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quarta-feira, 5 de junho de 2024

70 anos no lugar certo na hora certa • Roberto Muggiati compartilha alguns dos melhores momentos de uma carreira que já atravessa oito décadas

 




Uma exclusiva com o Portinari de Guerra e Paz
• Eu tinha um amigo japonês mais velho, colega da Cultura Inglesa, que era um gênio dos relacionamentos. Quando fiz minha primeira viagem para o Rio forrou-me de cartas de apresentação. Graças a ele, Cândido Portinari me recebeu no seu ateliê do Leme no momento mais importante da sua carreira. Entrevistei o Mestre enquanto ele esboçava os painéis de 14 x 10 metros que ornam até hoje a entrada do prédio das Nações Unidas em Nova York. Foi minha primeira matéria assinada, publicada no domingo 27 de março de 1955 na Gazeta do Povo de Curitiba. Uma estreia de luxo.




Cobrindo as Misses nos Anos Dourados • Sem duplo sentido: eram todas virgens e nós rapazes de bem. O livro favorito que não tinham lido era O Pequeno Príncipe. Eu, 20 anos, embasbacado diante da beldade, no tempo em que repórter usava smoking. Karin Japp, Miss Paraná 1957, ficou em 5º no concurso nacional. Uma época inocente apenas na fachada. Já em 1954, com cinco meses de profissão, eu encarava minha primeira edição extra na Gazeta: o suicídio de Getúlio.




Tragédia nos céus de Curitiba • Na noite chuvosa de 16 de junho de 1958 fui mandado ao Hospital da Cruz Vermelha para entrevistar o sobrevivente de um desastre aéreo nas imediações do aeroporto Afonso Pena. “Estava muito escuro, da traseira do avião só ouvi um baita estrondo!” Atrelado a uma cama hospitalar, o rapaz louro não exibia um curativo sequer. Foi um dos oito sobreviventes do voo do Convair da Cruzeiro do Sul de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, com escalas em Florianópolis, Curitiba e São Paulo. No outro extremo da cidade, no Hospital do Cajuru, fui ver a chegada dos 22 mortos, entre eles o Senador Nereu Ramos, que ocupara a presidência do país. Dois socorristas carregavam uma caixa metálica de meio metro cúbico. “É o corpo do governador de Santa Catarina”. Há quase um ano eu nutria um ódio visceral por Jorge Lacerda. Na época, jornalista mal pago, decidi escrever matérias pagas. Até o respeitável Dicesar Plaisant, da Academia Paranaense de Letras, praticava a “picaretagem”. Ouvi dizer que o Jorge Lacerda estava distribuindo dinheiro a rodo e viajei a Florianópolis para pleitear o meu. Encontrei-o à saída do palácio, recusou rispidamente qualquer proposta. Talvez procurasse poupar aquele jovem imberbe de se tornar um “picareta”. Ao vê-lo reduzido àqueles míseros despojos, fui tomado de profundo remorso. Lamento até hoje a morte, aos 43 anos, do filho de imigrantes gregos formado em medicina e em direito, brilhante político e poeta que ombreava nos suplementos literários com Drummond e Bandeira, Raquel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles.






Arte: Roberto Mendonça Muggiati



O amigo brasileiro do Kerouac • No final de 1959 recebi em Curitiba um cartão postal de Jack Kerouac, que vivia dias de glória como autor do romance épico da beat generation, On the Road. Tinha mandado a seu agente a cópia de artigo que eu publicara no sdjb, Jack Kerouac e as crianças do bop. Ele lamentava certas escorregadas do meu texto e defendia o movimento beat. “Se a crítica é ‘Para onde vocês estão indo?’ a resposta é ‘Nós chegaremos lá’.” Jack despedia-se com uma saudação fraternal escrita em esferográfica e, por sua vez, escorregava no idioma: salud, hombre. Em 2013 tentei sem sucesso vender o cartão num leilão da Sotheby’s em Nova York. O pequeno retângulo de cartolina empreendeu de novo a viagem de NY ao Brasil. Às vésperas da pandemia, o vendi finalmente ao colecionador Pedro Correa do Lago e ganhei uma sobrevida financeira. Agradeci a Jack – morto havia meio século – acendendo uma vela na Igreja de São Judas Tadeu, perto da minha casa em Laranjeiras.





Estagiando no DC nos primeiros dias da Belacap • Uma dezena de jornalistas das principais cidades do país estagiou em maio de 1960 nos melhores jornais do Rio, que deixara de ser a Capital Federal e vivia seus primeiros dias como sede do Estado da Guanabara. O humor carioca continuava soberano: se Brasília era a Novacap, o Rio seria a Belacap. Coube-me um jornal genial, o Diário Carioca, fundado pelos Macedo Soares e na época propriedade de Horácio de Carvalho. Sua paginação era ainda mais ousada que a do JB. Juscelino Kubitschek se tornou JK porque seu nome não cabia nas estreitas colunas de títulos do DC. Depois de uma semana morna na redação comandada por Ascendino Leite (lá conheci o baiano Hélio Pólvora, sete anos depois assinaríamos as traduções da trilogia de Henry Miller, ele Plexus e Nexus, eu Sexus), parti para as ruas sob as asas do generoso Gilson Campos, cobrindo o primeiro concurso de Miss Guanabara no Maracanãzinho e a chegada no Galeão de um avião cheio de revolucionários cubanos, com seus uniformes verdes de campanha, encabeçados pelo irmão de Fidel, Raul Castro. O estágio foi sacramentado pelo Sr. ABI, Herbert Moses, cuja mão apertei emocionado em seu escritório no Prédio da Esso, que fez seu nome promovendo nosso jornalismo com o Repórter Esso, o Prêmio Esso e aquele estágio que, infelizmente, só teria aquela edição, nos vibrantes primeiros dias da Belacap.





O General não segurou o Homem da Vassoura • Ao sufocar o golpe de Carlos Lacerda e asseclas contra a posse de JK, eleito legitimamente no pleito presidencial de 1955, o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott se consagrou como defensor da democracia e candidato natural à sucessão de JK. Entrevistei Lott na sua campanha em Curitiba: seu perfil austero não era páreo para os esquetes histriônicos de Jânio da Silva Quadros, o Homem da Vassoura, que venceu em outubro de 1960 por uma enxurrada de votos em mais uma explosão de populismo delirante do nosso povo. Empossado como o primeiro Presidente em Brasília (que ele odiava), depois de uma série de medidas autoritárias e idiossincráticas – proibição do biquíni, da lança-perfume, das rinhas de galo e das corridas de cavalo nos dias de semana, a mania dos bilhetinhos e a adoção de alpercatas e um uniforme funcional apelidado de pijânio – após 237 dias de governo Jânio Quadros renunciou. Darcy Ribeiro escreveu: “Ninguém sabe, até hoje, por que Jânio renunciou. Nem ele.” O tresloucado gesto provocaria uma agitação nas camadas tecnônicas da nossa política que levaria inexoravelmente ao golpe militar de março de 1964.







