O cantor Blacaute no Baile das Bonecas, 1966, no Automóvel Club. Foto Manchete |
Comecei na Manchete como repórter especial em novembro de 1965. A categoria “especial” era porque falava inglês, francês, italiano e arranhava um portunhol, sem mencionar que tinha estudado alemão e japonês (!). Na verdade, eu não devia estar no Rio naquele momento. Nem nunca mais. Seria hoje um aposentado do Brexit, comendo um sanduíche num banco de jardim londrino enquanto lia o Sunday Times. Acontece que, como se dizia na época, “juntei os trapos” com uma brasileira que conheci em Paris. Faltavam três meses para encerrar meu contrato de três anos com o Serviço Brasileiro da BBC e eu havia assinado uma prorrogação de dois anos. Aí a Lina começou a mandar na minha vida – e eu deixei – “Nada disso, você vai voltar pro Brasil e fazer o Itamaraty”, acho que ela sonhava em ser Embaixatriz.
Fiz feio com a BBC, voltando atrás na prorrogação do contrato, voltei para o Brasil, fui reprovado no Itamaraty – fazer a carrière como lacaio da ditadura militar? – e voltei a cair nos braços do jornalismo, que me recebeu de braços abertos para o resto da vida. A esta altura eu já tinha onze anos de carreira: oito anos na redação da Gazeta do Povo de Curitiba, dois anos no Centre de Formation des Journalistes de Paris e três anos na British Broadcasting Corporation de Londres. Mas isso não me impedia de sentir meio “foca” naquele cenário soturno de Frei Caneca.
E então veio o Carnaval e me vi despojado do “especial” para cair na vala comum da cobertura da folia. Se bem que a Manchete investisse em sofisticação, os repórteres cobriam os bailes de smoking, alugados das melhores lojas. Lembro de ter ido ao apartamento que os primos Lucas Mendes e Ricardo Gontijo, colegas de reportagem, dividiam na Henrique Dumont, em Ipanema. Todos devidamente enfarpelados de smoking e black tie, calibramos com algumas doses de Scotch puro. Mas eu tinha um problema que eles não tinham, minha mulher era uma feminista. Feminista radical num país machista, numa cidade machista, numa revista machista. Aonde eu ia, tinha de ir junto. Inclusive à cobertura de Carnaval da Manchete.Lina era uma contradição ambulante. De ascendência aristocrática por parte de mãe – os Castro Neves da Bahia – foi casada com um dos maiores doleiros do Rio, o judeu Daniel Tolipan, formaram o Casal 20 da esquerda festiva nos anos pré-golpe, recebia à larga com cristais, prataria e porcelana, tinha até um mordomo, o Emílio – um agregado da família Epitácio Pessoa – que eu acabaria herdando quando melhorei de vida. E tinha o feminismo, da linha Simone de Beauvoir.
Meu primeiro compromisso do Carnaval era cobrir, no sábado, o Baile das Bonecas, no Automóvel Clube, no Passeio Público, uma farra colorida capitaneada por Blecaute, com seu infalível uniforme de General da Banda. A cultura gay estava em alta, nos anos 1950 havia o Baile dos Enxutos, agora, além das Bonecas, havia o desfile de travestis no Paulistinha, viriam então o Baile das Panteras, o Gala Gay do Scala, Uma Noite em Bagdá no Monte Líbano e outros subsidiários. O Baile das Bonecas foi minha prova de fogo, deixo para o final.Os outros compromissos foram feijão com arroz, incluindo um baile infantil vespertino no Teatro Municipal. No desfile das escolas de samba, coube-me cobrir a Vila Isabel, tive um encontro prévio na redação com Martinho da Vila, figura simpaticíssima, acompanho até hoje seus merecidos sucessos. A Vila, que voltava ao primeiro grupo depois de oito anos nos grupos inferiores, até que seu saiu bem, com um quarto lugar, desfilando “Três Épocas do Brasil”. Mas a Portela arrasou com “Memórias de um Sargento de Milícias” (samba-enredo de Paulinho da Viola), que foi campeã, um ponto à frente da Mangueira, que homenageou Villa-Lobos, morto em 1959. Em terceiro, o Império Serrano exaltou a Bahia.
Voltando ao dilema do Baile das Bonecas. Se eu ia de smoking, Lina se pôs a matutar: “Com que roupa eu vou?” De repente, teve uma ideia brilhante. Nos seus tempos de dondoca, vestia-se exclusivamente com criações de um jovem amigo, promessa da alta costura brasileira. “Vamos à casa do Gui-Gui”. Guilherme Guimarães morava num apartamento antigo em Copacabana com os avós. Pediu que Lina ficasse só de calça e sutiã. Puxou de um armário uns dois metros de tecido, uma estamparia floral multicolorida que despontava nos swinging sixties. Com movimentos rápidos e ágeis, começou a embrulhar Lina como acho que faziam nas múmias no tempo dos faraós. Pronto. Resolvido. E lá fui eu de smoking para o baile do Automóvel Clube acompanhado de uma... boneca.
Um comentário:
Onde posso conseguir fotos do Carnaval carioca? Faço uma pesquisa sobre o assunto. E gosto muito do blog de vocês e de tudo sobre a memória do Rio de Janeiro.
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