Desde os primeiros números, a Manchete caracterizou-se por oferecer aos leitores o texto observador de bons cronistas. Antônio Maria foi um deles. Na crônica abaixo - da seção Pernoite - ele faz o Roteiro da Niemeyer, rumo a São Conrado, Barra, Estrada das Canôas, então quase desertos, mas com os primeiros motéis a atrair amantes. Um retrato, quase uma fotografia, de uma época.
por Antônio Maria (*)
"Você começa a viagem no Hotel Leblon e vai indo pelo asfalto velho, cansado de tantos Circuitos da Gávea, de tantos automóveis em viagens de amor. Do lado direito, a pedra e à esquerda, o mar. Contam-se histórias de dezenas de suicídios e o caso mais comentado é aquele da moça inglesa, que caiu no mar, com automóvel e tudo, sem que alguém jamais soubesse do seu corpo ou mesmo pudesse garantir se foi suicídio ou desastre.
Uma ladeira brusca e, lá embaixo, o Colonial, lugar onde gente séria não vai, nome que senhora bem casada não ousa dizer. A faixa de asfalto é estreita e os carros que vêm em sentido oposto correm muito e não baixam os faróis. Cada curva é um susto e um risco de vida; e são dezenas de curvas fechadas, espremidas, que o guiador tem que fazer colado em sua direita, com o coração na mão, embora. de vez em quando, ponha a mão no coração da namorada.
Depois, a baixada, onde surgem, aos potes, os bares abandonados. com um garçon bem triste debruçado em cada balcão. A gente morre de pena do dono daquele lugar sem fregueses, às moscas, dia e noite. Mesas vazias, prateleiras empoeiradas e o garçon sonolento atrás do balcão, só para constar. No fundo, há um quintal enorme, cheio de automóveis e vinte ou trinta quartos, servindo a núpcias permanentes. Mesmo no auge da luta contra o amor ilegal e ambulante nunca mexeram com aqueles hotéis de fachadas comoventes. São os únicos lugares onde, sem o luxo de várias espécies de matrimônio, pode-se amar sem castigo.
E a estrada segue. Um clube de golf (jôgo de chatice histórica, disputado por quem tem boa pronúncia de inglês. Consiste em dar-se uma traulitada numa bola e sair-se, com uma porção de gente atrás, procurando onde a bola cai. Quem achar, ganha um prêmio, que varia entre jóias, relógios, bijuterias, etc...). Depois do clube, que ocupa um terreno enorme e inútil, uma igreja (e seria absurdo pensar que aquilo não seja uma igreja, uma vez que a tôrre, o sino, as portas ogivais e a cal externa são de igreja) e, defronte, mais um bar sem freguesia, porém com um terreno muito grande, no fundo, que o proprietário aproveitou para fazer pequenos apartamentos mobiliados e servir a quem esteja cansado ou quiser tirar uma pestana. Defronte, um vendedor de milho verde, assado e cozido, caldo de cana, jaca e bananas. À direita, começa a ladeira das Canôas, subida difícil, que matou um corredor francês e onde a maioria dos automóveis bate pino que é uma coisa louca.
Namorada recente é sempre convidada para ver a ponte suspensa - projetada, se não estamos enganados, por uma engenheira. Perto da ponte, param os automóveis, descem os namorados, debruçam-se na grade de ferro e dizem coisas assim: "que beleza! - e dizer-se isto é obra do homem - as belezas naturais do Rio são incomparáveis - se eu fosse rico, faria uma casa aqui - quem olha muito pra baixo sente vertigem das alturas - você tem coragem de jogar-se daqui? - e se viesse um malfeitor? - dizem que o Drault tem uma casa lindíssima aqui perto - aquela luzinha, lá longe, é um navio - ihhhhhhhhh, eu devo estar toda despenteada e sem um pingo de baton"!
Subindo mais um pouco, acontece uma boite, a cujo proprietário a dupla Fernando Lobo e Paulinho Soledade ainda não vendeu nenhum show. Depois, o caminho segue, faz voltas de cobra e chega, subindo sempre, ao alto da Bôa Vista, lugar quieto, de longa história, a ser contada noutra oportunidade.