Paris é uma festa • Em 6 de outubro de 1960 fiz 23 anos de idade a bordo de um avião da Panair para Paris. Bolsista do governo francês, hospedei-me na Casa do Brasil, na Cidade Universitária. Não ficava em Paris – não naquela cobiçada Paris de meus sonhos. Em fevereiro eu já morava no centro histórico e geográfico da cidade, na ponta da Île de la Cité, no 29 place Dauphine. Quatro noites por semana eu cruzava o Pont Neuf até a margem direita do Sena, a caminho do 29 rue du Louvre, onde eu estudava no Centre de Formation des Journalistes. Forçosamente atravessava Les Halles, o maior centro de distribuição de alimentos do mundo, que Émile Zola batizara “O Ventre de Paris”. Era uma festa para os olhos. Uma noite passava por entre o quilômetro de carcaças bovinas penduradas em ganchos; na outra, pelos quiosques verdejantes de hortaliças, na seguinte pelos de legumes; ou então pelas bancadas úmidas e acinzentadas de peixes e frutos do mar, com alguns animais ainda saltitando. O curso no CFJ, todo em francês, foi altamente proveitoso. Na prova final, o aluno tinha de diagramar a primeira página de um matutino do dia seguinte, completa com títulos, subtítulos e textos de chamadas, com base nas principais notícias daquela noite. O oposto total da masturbação teórica de nossas faculdades de comunicação. Hemingway disse: “Se você teve a sorte de morar em Paris quando jovem, aonde quer que vá, a cidade o acompanhará pelo resto da vida.” No filme Paris nous Appartient/Paris nos pertence, o diretor Jacques Rivette propõe uma charada Zen ao usar como epígrafe uma pequena frase do poeta Charles Péguy que contradiz o título do filme: “Paris n’appartient à personne/Paris não pertence a ninguém.” Peu importe, a lembrança do ano e meio que vivi em Paris, há sessenta anos, ainda dorme toda noite e acorda todo dia comigo.





No calor da Guerra Fria em Berlim • Terminada a bolsa, estiquei minha estada na Europa aceitando um convite do consulado alemão de Curitiba para visitar a República Federal. O foco da viagem foi Berlim, a cidade dividida pelo “Muro da Vergonha”. Regiamente instalado no Bristol Kempinski, na manhã seguinte fui levado por meus gentis anfitriões para uma sessão de fotos no Portão de Brandenburgo – o centro nevrálgico do Muro – erguido exatos quatro meses antes. Minhas fotos – num capote surrado de estudante, em contraste com os estilosos uniformes dos soldados da RFA – foram distribuídas pelo mundo inteiro. No dia seguinte, num deprimente bunker, fizeram desfilar diante de mim fugitivos do “outro lado”, numa encenação que nem Brecht teria feito melhor. Declarei-me insatisfeito com a visita protocolar à Berlim soviética num ônibus de turismo. Arranjaram-me um taxista autorizado a circular no lado comunista. Assim que atravessamos o Checkpoint Charlie, o sujeito distribuiu cigarros aos coleguinhas soviéticos num ponto de táxi, comentando comigo: “Unterschied!” (“Que contraste!”) Levou-me pelo mesmo roteiro do ônibus turístico e ao mesmo gran finale: o cemitério dos soldados comunistas mortos na 2ª Guerra e sua escultura monumental feita com o bloco de granito que Hitler escolhera para erigir o seu Arco do Triunfo.
Minha última noite em Berlim me arrancou da atmosfera de pesadelo para uma de sonho. Jantando na cobertura do Hotel Hilton com um grupo de jornalistas brasileiros, inadvertidamente invadimos outra festa, bem maior, e passei a trombar com figuras que me pareciam vagamente familiares. Spencer Tracy? Montgomery Clift, com sua indefectível capa de chuva? Sim, e sem a menor dúvida Marlene Dietrich, Judy Garland, Burt Lancaster, Richard Widmark, o ‘Risadinha’ – era o elenco milionário au grand complet do filme Julgamento em Nuremberg, num dos maiores lançamentos cinematográficos de todos os tempos. A Guerra Fria vivia um de seus momentos mais acalorados.






Da metrópole vitoriana à Swingin London • Morei em Londres três anos, a partir de agosto de 1962, trabalhando como assistente de programação no Serviço Brasileiro da BBC, a British Broadcasting Corporation. (Na foto de divulgação, entre os colegas Floriano Parreira e Nemércio Nogueira Santos.) No oitavo mês passei a ocupar meu endereço definitivo, 8 Embankment Gardens, uma transversal em forma de cotovelo do Embankment, a grande avenida que margeia o Tâmisa. Dirigia-me ao trabalho – em Bush House, no Strand – pelo ônibus da linha 11, bem mais agradável que o metrô. Fazia uma rota turística, passando pelos fundos do Palácio de Buckingham, Victoria Station, Casas do Parlamento, Big Ben, Whitehall, Trafalgar Square, Strand e Aldwych. Viajava sempre no segundo andar do bus vermelho, é claro. Na BBC estabeleci logo um esquema conveniente: trabalhava em horário integral (9 to 5) nas quartas quintas e sextas e na transmissão ao vivo aos sábados e domingos. (No Brasil, das 20 às 21, em Londres da meia-noite à uma da manhã). Segunda e terça folgava e fazia da grande metrópole meu playground. Nada melhor do que flanar, fazer compras, ir a casas de chá e visitar livrarias e museus quando o resto do mundo está trabalhando. Muitas vezes faltava à última hora um dos dois assistentes de programação que fazia a transmissão. Se eu estivesse num de meus dias de trabalho integral (de quarta a sexta) vinham me implorar de joelhos que fizesse a transmissão. Isso me dava uma “comp” (compensação), que me valia um dia inteiro de trabalho para efeito de férias. Conseguia assim ter dois ou até mais períodos de um mês de férias ao ano. Adquiri hábitos britânicos: conheci pouco do país, viajava sempre para The Continent, França, Espanha, Itália. Uma das vantagens de trabalhar na BBC era ser convidado para as prévias matinais de filmes da nouvelle vague britânica – cineastas como Tony Richardson, Karel Reisz, John Schlesinger. Outras áreas foram tomadas por uma verdadeira revolução cultural no brevíssimo período que vivi em Londres: o teatro e a literatura, com os angry young men; a música com os Beatles, Rolling Stones, Yardbirds, The Who; o jornalismo satírico; os esquetes cômicos da TV independente; a moda, com as roupas de Carnaby Street, a minissaia de Mary Quant, as manequins Jean Shrimpton e Twiggy, as fotos de David Bailey. Por tudo isso, costumo dizer que cheguei à Londres vitoriana e saí, três anos depois, da Swinging London. Coube a mim anunciar pelo serviço brasileiro da BBC a morte emblemática de Sir Winston Churchill no domingo 24 de janeiro de 1965, aos 90 anos.






