terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Os 100 anos de Ulisses • Por Roberto Muggiati

Joyce com Sylvia Beach na Shakespeare and Company, coberta de cartazes da luta
contra a censura do livro.

Num Bloomsday recente, visita em roupas de época ao santuário etílico de
David Byrne, em Dublin.

O romance mais importante da literatura moderna foi publicado em Paris, em 2 de fevereiro de 1922, uma quinta-feira. Sua editora, a americana Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare and Company, escolheu a data para homenagear o autor, James Joyce, que completava quarenta anos naquele dia. No plano realista, o livro descreve 18 horas na vida de Leopold Bloom, um modesto corretor de publicidade para jornais na Dublin de 1904. Mas James Joyce não se ateve apenas à ideia inicial e resolveu complicar sua vida. Inventou de amarrar sua história à grande narrativa da Odisseia de Homero, criando toda uma simbologia submersa para seu romance de 550 páginas. E foi ainda mais longe com seu conceito do “stream of consciousness” (fluxo da consciência) e uma ousada desconstrução da linguagem, com jogos de palavras, neologismos e outras acrobacias verbais. Ulisses foi escrito entre 1914 e 1921, em Trieste (Itália), Zurique (Suíça) e Paris (França) – sete anos, quase o equivalente à jornada de Odisseu (Ulisses em latim), que, depois de conquistar Troia, enfrentou todo tipo de obstáculos e demorou dez anos para voltar a sua casa em Ítaca.

Leopold Bloom, um judeu irlandês, é segundo o crítico Michael Thorpe, “na visão de Joyce um Ulisses moderno ou Um Qualquer, fraco e forte, cauteloso e precipitado, herói e covarde, englobando os múltiplos aspectos de cada ser humano e de toda a humanidade.” 

Por suas referências explícitas à fisiologia e à sexualidade humanas, Ulisses foi censurado em países como Reino Unido e Estados Unidos. Sua apreensão gerou o processo Estados Unidos versus Um Livro Intitulado Ulisses por James Joyce e a histórica decisão do juiz John M. Woolsey, em 6 de dezembro de 1933, declarando que Ulisses não era pornográfica, em parte alguma do livro se notava “a lascívia do sensualista”. Um apelo da promotoria retardou a vigência da decisão. A Random House, que tivera os livros aprendidos, já estava com tudo preparado para uma reimpressão. Quando a decisão de Woolsey foi confirmada, por dois votos contra um, uma edição de cem exemplares foi posta à venda em janeiro de 1934 para garantir os direitos autorais nos Estados Unidos. Foi a primeira publicação legal de Ulisses num país de língua inglesa, doze anos depois do seu lançamento em Paris.

Apesar da dificuldade da sua leitura, Ulisses se tornaria um culto ao longo de várias décadas. O dia em que transcorria a história, 16 de junho de 1904, foi batizado de Bloomsday e, a partir do meio século da data, em 1954, passou a ser comemorado em Dublin, com visitas aos locais citados pelo livro, em particular o David Byrne’s pub, onde Leopold Bloom faz um lanche à uma da tarde com um sanduiche de queijo gorgonzola e uma taça de Borgonha. De lá para cá, a celebração do Bloomsday cresceu no mundo inteiro, assumindo em alguns locais ares de verdadeiro Carnaval.

Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904 para ser imortalizado em sua obra porque foi o dia em que teve a primeira relação sexual com sua futura companheira, Nora Barnacle (apesar de a imprensa irlandesa publicar que, nesse dia, eles "caminharam juntos" pela primeira vez). Nora, vinte anos, era virgem e teve medo de completar o coito. Então masturbou Joyce "com os olhos de uma santa", como o escritor relatou numa carta.

A pandemia travou os festejos do Bloomsday, mas – quem sabe? – no próximo dia 16 de junho o mundo possa voltar a festejar o centenário Ulisses em alto estilo. 


PSNa Suíça para cobrir o Festival de Jazz de Montreux em 1985, resolvi fazer uma visita em Zurique ao meu velho amigo James Joyce. Sabia que desde 13 de janeiro de 1941 ele tinha sua derradeira morada – numa vida de muitos endereços –  no Cemitério de Fluntern. Ficava num morro nas proximidades do Jardim Zoológico. Subimos de bonde – eu e Lena, minha mulher e fotógrafa favorita – quando saltamos no ponto da necrópole duas jovens chinesas ou coreanas vieram em desabalada carreira até nós, saquei na hora, “James Joyce? This way!” Sou sempre solidário com os gatos pingados do turismo cultural, na contramão das massas amorfas que acorrem às Disneylândias da vida. 
Ezra Pound e a estátua de Joyce no Cemitério de Fluntern

No silêncio verde do cemitério, surge de repente uma figura saída de uma cena fantasmagórica de Ingmar Bergman, uma senhora de 1m80, toda de branco, nos indicou sem falar palavra ao local do túmulo de Joyce. Eu sabia que ali tinha uma escultura do escritor em tamanho natural,  de pernas cruzadas, lendo um livro. Impressionara-me certa vez uma foto de Ezra Pound defrontando-se com a estátua de Joyce – pareciam  estar conversando, ambos vivos – ou Pound já entrara na outra dimensão e não se dera conta...
Foto Lena Muggiati

Fiz todo tipo de pose com Joyce, era um dia frio de verão suíço – sempre é – cobri suas costas com meu casaco de camurça. Joyce segurava um livro aberto, coloquei entre as páginas aquelas moedinhas de franco suíço que sempre acabam sobrando, esperava dar início a um ritual, não sei se colou... 
Hoje, voltando atrás no tempo, torci para que fosse Bloomsday. Conferi, não foi: aquele meu primeiro e último encontro com James Joyce aconteceu em 16 de julho, exatamente um mês depois...

2 comentários:

Unknown disse...

Prezados, como consigo falar com vocês?
Teria algum e-mail para conversarmos?

Administrador disse...

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