Dezembro de 1961: no Muro de Berlim, erguido quatro meses antes. |
Raul Giudicelli, o Grande Reacionário das redações – simpatizante do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) durante os Anos de Chumbo – decretava: “Editor não reporta, editor não escreve; editor edita!” Sempre me insurgi contra essa sandice. O repórter é a célula-mater do jornalismo. Durante os 68 anos de carreira (que completo no próximo dia 15 de março) acordei todo dia com a alma de repórter ligada. Quando me perguntam qual a qualidade principal exigida de um jornalista eu respondo: “A curiosidade. Por tudo, pela vida, pelo mundo, pelas pessoas. Se você não tem alma de repórter, vá trabalhar num banco, arranje um emprego público, torne-se até um milionário, mas jornalista você não vai ser nunca. Ontem, Dia Nacional do Repórter, descobri uma coisa curiosa da qual ainda não tinha me dado conta. Dos meus quase 70 anos de jornalismo,só exerci nominalmente a função de repórter no curto período de dois anos e quatro meses, como repórter especial da revista Manchete, ainda em Frei Caneca, entre novembro de 1965 e março de 1968. (Comecei em 1954 na Gazeta do Povo de Curitiba já como redator, depois estudei jornalismo em Paris e passei três anos em Londres, no Serviço Brasileiro da BBC.) Depois do curso de jornalismo em Paris, visitei a Alemanha como jornalista convidado em dezembro de 1961. Em retribuição, vi-me usado como propaganda anticomunista, fotografado sob vários ângulos diante do Muro de Berlim, erguido quatro meses antes. Os anfitriões capitalistas nos tratavam regiamente. Uma noite, jantando na cobertura do Hotel Hilton de Berlim, me vi como penetra no coquetel de lançamento do filme “Julgamento em Nuremberg”, cara a cara com ídolos como Montgomery Clift,Spencer Tracy e Judy Garland. Foi durante minha estada em Berlim que se negociou a troca de dois famosos acusados de espionagem: o piloto americano Francis Gary Powers e o agente russo Rudolf Abel (no filme de Steven Spielberg “Ponte dos Espiões”(2015), Tom Hanks faz o papel do advogado negociador.)
Na BBC, no ano do quarto centenário de nascimento de Shakespeare, 1964, fui ao teatro de Stratford-upon-Avon cobrir a estreia da peça “Ricardo III”. Sentei ao lado do maior crítico teatral de fala inglesa, Kenneth Tynan. Shakespeariano da gema, em 1969 ele surpreenderia o mundo com o irreverente musical “Oh! Calcutta!” No ano anterior, para celebrar Hemingway, fui ao famoso festival de touradas de Las San Fermines, em Pamplona, no país basco espanhol. Dez anos depois, na redação de Manchete, escrevi na série Obras Primas que Poucos Leram sobre o romance de Hemingway “O sol também se levanta”, o autorretrato da Geração Perdida, que se passa durante Las San Fermines.
Iniciando na Manchete como “repórter especial”, devido ao domínio de línguas, escapei do rito de passagem do “foca”. Geralmente, no primeiro dia de trabalho, ele era mandado à oficina para buscar uma calandra, aquele pesado cilindro metálico atrelado à máquina de impressão... Ou então cobrado rispidamente: “Vá urgente ao Jardim Zoológico entrevistar o diretor, o Dr. Leão! Se não estiver, procure a secretária, Dona Ema...” Tive bons momentos no breve período da Manchete, percorri toda a Baixada Fluminense inundada pelas chuvas do verão de 1966, fui a Jacarepaguá entrevistar o vidente que previu a catástrofe (para a Rolleiflex do Raimundo Costa o farsante posou de turbante diante de uma bola de cristal). Outro episódio típico da vida de um repórter: de terno e gravata (obrigatórios) fui comprar uma foto na Última Hora,na Praça da Bandeira – mais conhecida como Praça da Banheira – com água pela cintura.