No Rio, um recomeço na revista Manchete • Voltei para o Brasil em meados de 1965 casado com uma carioca. Ela começou a mandar na minha vida, eu deixei. Empurrou-me para o exame do Itamaraty, acho que seu sonho era ser embaixatriz. Fui reprovado, eu não me via como um diplomata a serviço de uma ditadura militar. Voltei a ser o que era desde os dezesseis anos: jornalista. Narceu de Almeida, meu amigo de noitadas de jazz em Londres, se tornara chefe da sucursal da Manchete em Paris. Em visita ao Rio, levou-me a almoçar com os Bloch na redação da revista em Frei Caneca.  Comecei em meados de novembro como repórter especial da própria Manchete. Inquieto e cheio de ideias, logo passei a ocupar espaço. Sugeri a publicação dos Cadernos de Jornalismo, que editava com Arnaldo Niskier e Zevi Ghivelder. Tornei-me o responsável jornalístico pela parceria de Manchete com o Ibope, iniciada com a contrapartida brasileira do famoso relatório Kinsey sobre o Comportamento Sexual do Homem (1948) e da Mulher (1953). Virei também o redator encarregado de “furar” a Realidade, a nova revista da Abril lançada em 1966. A prática começou quando Paris-Match publicou uma reportagem de capa fascinante sobre o primeiro ano de vida do bebê. Tentamos comprar a matéria, mas a Realidade chegou antes. Fui designado então para “reconstituir” a matéria em nosso quintal, com um trunfo imbatível: o livro da Bloch A vida do bebê, do dr Rinaldo De Lamare, verdadeira bíblia de toda jovem gestante. Com 800 páginas ricamente ilustradas, o livro vendeu mais de cinco milhões de exemplares e sobreviveu à Bloch, com sucessivas edições ao longo do novo milênio. Sob a orientação do grande pediatra, montei uma matéria interessante e visualmente atraente. A capa da revista, lançada duas semanas antes da Realidade, foi um sucesso: um bebezinho rechonchudo de um ano, em suas primeiras tentativas de ficar de pé, e por um feliz acaso sobrinho-neto de Adolpho Bloch. Com um detalhe bem familiar: circuncidado. 
Para carrear publicidade de multinacionais, Manchete publicou uma série de matérias sobre os principais países investidores no Brasil. Fiz uma bela reportagem de 30 páginas sobre a Alemanha e outra sobre a Suíça. Entreguei em mãos um exemplar dessa edição para o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, na Casa da Suíça no Rio, em 1966. Bucher seria sequestrado em 7 de dezembro de 1970 por uma facção guerrilheira liderada por Carlos Lamarca e libertado em 16 de janeiro de 1971 em troca de 70 prisioneiros políticos. A partir daí as embaixadas abriram mão da doce vida carioca e optaram pela segurança da remota Brasília.





Tarimbado, ma non tropo... • Apesar dos 30 anos de vida e 14 de carreira, eu ainda guardava certa ingenuidade. Isso ficou flagrante quando tive o privilégio raro de compartilhar o mesmo metro cúbico de ar com Gina Lollobrigida em seu apartamento no Copacabana Palace, no Carnaval de 1967, onde me recebeu para uma entrevista exclusiva. Foi antes do baile famoso do Copa, ela já vestia sua sugestiva fantasia de cortesã da Belle Époque. Aos 39 anos, a Lollô estava no auge da beleza.
Havia um intérprete disponível, mas dispensei os seus serviços. A certa altura, buscando impressionar, mas contaminado ainda por aquela idiotia intelectualoide típica dos anos 60, pedi a Gina sua opinião sobre “il problema sessuale”
Com um sorriso irônico, a diva me colocou no devido lugar:
Problema sessuale? Non lo so, il sesso per me non è un problema. Forse lo sarebbe per lei? (Problema sexual? Não sei, o sexo para mim não é um problema. Talvez seja para você?)
Guardo do encontro nossa foto, eu o repórter de terno e gravata com as ferramentas do ofício.  Como 57 anos passam rápido... 







Veja: a revista certa na hora errada • Em março de 1968, fui convidado para trabalhar na revista Veja, a semanal de texto da Abril. A Manchete não cobriu a proposta, mudei-me para São Paulo. Com sua fúria eslava, Adolpho Bloch saiu me xingando de traidor pelos corredores. Publicar a versão brasileira da Time era uma obsessão de Victor Civita, nascido em Nova York, então com 61 anos. Uma das editoras mais sólidas do país, a Abril canalizou todos os seus recursos para a operação. Pegou o expediente da Time e preencheu todos os escaninhos com os melhores profissionais da praça. A foto histórica do número inaugural mostra uma equipe de peso. Na primeira fila, eu, barbudo, ar vigilante, na extrema esquerda; ao centro, [Demétrio] Mino Carta ensaia seu olhar de galã. Só havia uma diferença nessa história: fundada em 1923, Time crescera organicamente ao longo de 45 anos, no maior país do mundo, através de crises históricas como o Crack da Bolsa, a depressão econômica, a 2ª Guerra, a Guerra Fria, a turbulência dos movimentos igualitários como Women’s Lib, Black Power, Gay Pride, a contestação universitária e a convulsão maior da Guerra do Vietnã. Quatro editores respondiam ao Mino pelo “bolo” da revista, coube-me logo a fatia da cereja, a de Artes e Espetáculos, numa época de intensa efervescência cultural. O problema foi que Mino já havia preenchido os cargos de meus subeditores, pelos critérios os mais bizarros:  Paulo Cotrim cuidava da música popular por ter sido dono do João Sebastião Bar, o templo paulistano da bossa nova; Paulo Mendonça, um crítico da antiga, era o editor de teatro, pertencia à família Mesquita, que acolhera o pai de Mino, jornalista, quando chegou ao Brasil; Leo Gilson Ribeiro, medalhado em letras germânicas pela Universidade de Heidelberg, escrevia teses ao invés de textos. Nenhum deles jamais trabalhara como jornalista escrevendo para o grande público em jornal ou revista. O único que pude escolher, para a editoria de cinema, foi Geraldo Mayrink, considerado um dos melhores textos da nossa imprensa. Seu relato para a Veja sobre a morte da atriz Sharon Tate foi brilhante, escrito na forma de roteiro cinematográfico. Mas todas essas dificuldades estruturais e culturais não influíram no fracasso inicial da Veja e sim o fato de que, concebida como uma revista política, ela se viu proibida de preencher sua vocação, apenas três meses depois do seu lançamento, pela edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, que cassou toda a liberdade de expressão no país.








