunto de importância para o governo. Em tempo de regime militar, embora a PF não fosse subordinada à secretaria de Segurança, palavra de general era, naturalmente, uma ordem. Antes de desligar o telefone, o "general" informou que Cony e Flávio, acompanhados da funcionária Isolda, estavam a caminho da sede da PF, na Praça Mauá, para apanhar com urgência o referido documento. 'Perfeitamente, general, está feito. Tenha uma boa tarde', respondeu o solícito delegado. O resto da história é conhecido. Flávio viu e aprovou Pippin. Adolpho comprou os direitos e montou o musical no seu teatro, no Edifício Manchete. A peça foi um sucesso e o general Faustino jamais soube do papel  fundamental e involuntário que teve na produção de um dos maiores musicais já exibidos no Brasil."

Lairton trabalhou na Bloch até agosto de 2000, data da dramática falência da editora. Jamais deixou de manter contato com os antigos colegas e não faltava aos almoços de fim de ano. Não faz muito tempo, já com a pandemia em curso, ele telefonou para vários amigos ex-Bloch, que sabia em quarentena, para saber notícias. 

Lairton faleceu no dia 18 de agosto, após complicações decorrentes de um coágulo no cérebro. À família, o nosso abraço de pêsames. Além das saudades, ele nos deixa as boas lembranças da sua competência, do companheirismo e integridade, do respeito com que tratava a todos igualmente, sem ligar para funções descritas em crachás. Tenho certeza de que para todos os colegas da velha Bloch foi um privilégio tê-lo como amigo. 

Que o Lalá descanse em paz. 

 


7 comentários:

Nilton Muniz disse...

Grande Lairton, querido Lalá. Enquanto lia o texto, passou-me um filme de nossa convivência diária, que, muito comum, se estendia aos finais de semana, quando aparecia para organizar alguns trabalhos que se acumulavam por falta de tempo, silêncio e tranquilidade para realizá-los. E por ali ficava até altas horas com seu pigarro, enquanto seus dedos ágeis - diziam que tinha vento nos dedos - datilografava memorandos e outros despachos. Não conheci ou conheço alguém com a tanta gentileza, boa vontade e bom humor para lidar com pessoas e pepinos que pousavam em sua mesa.Que capacidade de trabalho! Há até uma história muito engraçada, certamente entre muitas outras, que me faz rir até hoje quando lembro. É a seguinte: Em meio às papeladas, canetas, peso de papéis, além de almofadas de carimbos, havia uma imagem de madeira esculpida com imagem de uma santa. Acho que era um presente. O curioso é que virando essa santa a parte de trás era a figura de um pênis! Isto mesmo, um pênis! aquela figura ali na mesa que ele gostava de exibir representava o sagrado e o profano. Pois bem, um belo dia a peça sumiu da sua mesa! escafedeu, afanaram. Mas quem afanou? O oitavo andar inteiro foi vasculhado: telex, serviços editoriais, redação, sala de reportagem,nada! Pairava muito desconfiança mas nenhuma certeza. Sumiu!
Passados alguns meses, sei lá, uns quatro ou mais, numa segunda-feira apareceu logo pela manhã o Henrique, filho do general da banda, o glorioso Blecaute, comentando o aniversário bonito que fez para a filha. E tirou da sua mala 007 umas fotos da festa: dos enfeites, do bolo e dos convidados cantando parabéns. Mostrou para o Vicentinho, Amauri e depois seguiu para a sala do Lairton. Não sei quanto tempo levou lá: 10, 20, minutos? Mas sei que a voz do Lairton se alçou num tom nunca antes ouvido através de um sonoro: Filho da puta! Fomos checar o inusitado. E para a nossa surpresa, vimos o Lairton com o dedo em riste e com a outra balançando uma foto. Filha da puta! ladrão, quero a minha escultura de volta! E não é que ele tinha razão? E aí verificamos a tal foto e vimos que a dita escultura enfeitava a estante da sala do Henrique e que ele ao realizar as fotos se esqueceu de esconder o flagrante ali candidamente pousado na estante e que saiu na foto, do lado esquerdo da aniversariante. A peça foi devolvida. Grande ser humano o Lairton. Descanse em paz!

Mauricio Cabral disse...

0brigado a todos amigos e companheiros pelo carinho e consideração pelo meu Pai.
Mauricio Cabral.

Administrador disse...