Passei um sábado inteiro na Casa da Manchete em Teresópolis para uma entrevista exclusiva com o Dr. Albert Sabin, que inverteu os papeis: primeiro ele me entrevistaria, para saber se eu estava à altura da empreitada: “Tell me, young man, vaaattt is can-cerr?” Aprovado, acabei me tornando, para os próximos 25 anos, o entrevistador “by appointment” do Dr. Sabin, incluindo uma entrevista gravada para o lançamento da Rede Manchete que custou um sábado da minha vida, com várias horas de estúdio para legendar as falas em português. Amante do teatro, Zevi Ghivelder incumbiu-me de entrevistar o grande ator shakespeariano Sir John Gielgud, em visita ao Rio, jamais esquecerei aquela voz metálica maravilhosa. Fiz uma entrevista virtual com Jorge Luís Borges – um lance tipicamente borgiano:elaborei as perguntas que o fotógrafo Italo Sani gravou com Borges em Buenos Aires, onde fez fotos fabulosas do mestre, então diretor da Biblioteca Nacional.
Carnaval de 1967 no Copacabana Palace, o cacófato é irresistível: “Viva Gina!” |
Excitante mesmo foi encontrar-me com Gina Lollobrigida no Carnaval de 1967, o intérprete era Alessandro Porro, mas falei diretamente em italiano com a diva, paramentada de dama da Belle Époque para o Baile do Copacabana Palace.
Deixei a Manchete em 1968 para ser um dos editores da equipe que lançaria a revista Veja. Lá, almocei no bandejão com os emergentes Mutantes. O único almoço VIP, numa saleta na cobertura do prédio do Abril, foi quando ajudei o capo Victor Civita a receber Abelardo Chacrinha Barbosa, no auge da fama com o seu bordão “quem não comunica, se trumbica!” Quando Antônio das Mortes/O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro concorria ao Festival de Cannes em 1969, comecei a preparar uma possível matéria de capa, como editor de Artes e Espetáculos da Veja. Glauber, gênio rebelde, era também um incrível marqueteiro e me aparece inopinadamente um dia na redação, brindando-me com histórias de cocheira (afinal, era uma saga equestre) das filmagens.Contou como uma pesada câmera foi perigosamente içada por meio de frágeis cordas a uma escarpada montanha no sertão baiano. Terminada com sucesso a complicada operação, Glauber e Maurício do Vale (Antônio das Mortes) se entreolham.
– Deus existe? – diz um.
– É possível – conclui o outro.
Cannes deu a Glauber a Palma de Ouro de direção, Glauber foi capa da Veja e o editor Mino Carta se dignou, na sua “conversa com o leitor”, a conferir a autoria da matéria a mim, numa revista em que os textos raramente eram creditados.
De volta à Bloch, depois de um ano como editor de Fatos&Fotos e outro ano como chefe de redação da EleEla, dirigida pelo Cony, sou convidado por Justino Martins para ser o seu “segundo” na Manchete. A partir de 1975, assumo a direção da revista. Não abro mão da atividade de repórter.
Julho de 2009: com Hermeto Pascoal e Aline Morena na Serra Catarinense. |
Em 1979 vou cobrir a Noite Brasileira no Festival de Jazz de Montreux com Hermeto Pascoal e Elis Regina. Tive o privilégio de viajar do Galeão até Genebra com o Bruxo e toda sua banda. Nasceu aí uma amizade de mais de quarenta anos. Outro gênio marqueteiro, Hermeto lançou em 1987 o álbum “Só não toca quem não quer”, em que cada faixa era dedicada a um crítico de música, a minha chamava-se “Viagem”. De 1985 a 1988 compareço às edições de Montreux com minha mulher Lena, que faz a cobertura fotográfica. Paralelamente, fazemos uma matéria para a Geográfica,destaque para “A Suíça de Hemingway” e “Sherlock Holmes está vivo e mora na Suíça”, com visitas ao castelo de Arthur Conan Doyle em Lucens e às cachoeiras de Reichenbach, onde Holmes e seu arqui-inimigo Moriarty travaram uma luta mortal. Em 1985,aproveitei a ida a Montreux para entrevistar um dos personagens mais misteriosos do Caso Baumgarten, o coronel Ari Aguiar Freire, adido militar do Brasil em Genebra, que rompeu um longo silêncio numa exclusiva para a Manchete.
Julho de 1986: de fraque e cartola aguardando o beijo do casamento real na sacada do Palácio de Buckingham. |
Em 1986, Lena e eu esticamos a viagem até Londres para cobrir o casamento real do Príncipe Andrew. Para comparecer à cerimônia na Abadia de Westminster, precisei alugar fraque e cartola, quem pagou as 150 libras foi nossa correspondente em Londres, Marina Wodtke, até hoje não foi reembolsada pela Bloch. Só dias depois ficamos sabendo que a Abadia, no auge do terrorismo do IRA,ia ser explodida, a contraespionagem britânica detectou o plano a tempo, com as bombas já devidamente instaladas nas fendas da imensa catedral de pedra. Um risco mais subjetivo eu corri ao me ver a sós no banheiro da Abadia com Elton John, amigo de Andrew e Fergie. Na matéria sobre o casamento, escrevi que, com amizades exóticas como aquela, o casamento não iria muito longe. Não só estava certo, como Andrew, acusado de abuso sexual, é hoje um pária entre os Windsor, destituído de todos os títulos e patentes militares.