O homem invisível dos Anos de Chumbo • No auge da Revolução Cultural, sugeri à Bloch um livro que fundisse a biografia de Mao Tsé-tung com a história da China comunista. Alberto Dines, o intelectual da família (era casado com uma sobrinha de Adolpho), ficou tão entusiasmado com o projeto que me deu um adiantamento de mil dólares e colocou à minha disposição as sucursais internacionais, que me forneceram uma montanha de livros, na época a China era um dos temas favoritos das editoras do mundo inteiro. Nas brechas da reportagem – e num mês de férias que dediquei exclusivamente ao livro – escrevi Mao e a China, um volume robusto de 502 gramas e 374 páginas. Quando deixei a Manchete pela Veja, cinco mil exemplares já impressos ocupavam um bom espaço na gráfica de Parada de Lucas. Em represália à minha saída, Adolpho se recusava a lançar o livro, mas o bom senso comercial o fez repassa-lo para outra editora. Em concorrida noite de autógrafos, Mao e a China foi lançado na segunda-feira, 9 de dezembro de 1968 (foto). Na sexta-feira 13 era decretado o AI-5. Mais inoportuno do que a Veja, foi o livro errado na hora errada. Mao e a China era uma declaração de amor ao comunismo chinês. O livro, uma incitação à luta armada, passou a aparecer menos nas vitrinas das livrarias do que nas exposições de “material subversivo apreendido pelo exército”. Quando o guerrilheiro Carlos Lamarca morreu fuzilado em 1971, no sertão da Bahia, os jornais do país inteiro publicaram trechos de suas cartas para a companheira Iara Iavelberg. “12 de julho: Lendo Mao e a China, de Roberto Muggiati, me impressiono cada vez mais em tudo e vejo a necessidade urgente da Revolução Cultural dos quadros de vanguarda.” Mao e a China foi o último livro que Lamarca leu. Estranhamente, em momento algum a ditadura veio bater à minha porta. Com um forte sentimento de rejeição, autointitulei-me O Homem Invisível dos Anos de Chumbo. Só tempos depois matei a charada. Em 1969 voltei para a Manchete e para o Rio. Tivesse ficado em São Paulo, a coisa seria bem diferente. Num documentário sobre Vladimir Herzog, vi colegas meus da Veja e da Realidade – ideologicamente autênticos sacristães comparados a mim – que foram presos e torturados nos porões do DOI-CODI em São Paulo. Eu tinha tudo a ver com Vlado: nascemos no mesmo ano e, quando deixei o Serviço Brasileiro da BBC em Londres, em 1965, ele foi ocupar a minha vaga. A volta para o “balneário da República” – quem diria? – salvou a minha vida.





Muggi das crises e seus discípulos: a Manchete no apogeu • Esta foto da redação da Manchete em 1977 reproduz, por uma feliz coincidência, o afresco famoso de Da Vinci, com uma pequena variação: sentados, não, mas eretos, como cabia àquela brava equipe. A partir da esquerda: o impagável secretário de redação, Alberto de Carvalho, alma secreta da revista, que me apelidou de Muggi das Crises; o redator Ivan Alves, o Pato Rouco, que nos Anos de Chumbo escapou da prisão e tortura indo para a Sucursal de Paris (como Roberto Marinho, Adolpho Bloch protegia os “seus comunistas”); Wilson Cunha, chefe de redação e cinéfilo, que saiu depois para a Rede Manchete e as TV Globos da vida; o crítico de arte Flávio de Aquino; este que vos escreve, que carregava uma cruz por semana; Heloneida Studard, escritora e líder feminista; R. Magalhães Jr., redator e imortal, um baixinho duro de lidar; Wilson Passos, o grande chefe de paginação da Manchete, que desenhou a revista dos anos 50 até a falência em 2000; Argemiro Ferreira, redator e líder sindical; Pedro Guimarães, diagramador, o primeiro a nos deixar, dias antes da edição de Carnaval de 1980; Ney Bianchi (de Almeida), que cobria Copas e Olimpíadas e depois encontrou o filão místico: desvendou os mistérios do Dr. Fritz e tornou-se interlocutor exclusivo de Dona Neila Alkmin; Carlos Heitor Cony, romancista, escritor escalado para as grandes coberturas de Manchete, como a visita do Papa (veio com o Sumo no mesmo avião), o casamento da Princesa Diana e ghost writer do lendário vidente cego Allan Richard Way; e o redator Irineu Guimarães, que foi seminarista em Marselha e trabalhou no prestigioso Le Monde.
Treze diante da mesa. Um reparo: entre meu ombro direito e a cabeça do Flávio de Aquino aparece o contínuo Sammy Davis Jr. Só numa empresa como a Bloch o contínuo tinha acesso direto ao dono. Sammy vivia dizendo a Adolpho que iria conseguir para ele a casa que ficava ao lado do segundo prédio. Conseguiu. Adolpho comprou e demoliu a casa da senhorinha e acrescentou assim a terceira fatia da fachada monumental do Niemeyer para abrigar parte da Rede Manchete. Sammy sumiu do mapa, ninguém soube se levou o seu...




             
Champanhe em tête-à-tête com Elis • Convidado para cobrir a Noite Brasileira do Festival de Montreux em 1979, tive o privilégio de fazer a viagem do Rio até Genebra com Hermeto e sua banda completa. E mais, o convite para tomar champanhe com Elis depois da apresentação, no Bar des Musiciens, enquanto seu marido, Cesar Camargo Mariano, tocava numa jam session com os gringos. A primazia me foi concedida pelo produtor Marcos Mazzola, que capitaneava a equipe da WEA, e refletia o alto prestígio da revista Manchete. A Noite Brasileira teve tanta procura que a organização de Montreux escalou um show extra naquela tarde de sexta-feira. Nos dois espetáculos, Elis abriu para Hermeto, com seu grupo estrelado (o marido como tecladista e maestro) e ela mesma com um figurino vamp, top e vestido roxo e vermelho cravejados de strass e uma imensa flor nos cabelos à Billie Holiday. Ao final, com um vestidinho estampado, Elis juntou-se a Hermeto para um duo, só piano e canto, uma eclosão de gênios num encontro mágico, doze minutos de Asa Branca, Garota de Ipanema e Corcovado. Foi com esse vestido simples que Elis desceu comigo à cave dos músicos. Barbudo, confuso, eu não estava muito bem nessa época, apesar do sucesso na Manchete. Devo ter alugado a pobre da Elis com minhas lamúrias a crise dos 40 anos, mas o papo rolou com a ajuda das borbulhas e de uma Elis muito serena. Quando ela morreu, dois anos depois, pensei: “Mas o suicida era eu...” Caminhando para o hotel pela Avenue du Casino, fui arrancado dos meus devaneios por um carro cheio de jornalistas da TV Globo. Me zoaram: “Coitadinho do Bloch, indo a pé pra casa...” Mal podiam imaginar que eu desfrutava um momento mágico, flanando pelas ruas vazias de Montreux numa doce noite de verão depois de um encontro inesquecível com Elis Regina.






Dona do Washington Post sofre apagão na Manchete – Em 1986, editor da revista Manchete, ajudei Adolpho Bloch a receber a dona do Washington Post, que visitava o Brasil. Ms. Katherine Graham se mostrou dócil e simpática, mas senti uma firmeza formidável por trás daquela aparência enganosa de avozinha do Meio-Oeste americano. O encontro foi na espaçosa sala de visitas do décimo andar do 804, com sucos e biscoitos – era verão e fazia muito calor no Rio, um chá seria totalmente fora de questão. Katherine Graham tinha 69 anos. O mundo mudara muito desde que seu jornal levara Nixon à renúncia no Caso Watergate. O ex-canastrão de direita Ronald Reagan presidia os EUA, a Dama de Ferro Margaret Thatcher mandava na Grã-Bretanha, Gorbachev conduzia o Império Soviético para o seu colapso. Aqui reinava Sarney, no segundo ano do seu desastroso governo. 
Voltando à Manchete: para nosso vexame supremo, o bairro do Flamengo sofreu um apagão geral. À luz de velas, prontamente providenciadas por Dona Arminda e seu batalhão de serviçais, ajudei os dois velhinhos a descerem as escadas – Adolpho a dois anos de completar seus “quatre-vingt ans” – e a dona do Washington Post robusta, mas à beira dos setenta – até o majestoso saguão do térreo, abençoado pela escultura gigantesca do Krajcberg.