Mensagem enviadas por Whatsapp para José Carlos Jesus e repassada ao blog.
"Quando o Roberto faleceu em 2014, quem estava lá para velá-lo? Lairton, o Lalá. Ele chorou como uma criança. Um amigo se fora. Eles andavam sempre juntos. Roberto o levou para trabalhar com ele na Diretoria de Publicação do TCMRJ, de 2000 a 2004, quando Roberto pediu exoneração. Fizeram grandes mudanças por lá. Era um amigo inestimável, brincalhão e sempre bem humorado. Que descanse em paz. Espero que encontre o Bob Mota como ele chamava o Roberto. Meu coração partiu um pouco. Lembro do Lalá com a mão no meu pescoço, chorando comigo.
Ai, Zé!!
Que triste.
Janete Mota

Administrador disse...

Mensagens enviadas via Facebook
João Luiz Bulcão
Bela homenagem. Saudades. Abçs
------------------------------------------------
Ana Lucia Bizinover
Lindo texto Esmeraldo! Lalá era nosso porto seguro quando parecia que o mundo ia acabar no Reino Encantado do Russel. Certamente o mais amado! O príncipe encantado! Lalá te amamos muito♡♡♡♡
--------------------------------------------------
Marcello De Oliveira Bomfim
Ele marcou a minha vida na Bloch. Lembro sempre que o Roberto Barreira pedia pra eu ir na sala do Lalá pegar as passagens aerias pra São Paulo, chegando lá ele me chamava de Barrerinha, e me entregava as passagens e eu perguntava. Lalá cadê a minha passagem? E Lairton perguntava: Qual o percurso? E eu respondia, Nova Iguaçu x Rio, Rio x Nova Iguaçu. Lairton dava uma gostosa gargalhada.
-----------------------------------------------
Gleise Alves
Grandissimo Lalá...! 😕
=================================================

Maria Alice Mariano
Esmeraldo belíssimo texto é belíssima homenagem ao Lalá, ele era amado por todos nós.👏👏👏👏👏

J.A.Barros disse...

Esse Roberto referido no texto era o Roberto Mota, jornalista e mais tarde colunista da revista Manchete? Eu e Roberto Mota nos conhecemos quando ele foi trabalhar na revista O Cruzeiro, com Raul Giudicelli, como editor da revista. Muito inteligente e ágil no trato com os amigos e colegas. Lamentei muito a sua ida porque, enquanto secretário no TCMRJ, criou um página na Internet e através dela conversávamos e nos divertíamos lembrando dos tempos do jornalismo no O Cruzeiro. Bons tempos aqueles. Roberto Mota se estivesse aqui no mundo dos homens iria sentir muito a passagem do seu amigo Lalá.

J.A.Barros disse...

Essa história, envolvendo Lairton, é alem de fantástica , é mirabolante. Uma história que diz bem quem era Adolpho Bloch. Um homem além de seu tempo. Corajoso e audacioso criou a Bloch Editores no peito e na coragem e Wilson Passos – engenheiro aeronáutico –
foi trabalhar na Gráfica Bloch levado por anúncio na seção de empregos de um classificado de jornal é admitido. Um ano depois era um dos lançadores da revista Manchete e contava que depois do segundo número, Adolfo Bloch teria dito que se não entrasse nenhum anúncio, fecharia a revista. No dia seguinte entrou um anúncio de meia página e a revista continuou a ser lançada semanalmente. A vida do Adolpho Bloch é cheia de histórias e Lairton que trabalhava, também na mesma sala do Adolpho, participava dessas histórias como cúmplice das artimanhas do patrão. Muitas vezes, tinha de chegar mais cedo na Bloch e quando passava no 8º andar, encontrava Lairton, às 7 horas da manhã sem camisa – com o ar condicionado desligado – trabalhando na sala do Adolpho Bloch. Tinha virado a noite separando uma série de documentos para serem contabilizados. Lairton não tinha hora certa para trabalhar, virava a noite, emendava com o dia sempre sorrindo e quebrando galhos e ajudando amigos e colegas de trabalho. Até hoje, era o mesmo Lairton. Continuava mantendo a sua relação de de amizade com aqueles que criou na Bloch e telefonava sempre para cada um de nos, para saber como estávamos. Lairton, para sempre.

J.A.Barros disse...

Por duas vezes, depois do fechamento da Manchete, Lairton veio parar na minha casa, aqui em Icaraí. Pela sua mão, veio o seu netinho e por umas duas horas ficamos recordando os tempos em que éramos felizes no prédio do Russel . Na segunda vez , Lairton tinha uma consulta com seu medico na Moreira César – em Icafraí – e aproveitou passou em casa e mais uma vez ficamos rindo contando histórias da Manchete.
Lairton, uma pessoa diferente, para ele, em primeiro lugar estava os amigos e cultivou esse sentimento até os seus últimos dias aqui neste canto do brasil. Lairton, você é inesquecível