A Manchete tinha uma bela série literária ilustrada comprada de uma revista italiana, Viagens Imaginárias. Em 1979, numa viagem oficial à Alemanha para conhecer as principais revistas semanais do país, publiquei “O mundo do jovem Werther de Goethe”. Em 1986, aproveitei a estada em Londres para fazer, com fotos de Lena, a Viagem Imaginária “A Londres de Sherlock Holmes”. A matéria foi comprada até por revistas estrangeiras.
Já no pós-falência da Bloch, entrei no regime do frila. Uma de minhas melhores fases, enquanto a mídia impressa ainda contava, foi fazendo os perfis da série “Gente & Histórias” na revista Contigo, a convite do ex-companheiro de Manchete José Esmeraldo Gonçalves. Viajei muito entre 2009 e 2014. Conheci o lixão de Gramacho com Nanko van Buuren, um holandês que toca uma dezena de projetos com suas ONGs; voltei a Gramacho para fazer um perfil do ex-catador de lixo Sebastião Carlos dos Santos, personagem principal do documentário que concorreu ao Oscar “Lixo Extraordináreio”, sobre a obra do arista plástico Vik Muniz. Conversei com Lizzie Bravo, a brasileira que gravou com os Beatles em Abbey Road; entrevistei a modelo brasileira Betty Lagardère, herdeira de um dos homens mais ricos do mundo,que num surto de paranoia exigiu que eu assinasse um documento de responsabilidade sobre o que fosse publicado; falei com Sérgio Ricardo em seu apartamento no Vidigal sobre a noite da “Violada em pleno auditório”, quando, vaiado pela plateia, quebrou seu instrumento num festival de música; penetrei nos perigosos desvãos do Complexo do Alemão para contar a história de Irlan dos Santos, o menino da favela que se tornou estrela do American Ballet Theatre em, Nova York; fiz perfis-obituários de Oscar Niemeyer, Paulo Moura, John Casablancas e Nelson Mandela. Minha primeira matéria foi um perfil da professora Cleonice Beradinelli, quando foi eleita pela Academia Brasileira de Letras em abril de 2009; Dona Cleo continua firme e forte, duplamente imortal, com 105 anos.
O jazz me levou para muitos lugares, só não me levou à Escadaria de Odessa, aquele monumento arquitetônico consagrado pela maior cena na história do cinema: o fuzilamento de inocentes por cossacos no filme de Sergei Eisenstein “O encouraçado Potemkim”. Explico: fiz traduções para a rádio A Voz da Rússia e os russos, depois de anexarem a Crimeia, inventaram um festival, o Odessa JazzFest, pediram minhas referências, mas o convite não veio, acho que foi muito em cima da hora.
No inverno de 2009, fui lançar meu livro “Improvisando soluções” em Florianópolis, num centro cultural em que Hermeto Pascoal dava um laboratório de sopros. Nosso reencontro foi num hotel-butique na Lagoa da Conceição, assim que me viu o Bruxo, grande trocadilhista, correu para me contar a última: “Muggiate, tá vendo aqueles quiosques à beira da lagoa? Acho que vou abrir uma barraca de cervejas, vai se chamar Barraco Brahma!” (os americanos tinha acabado de eleger seu primeiro Presidente negro.) Depois subimos a Serra Catarinense para um festival de jazz. Ficamos no Hotel Fazenda Curucaca, em Bom Retiro, um dos lugares mais frios do planeta. O show do Hermeto foi num Centro de Convenções de São Joaquim, também recém-inaugurado e sem calefação, a sensação térmica era de dez graus negativos, mas o velho Pascoal,com seu arsenal de instrumentos malucos que incluía até chaleiras, fez a sala quase pegar fogo. A volta de madrugada sob cerração pela estrada estreita de montanha trafegada por caminhões pesados foi uma temeridade, até hoje não sei como estamos vivos. Dois dias seguidos tomei o café da manhã com Hermeto e sua mulher e companheira de som Aline Morena – uma gaúcha com formação clássica, cantava árias de Mozart. Hermeto contou-me histórias incríveis de suas gravações com Miles Davis nos Estados Unidos. Na segunda manhã, surpreendeu-me com um brinde: uma partitura de saxofone tenor que compôs especialmente para mim.