Por pouco o IRA não explodiu a Abadia no casamento do Príncipe Andrew • Em 1986, minha mulher e fotógrafa Lena e eu esticamos a viagem ao Festival de Jazz de Montreux até Londres para cobrir o casamento real do Príncipe Andrew com Sarah Ferguson. Para comparecer à cerimônia na Abadia de Westminster, precisei alugar fraque e cartola, quem pagou as 150 libras foi nossa correspondente em Londres, Marina Wodtke, até hoje não foi reembolsada pela Bloch. Só dias depois ficamos sabendo que a Abadia, no auge do terrorismo do IRA (o Exército Revolucionário Irlandês) ia ser explodida. A contraespionagem britânica detectou o plano na madrugada da cerimônia e desativou a tempo as bombas já devidamente instaladas nas fendas da imensa catedral de pedra. Um risco mais subjetivo eu corri ao me encontrar a sós no banheiro da Abadia com um saltitante Elton John de fraque cinza-chumbo, amigo de Andrew e Fergie. Na matéria sobre o casamento, escrevi que, com amizades exóticas como aquela, o casamento não iria muito longe. Não só estava certo, como Andrew, acusado tempos depois de abuso sexual, é hoje um pária entre os Windsor, destituído de todos os títulos e patentes militares.




Adolpho Bloch e Lula: um encontro surreal • Antes do segundo turno presidencial em 1989, Fernando Collor de Mello foi convidado a jantar na Manchete. Adolpho Bloch deu uma desculpa esfarrapada e não compareceu, Jaquito e Oscar recepcionaram o futuro presidente. A Bloch teve uma mãozinha em sua eleição. Collor concorreu por uma legenda menor, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), antes Partido da Juventude, fundado por Daniel Tourinho, que trabalhou na área de RH da Bloch entre 1974 e 1985, quando saiu para fundar o PJ. 
Num gesto insólito, na véspera do segundo turno, sábado, 16 de dezembro, Adolpho ofereceu no Russell um almoço a Luís Inácio Lula da Silva. Lula e comitiva vieram naquela manhã de São Paulo num jatinho. Anna Bentes, mulher de Adolpho, acolheu Lula com beijinhos e abraços (eu apareço na foto de papagaio-de-pirata). Adolpho recebeu calorosamente o líder sindicalista. Fez questão que visitasse o escritório do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, que havia se tornado uma peça de museu depois da morte de JK em 1976. Durante o almoço, Adolpho desconcertou Lula a certa altura com seu linguajar críptico (e típico), que só os mais próximos conseguiam captar:
– Iele é mais moço que eu, o senhor é capaz de imaginar uma coisa dessas?
E Lula, atônito: – Ele quem, seu Adolpho?
–  A porra do sogro! 
Referia-se ao general Abraham Ramiro Bentes, pai de Anna Bentes, que era quatro anos mais moço do que Adolpho.
Lula não emplacou a presidência. Pena: teria feito com Adolpho uma dobradinha genial, igual àquela que Adolpho fez com o governador Leonel Brizola.






Voltando às origens, 125 anos depois • Numa viagem a Curitiba em 2014 fui visitar o local onde existiu no final do século 19 a famosa colônia anarquista Cecília. Não fosse ela e eu não estaria no Brasil. Meu bisavô Ernesto Muggiati, de Stradella, frequentava a Casa del Popolo em Milão e ouvia as pregações anarco-sindicalistas de Giovanni Rossi, que conseguiu de D. Pedro II terras nos arredores de Palmeira, no Paraná, para instalar ali uma pioneira comunidade anarquista. Meu bisavô veio antes dos colonos, com a mulher, Maria Quaroni, dois filhos e duas filhas, no paquete francês Hindoustan.
No Rio, esbarrou com uma quarentena de febre amarela. Descobriu na hora o “jeitinho brasileiro” e embarcou com a família no vapor Campos, com destino a Paranaguá. O Ernesto, que se convidou, era um dos muitos “apressadinhos” com o DNA dos Muggiati (eu me incluo no lote). Morreu de febre amarela ao chegar a Paranaguá, em 3 de março de 1889, e foi enterrado na Ilha das Cobras. A viúva subiu a serra com os filhos e se instalou em Curitiba. Um deles, Diogo Muggiati, de engraxate e sapateiro tornou-se, com o irmão, um rico industrial de calçados. Morreu de tuberculose aos 34 anos quando fazia tratamento num hospital de Pavia, em 1911. Devo a ele a nacionalidade italiana que passei para minha mulher Lena e meus filhos Roberto e Natasha, que moram respectivamente em Edimburgo e Berlim. Quanto à Colônia Cecília, só existiu de 1890 a 1893. Formada por intelectuais urbanos, sem nenhuma experiência agrícola, sofreu ainda a hostilidade da comunidade polonesa vizinha, fortemente católica, do clero e das autoridades locais, que sufocaram a colônia. Os Gattai – cujo patriarca se chamava Ernesto – também vieram para a Cecília e se fixaram depois em São Paulo. É do título do livro de Zélia Gattai que tiro o comentário irônico sobre a dubiedade da empreitada: Anarquistas graças a Deus...



 



O jornalismo nos tempos da goma arábica.

Adolescente, cabeça nas nuvens, viajando nos livros da coleção Terramarear, eu galopava com Winnetou pelas pradarias de búfalos da América, singrava os Mares do Sul com o corsário Sandokan (o Tigre da Malásia), enfrentava os perigos da Amazônia Profunda com os náufragos do igapó. Ao cair num buraco sem fundo na jângal, Tarzan se vê lutando na grande arena do império romano, o Coliseu. Algo parecido abriu para mim o mundo de aventuras que vivo intensamente até hoje desde que transpus os umbrais do casarão verde na Praça Carlos Gomes em 15 de março de 1954, uma segunda-feira, para minha primeira noite de trabalho na Gazeta do Povo de Curitiba. Não tinha, como o imperador Júlio César, um vidente a me alertar “Cuidado com os idos de março!” Só muito tempo depois vim a saber que “os idos de março” eram precisamente o dia 15, uma data-chave no calendário romano. César não deu ouvidos ao adivinho e morreu apunhalado naquele dia exato, em 44 a.C. Eu não sofreria punhaladas fatais, como as de César: mais sutis e traiçoeiras, elas exerceriam um efeito moral e emocional que, absorvido ao longo destes 70 anos, me ensinou a conviver melhor com a besta humana.