Você desce as Canôas e continúa, asfalto fora, em direção ao Joá, bar e restaurante de três andares, com vitrola daquelas automáticas, de bôlhas d'água, servindo tangos e boleros a pares tristes. Bebe-se whisky, cognac ou cerveja e o cheiro de fritura é muito forte, principalmente no térreo. O Joá fecha à meia-noite e não adianta a freguesia pedir para ficar mais um pouco. Desce-se, em seguida, outra ladeira cheia de curvas terríveis e surgem quatro hotéis discretíssimos. dos quais ninguém poderá pensar o menor deslize ou arranhão à moral cristã. Aí surge a ponte dos pescadores e são visto homens e mulheres de short, tomando barquinhos, ajeitando caniços, negociando camarões vivos, falando em robaletes. corvinas, bagres e lances de tarrafa. Ao lado, dois taboleiros com ostras e carangueijos. um vendedor de cachaça e outro de jaca-mole. É distinto perguntar, antes da cada ostra: 'estão frescas"? Nunca faltam duas ou três pessoas, que, sem boas ou más intenções, descrevem alguns envenenamentos provocados por esse molusco, acéfalo e hermafrodita, que vive encerrada numa concha bivalve. O vendedor não tolera a conversa e, para inocentar seu produto, conta o caso de uma moça que se curou de uma úlcera duodenal comendo três ostras por dia, em seu taboleiro.
Depois da ponte, há dois caminhos. O da direita leva ao Corsário, uma boite à base de tango argentino. O da esquerda conduz ao Dina Bar, com o mar de ondas malcriadas bem defronte. Aos sábados e domingos de tarde registram-se alguns afogamentos. Êsse restaurante, há uns tempos, foi famosos pelos seus camarões fritos. seus peixes cozidos, suas lagostas genuinamente pernambucanas e seus whisky de dose farta. Depois, construíram-se algumas dependências no quintal e os aluguéis dêsses aposentos começaram a render mais que a cozinha. Resultado: os camarões, os peixes e as lagostas não são mais aquêles.
Aí termina o roteiro Niemeyer. Há poucos lugares do mundo onde a semente do amor tenha proliferado tanto. Que Deus o conserve e abençôe os seus visitantes."
(*) Na reprodução do texto foi mantida a grafia da época
Jornalismo, mídia social, TV, streaming, opinião, humor, variedades, publicidade, fotografia, cultura e memórias da imprensa. ANO XVI. E, desde junho de 2009, um espaço coletivo para opiniões diversas e expansão on line do livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou", com casos e fotos dos bastidores das redações. Opiniões veiculadas e assinadas são de responsabilidade dos seus autores. Este blog não veicula material jornalístico gerado por inteligência artificial.
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5 comentários:
Maravilhosa essa crônica. Não vivi essa época mas me vi fazer o percurso e conhecendo um jeito de viver dos cariocas de então.
Atualmente, não tenho tanto prazer em ler cronistas. A maioria fala de família, irmãos, irmãs, experiências pessoais banais em crônicas egocentradas. Sem saudosismo, apenas sinto falta de Fernando Sabino, Drummond, Nelson Rodrigues, Rubem Braga e outros, além de Stanislaw PontePreta. Vida que segue, é um gênero que mudou e nem sempre para melhor. Sou ex-professora de Letras e digo que leio com muito prazer muitos textos na rede social, há verdadeiras crônicas autênticas no Facebook, por exemplo.
Nota dez
Acho que ainda há uns bons cronistas por aí, poucos, na verdade. Procede a referência ao Facebook. Os não-cronistas, pessoas comuns, tem seu espaço na mídia social e postam coisas muito interessantes é só selecionar bem a quem seguir
Procure na Folha de São Paulo e encontrará excelentes cronistas. Hoje no O Globo temos dois pra lá de bons como Cacá Diegese o Nelsinho.
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