Voltei a Florianópolis em 2015 para o Festival de Jazz Jurerê Internacional. Jurerê é um reduto de gente rica, com belas casas e o elenco do evento teve atrações como e o Buena Vista Social Club em sua turnê de despedida (Omara Portuondo e companhia continuam na estrada...) Fiz amizade com Madeleine Peyroux, que ficou boquiaberta quando lhe dei um exemplar do meu livro “New Jazz: De volta para o futuro”, de 1999, sobre a geração de jazzistas de Wynton Marsalis. Ela aparece em três páginas, com uma foto de página inteira e uma análise do seu primeiro álbum.
Setembro de 2014: 125 anos depois, nas videiras da Colônia Cecília, o sonho que trouxe os Muggiati para o Brasil. |
Tenho ido mais a Curitiba, minha cidade natal, depois que fui eleito para a Academia Paranaense de Letras em 2011. Durante 2015, por obra e graça da amiga Sônia Suplicy de Lacerda, que providenciou carro e motorista, fui visitar o local onde existiu no final do século 19 a colônia anarquista Cecília. Não fosse ela e eu não estaria no Brasil. Meu bisavô Ernesto Muggiati, de Stradella, frequentava a Casa del Popolo em Milão e ouvia as pregações anarco-sindicalistas de Giovanni Rossi, que conseguiu de D. Pedro II terras nos arredores de Palmeira, no Paraná, para instalar ali uma pioneira colônia anarquista. Meu bisavô veio antes dos colonos, mas morreu de febre amarela ao chegar a Paranaguá, em 3 de março de 1898. A viúva, Maria Quaroni, com dois filhos de duas filhas, subiu a serra e se instalou em Curitiba. Um dos filhos, Diogo Muggiati,era meu avô, a quem devo a nacionalidade italiana. Quanto à Colônia Cecília, só existiu de 1890 a 1893. Formada por intelectuais urbanos, sem experiência agrícola, sofreu ainda a hostilidade da comunidade polonesa vizinha, fortemente católica, do clero e das autoridades locais, que promoveram o ostracismo dos anarquistas.
Há muito tempo venho querendo escrever um livro de memórias, mas sou atropelado pelo presente, que se torna passado e me acumula de mais memórias. Sei que enquanto tiver lucidez e saúde, vou continuar “fabricando” histórias e nada me dá mais prazer do que compartilhar essa experiência de vida com o próximo.
*Fotos - Acervo Pessoal do autor
Um comentário:
Acabamos de ler a auto-biografia do mais longo editor da revista Manchete, na verdade, a história de um catarinense que nasceu jornalista e que hoje, aposentado - poderia estar gozando sua aposentadoria em Nice, na Franças - ainda é o jornalista de sempre. Um verdadeiro profissional, que se tornou esse homem do Sul, porque até como tradutor de livros ingleses, montou uma verdadeira biblioteca de livros de consultas à língua inglesa. Imagina, até um livro, ilustrado, de sinônimos de tipos de selas de montaria, ocupam espaço na sua biblioteca Como conhecedor dos " Beatles " , escreveu livros, comentando a história do Rock, além da vida dos rapazes de Liverpool. Por trabalhar com ele alguns anos, descobri que a sua cultura não tem fim. Conhecedor da língua portuguesa se divide como profundo conhecedor da língua britânica. Roberto Muggiati, de origem italiana, dos patriarcas da Roma Imperial, em Santa Catarina se tornou brasileiro. Nesta terra de alemães, italianos e por acaso de brasileiros , foi parar em Londres, na histórica Albion - como jornalista, claro - e mais tarde por terras normandas, e até no " Père-Lachaise" foi visitar túmulos de grandes figuras do passado como Oscar Wilde, Edith Piaff e tantos outros famosos. A sua febre de saber, conhecer e entender não cessou e até hoje, nas vilas da São Clemente, devora seus novos livros e na sua velha Ollivete, transborda a sua cultura como conhecedor da natureza humana. Roberto Muggiati, um homem, uma história de vida, de cultura, de conhecimento, de saber, talvez o único conhecedor na história do cinema norte-americano da existência de Sidney Guilaroff.
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