Toda manhã, como o leite e o pão, nosso jornal era entregue nas casas dos assinantes e nas bancas. Em termos de tecnologia, estávamos mais próximos da prensa de Gutemberg, de 500 anos antes, do que da mídia globalizada de McLuhan, apenas dez anos à nossa frente. Ainda não tínhamos teletipo e as notícias das agências caíam literalmente do céu: um velho senhor entalado num cubículo, a cabeça curvada por enormes fones de ouvido, recebia os últimos despachos em código Morse e os decodificava, teclando numa velha Remington. Por coincidência, o telegrafista Vergès era um kardecista convicto e tudo aquilo me parecia uma operação espírita. O tipo de texto que me chegava às mãos era puro telegrafês: "DEPUTADO DIX-HUIT ROSADO AVIONOU DF APRESENTAR PROJETO PALÁCIO TIRADENTES." Eu tinha de colocar a notícia num português legível e era mais rápido colar o despacho do Vergès numa lauda (na verdade, uma apara de bobina, áspera como lixa e porosa como mata-borrão) e corrigir à caneta-tinteiro (as esferográficas só seriam comercializadas no Brasil nos anos 60). Tesoura, pincel e goma arábica ainda eram ferramentas preciosas do nosso ofício. Quem tinha de decifrar todas essas charadas era um pobre revisor: com a clássica pala verde na testa, ocupava um mezanino, espécie de purgatório entre a redação (no primeiro andar) e a oficina (no térreo). Num pequeno galpão ao lado da casa, as fotos eram transformadas em clichês por um ex-soldado russo, Konstantin Tchernovaloff, que lutara contra os comunistas no exército branco e parecia um cossaco diabólico em meio aos clarões do seu arco voltaico. Os clichês seguiam para a oficina, que envolvia com seus vapores de chumbo a bateria de linotipistas disposta perto das páginas fixadas por parafusos-borboletas em molduras de ferro na prensa plana obsoleta que imprimia nossas verdades absolutas de todo dia.

Que tipo de notícias oferecia o mundo em 1954? A Guerra Fria, a Bomba H, a caça às bruxas e a segregação racial nos EUA, a derrota militar da França na Indochina, as lutas de independência anticoloniais na África – se levássemos a sério as manchetes viveríamos à beira do Apocalipse. No Brasil, 1954 foi um ano trágico. A crise política, depois do atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda, culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto, no Palácio do Catete. Naquele dia, fui recebido no Colégio Estadual do Paraná pelos gritos dos colegas: "O Getúlio morreu!" Um instinto animal me fez correr para a redação da Gazeta, onde colheria os louros da minha primeira edição extra. Em contrapartida, descobri que o jornalista é escravo da notícia, um ser atrelado à vida e à morte dos outros. (Anos depois, editor da revista Manchete, quando morreu JK, eu passei 27 horas seguidas na redação, com raros intervalos para ir ao banheiro, – os sanduíches eram mordiscados entre a definição das pautas e o fechamento dos leiautes.)

Daqueles primeiros anos, guardo uma ternura especial pela fauna da Gazeta. Dicesar Plaisant – o decano, na flor dos 55 anos – era nosso gramático-mor (“Nunca escreva: ‘João, morreu’. Com a vírgula separando o sujeito do predicado, ele nunca vai morrer!”); o médico Aloysio Blasi assinava a coluna social; o repórter policial Luzimar Dionísio, o “Meio Quilo” – elementar, meu caro – trabalhava na polícia. Um protético de nobre família, o Mário de Mello Leitão, escrevia crônicas. Um dia, recebeu um telefonema do aeroporto, era Fernando Sabino que o convocava a incorporar-se à caravana eleitoral do general Juarez Távora, que disputava a Presidência com JK. Com a roupa do corpo, sem levar sequer uma escova de dentes ou uma lâmina gilete, o Mário embarcou num DC-3 numa epopeia cívico-etílica de três meses por lugares do Brasil que jamais se lembraria de ter passado.
A força da redação era um grupo de jovens estudantes de advocacia: o Newton Stadler de Souza, o Nacim Bacila Neto, o Daquino Borges, negro e manco, que depois se tornaria editor do jornal; e Orlando Soares Carbonar, que entraria para a diplomacia e encerraria sua carreira brilhante em nossa mais bela embaixada, o Palazzo Doria Pamphilli, em Roma. Na ala caçula, eu me enturmava com o Carlos Augusto Cavalcanti de Albuquerque e colegas de outros jornais, o Aderbal Fortes de Sá Júnior e o Sylvio Back, que se tornaria o cineasta mais polêmico do Brasil. Munidos de armas mágicas como o líde e o sublíde, iniciados nos segredos da pirâmide invertida, íamos revolucionar a imprensa.
A Gazeta me serviu como um trampolim para outros voos. Em 1960, bolsista do governo francês, estudei no Centre de Formation des Journalistes em Paris por dois anos. A seguir, trabalhei três anos em Londres, no Serviço Brasileiro da BBC. Em 1965, de volta ao Brasil, entrei na Bloch, onde seria o editor que mais durou na chefia da Manchete. De 1968 a 1969, fui o editor de artes e espetáculos da Veja em São Paulo, na sua conturbada estreia no mercado editorial. Numa profissão de alta rotatividade, tive relativamente poucos patrões: a Gazeta, a BBC, a Abril e a Bloch, onde passei 33 anos, até a falência da em¬¬presa, em 2000. De lá para cá, conheci o melhor patrão de todos: eu mesmo, em regime de frila (a palavra free lancer remonta aos lanceiros mercenários da Idade Média e foi cunhada no livro juvenil Ivanhoé, de Walter Scott).

Todo um mundo mudou nas comunicações nestes 70 anos. Não cabe inventariar aqui os avanços na área da palavra e da imagem. Tecnologia à parte, porém, pouca coisa mudou. A mídia se compartimentou, o nível de especialização dos profissionais e das publicações é espantoso, mas os fundamentos persistem. Quando me perguntam o que é preciso para ser um bom jornalista, eu respondo: curiosidade. Se você não for curioso, estupidamente curioso, vá procurar outro emprego. Curiosidade pela vida, pelas pessoas e pelos acontecimentos, mas, também, um certo desapego à vida organizada, programada. “Era preciso, mesmo no meio da noite, cortar seus laços, fechar suas gavetas, esvaziar seu quarto de si mesmo, de suas fotos, de seus livros e deixar tudo para trás, menos visível do que um fantasma. Era preciso, às vezes, em plena noite, se desvencilhar dos braços de uma jovem...” Assim Saint-Exupéry descreve o piloto do correio aéreo em 1927, nos tempos heroicos da aviação. A descrição vale também para o repórter, para o jornalista que, dividido entre o altruísmo e o individualismo, circulando num mundo em que o caos é a norma, exerce a função social suprema de ser – 24 horas por dia – o Historiador do Instante.

* Fotos reproduzidas do acervo pessoal de Roberto Muggiati

segunda-feira, 15 de março de 2021

Memória da reportagem - Roberto Muggiati completa 67 anos de carreira neste 15 de março

No ano passado, o jornalista e escritor Roberto Muggiati deu no PANIS uma geral dos seus 66 anos de imprensa, você pode ler e ver aqui: 

https://paniscumovum.blogspot.com/search?q=os+idos+de+mar%C3%A7o+roberto+muggiati

Este ano, Muggiati conta um episódio inédito em torno da tragédia nacional que foi a queda do Convair da Cruzeiro do Sul em Curitiba em junho de 1958. O relato dá uma visão crítica do jornalismo brasileiro da época. 


...e o governador coube numa caixinha de meio metro cúbico • Por Roberto Muggiati




1 Temporal na Ilha do Desterro

"Esta história chafurda em alguns aspectos sórdidos da profissão de jornalista nos anos 1950. Trabalhando na Gazeta do Povo de Curitiba desde 1954, sequer recebia salário. Por sorte, o jornal era aliado do governador Moisés Lupion e ganhei um emprego (um cabide, dizia-se na época) no Departamento de Arrecadação de Rendas, que ficava a cinquenta metros da Gazeta, dirigido pelo lendário Anfrísio Siqueira, o fundador da Boca Maldita. Outros colegas, mais ávidos, não se contentavam com um salariozinho de barnabé e recorriam à prática da “picaretagem”: vendiam e assinavam matérias pagas dando uma pequena comissão ao jornal. Era o caso de nosso brilhante gramático Dicesar Plaisant, na casa dos cinquenta anos, respeitável membro da Academia Paranaense de Letras, que jogou ao ar todos os escrúpulos para correr atrás do dinheiro. Por que não nós? – nos perguntamos um dia eu e o colega Carlos Augusto Cavalcanti de Albuquerque. Tínhamos ouvido falar que o Governador de Santa Catarina, Jorge Lacerda, estava soltando dinheiro a rodo. Um belo dia, empreendemos nossa excursão de caça a Florianópolis. Jornalista na época viajava de graça, bastava a empresa requisitar a passagem. Às vezes o barato saía caro. Na segunda-feira, 11 de novembro de 1957, pegamos um avião decrépito das Linhas Aéreas Sadia, uma mistura de transportadora de humanos e porcinos. O voo era triangulado, fazendo escala em Concórdia, no oeste catarinense – onde a Sadia abatia e embalava seus suínos – e seguindo depois para Florianópolis. 

Governador Jorge Lacerda
Do aeroporto fomos diretamente ao Palácio Rosado, suntuosa sede do governo catarinense. O governador sequer nos recebeu. Um ajudante de ordens que mais parecia um contínuo alegou que Jorge Lacerda viajaria para uma série de compromissos importantes e nos despachou laconicamente. Confesso que fiquei com um ódio mortal do governador, político de sucesso e poeta conceituado. 

Prevendo passar apenas um dia na cidade, nos hospedamos num hotel de relativo conforto. Naquela madrugada, o céu desabou sobre Florianópolis. De manhã, quando acertávamos as contas na recepção, nos informaram que todos os voos haviam sido cancelados. A Ilha do Desterro estava literalmente ilhada e nós acabaríamos desterrados pelo temporal, que duraria mais alguns dias. Com o orçamento limitado, mudamos para uma pensão. Fomos ajudados pelo Gabriel, de Indaial, um jovem louro de feições angelicais, conterrâneo do Carlos Augusto, que estudava em Florianópolis. Anos depois Gabriel viveria em Indaial uma tragédia dostoievsquiana, ao matar a tiros um colega numa discussão de bar. 

Aquelas foram noites reclusas, lembro que eu lia A Spy in the House of Love, de Anaïs Nin. Uma noite fomos a um cinema do centro ver Sweet Smell of Success/A embriaguez do sucesso – uma fábula cáustica sobre jornalismo, poder e corrupção, com o brilho cínico de Burt Lancaster e Tony Curtis – incrível que o filme chegasse ao Brasil na mesma época do seu lançamento mundial. Noutra noite chuvosa, com os trocados que nos restavam, fomos à única boate local, quase vazia, ainda ajudamos um catedrático de direito a voltar para casa de táxi – mal imaginava que quatro anos depois eu teria um namoro breve e turbulento com sua filha, a atriz Elizabeth Galotti, bolsista em Paris como eu. 

A tempestade só amainou na sexta-feira, era o feriado de 15 de novembro e voltamos a Curitiba, num voo plácido com um céu de brigadeiro, mas com uma amarga sensação de derrota no coração.


O Convair destroçado, um cenário chocante. 

2 Tragédia em São José dos Pinhais

Na segunda-feira. 16 de junho de 1958, uma noite chuvosa de final de outono, sou arrancado da paz da redação e mandado às pressas com um fotógrafo ao Hospital da Cruz Vermelha para entrevistar o sobrevivente de um desastre aéreo nas imediações do aeroporto Afonso Pena. “Estava muito escuro, só ouvi um baita estrondo. Por sorte eu estava na traseira do avião e não sofri nada!” O rapaz alourado, ainda na casa dos vinte anos, apesar de atrelado a uma aparatosa cama hospitalar, não exibia um arranhão ou curativo sequer. Havia sido um dos oito sobreviventes do voo do Convair 440 PP-CEP da Cruzeiro do Sul que partira de Porto Alegre, com escalas previstas em Florianópolis, Curitiba, São Paulo e destinação final ao Rio de Janeiro. Mas 22 outras pessoas, 17 passageiros e cinco tripulantes – piloto, copiloto e três aeromoças – não tiveram a mesma sorte e seus corpos foram destroçados na queda do avião. Sem visibilidade no fim de tarde tempestuoso, o piloto, que deveria ter arremetido e ganhado altitude, chocou a aeronave contra o solo e foi arrancando as centenas de árvores que cobriam o território da Colônia Murici.

"É uma coisa que a gente não esquece, porque é uma coisa forte. Fortíssima", disse o agricultor Ladislau Holtman, de 76 anos, morador do local. O Convair foi visto pela última vez no céu às 17h51.

"Não deu para ouvir nada porque o temporal era muito forte", conta Leonardo Valenga. Dois sobreviventes conseguiram caminhar por alguns quilômetros e chegaram até o vizinho de propriedade do agricultor. Mesmo desconfiados, eles se dispuseram a ajudar. "O acesso à Colônia Murici era muito difícil. O aeroporto era um mero galpão", explicou o perito criminal Leonardo Straube. De caminhão, os bombeiros e socorristas chegaram penosamente ao local do acidente.

Na escala em Florianópolis, haviam embarcado três importantes políticos de expressão nacional. O catarinense Nereu Ramos, 69 anos, que desempenhou um papel vital para a democracia brasileira ao assumir – como 1º vice-presidente do Senado – a Presidência da República de 11 de novembro de 1955 até 30 de janeiro de 1956 e garantir assim a posse do Presidente eleito Juscelino Kubitschek; o deputado federal catarinense Leoberto Leal, 45 anos, provável futuro governador do estado; e o governador em exercício de Santa Catarina, Jorge Lacerda, 43 anos. Filho de imigrantes gregos, nascido em Paranaguá (PR), Lacerda, ao deixar o governo, estava destinado a se eleger senador da República. Formado em medicina pela Faculdade Federal do Paraná em Curitiba, também se diplomara pela Faculdade de Direito de Niterói. Poeta, Lacerda se destacou ainda no jornalismo cultural ao fundar, em A Manhã, do Rio, em 1946, o Suplemento “Letras e Artes”, do qual assumiria a direção, tendo entre seus colaboradores escritores e artistas de renome nacional, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Dinah Silveira de Queiróz, José Lins do Rego e Santa Rosa.

A cobertura frenética da noite de 16 de junho me levou também à emergência do Hospital Cajuru, onde estavam chegando alguns corpos. De repente, dois padioleiros desceram de uma ambulância, cada um segurando a alça de uma caixa metálica de meio metro cúbico.

“O que é isto?” – perguntei.

“É o corpo do governador Jorge Lacerda.”

Na hora não consegui assimilar a sensação de ver realizado o desejo de ter um desafeto tão prontamente morto, em apenas sete meses, e ainda daquela maneira. Seriam precisos anos, décadas, para que exorcizasse completamente o sentimento de culpa em relação à morte do infeliz Jorge Lacerda.

Na quinta-feira, 19 de junho, com a volta do sol, mas o terreno ainda encharcado, fomos visitar o local do acidente numa camionete de reportagem. Pelo rádio do carro ouvíamos ansiosos o jogo do Brasil contra o País de Gales na Copa do Mundo da Suécia. Um gol providencial de Pelé aos 18 minutos do segundo tempo garantiu a ida da seleção para as semifinais. 

É difícil imaginar o cenário de devastação no local de um acidente aéreo – só mesmo indo até lá. Fuselagens retorcidas, as entranhas escancaradas da decoração interna da aeronave, detalhes íntimos de dezenas de malas espalhados pelo solo lamacento. Mas nada me chocou mais – então e pelo resto da vida, com uma ponta de remorso, por ter desejado sua morte – do que ver os despojos de toda aquela promessa humana reduzidos a um pequeno cubo metálico salpicado de lama e sangue.

domingo, 15 de março de 2020

Ainda os idos – março de 64 • Por Roberto Muggiati

Com Fernando Sabino e Narceu de Almeida. 
Dez anos depois – morando em Londres, trabalhando na BBC – atravesso o Canal da Mancha com Fernando Sabino na Morris Mini Minor do meu amigo Narceu de Almeida, ao volante. Sabino vai visitar o Poetinha, encostado no consulado do Brasil em Paris pela ditadura. 

Sob as luzes de Magritte
Chegamos no comecinho da noite de quarta-feira, 1º de julho de 1964, é verão, quase dez horas da noite, em terra já escureceu, mas, acima das árvores frondosas, o céu é claro como o dia, como na tela de Magritte O Império das Luzes (1954). Sem celular, GPS ou internet ficamos sabendo que Vinicius não está em casa, mas no restaurante La Feijoada, na Île de Saint-Louis, com o parceiro da hora, Baden Powell, e a musa da hora, Odete Lara.


No Chez André,  

...discussão sobre o adesismo em forma de livro. 
Vinicius mora no seizième, estamos num hotel dos Champs Élysées, vamos almoçar – eu, Narceu e Sabino – no Chez André, um prestigiado restaurante de executivos na Rue Marbeuf. Degustando as entrées – o prato principal não chega antes de meia hora – Sabino se põe a elogiar empolgado um livro que acaba de ser lançado là-bas, à Riô, Os idos de março e a queda em abril. Nove autores de centro (em cima do muro) – o coitado do Callado se deixa cooptar – fazem uma crítica arrasadora da esquerda, uma atitude equivalente a mijar em cachorro morto e também – queiram ou não – adesista ao regime militar. Começo a rebater o Sabino, a discussão se torna cada vez mais violenta, quase chegamos aos tapas. Sabino estava em Londres nomeado adido cultural do Brasil pela ditadura, enquanto o aguerrido Di Cavalcanti acabava de ser demitido pelos militares como adido cultural em Paris.

Sabino e eu ficamos estremecidos pelo resto da viagem. Saboreei a vingança num detalhe pífio, favorecido por minha estrela. Na free shop do ferry do Canal, voltando para Londres, comprei uma garrafa de licor de menta para minha velhinha protetora da BBC, Lucy Ward – socorria-me sempre  com um pequeno empréstimo nas horas mais criticas – e Sabino comprou uma garrafa de conhaque, Rémy-Martin ou Henessey. Na alfândega inglesa, passei sem problemas, Sabino foi pesadamente taxado.

O tempo cura todas as feridas. Trinta e cinco anos depois, quando eu estava para lançar meu romance A contorcionista mongol pela Record, o Sérgio França, ex- Bloch, assessor da diretora editorial Luciana Villas-Boas, promoveu um encontro com o Sabino, também da Casa. Um almoço no maravilhoso restaurante que existia então no primeiro andar no Palácio do Catete, dando para os jardins, Depois de muito uísque antes, vinho durante e conhaque depois – a refeição, por mais genial que fosse, ficou em segundo plano. Saímos de lá trôpegos depois das seis, já anoitecia. Foi a última vez que vi o Sabino, era catorze anos mais velho. Libriano como eu, morreu em 11 de outubro de 2004, um dia antes de completar 81 anos. Humano, muito humano, com todos os seus defeitos e idiossincrasias. Afinal, como dizia Rimbaud, “Quel âme est sans défaut?

sábado, 14 de março de 2020

Cuidado com os idos de março! • Por Roberto Muggiati


1954, Curitiba, Gazeta do Povo * Sentado à direita durante movimento que reivindicou melhores
condições de trabalho na redação.

1961, Berlim • Estudante de jornalismo em Paris, visitando o Muro, erguido quatro meses antes.



1964, Londres* No Serviço Brasileiro da BBC, com Floriano Parreira e Nemércio Nogueira

1968, São Paulo • na linha de frente da Veja, na extrema esquerda.

1977, Rio de Janeiro • O editor da Manchete e a brilhante equipe na famosa foto da Santa Ceia.

1986, Londres • Sempre repórter, no Palácio de Buckingham, cobrindo o casamento do Príncipe Andrew.

Ouvi a expressão pela primeira vez em Júlio César de Shakespeare, o filme de 1953, com Marlon Brando, dirigido por Joseph Mankiewicz.  Um vidente alertava César: “Cuidado com os idos de março!” A caminho do Senado. César passa pelo vidente e o provoca: “Os idos de março já chegaram”. O vidente, chamado Spurinna  –um arúspice que fazia adivinhações examinando as entranhas de animais sacrificados – replica: “Mas ainda não se foram...” Não deu outra: César é apunhalado por sessenta senadores, na conspiração liderada por Brutus e Cássio. Eu imaginava que os idos de março – pela forma plural da expressão – fossem o final do mês. Só muito tempo depois fiquei sabendo que os idos de março (em latim Idus Martiae, era um dia do calendário romano que correspondia a 15 de março, marcado por várias práticas religiosas e notável para os romanos como o prazo final para a quitação de dívidas.

Inadvertidamente, foi nos idos de março, dia 15, no ano de 1954, uma segunda-feira, que subi os 22 degraus do casarão na Praça Carlos Gomes, 4, em Curitiba, adentrando pela primeira vez a redação da Gazeta do Povo e iniciando uma carreira jornalística que fecha, neste turbulento 2020, 66 anos de muitas aventuras e emoções. Deixei a Gazeta em 1960 para estudar jornalismo em Paris durante dois anos; passei três anos em Londres no Serviço Brasileiro da BBC; de volta ao Rio em 1965, comecei uma temporada de 35 anos na Manchete, descontados os dois anos que passei em São Paulo na equipe inicial de Veja, em 1968-69.

Daqui para onde? Se eu viver mais alguns anos – com saúde sem motivo justo – em 2025, aos 88 anos, começo a superar os setenta anos de carreira de um jornalista esportivo paulista, de sobrenome Nicolino, morto recentemente aos 90, que detém o recorde internacional do Livro Guinness como o jornalista mais longevo na profissão.

Mas isso não chega a ser uma meta para mim.

O que conta são os dias que correm, um de cada vez, em que me ocupo de compartilhar com o próximo minha experiência como jornalista e cidadão – meu livro de memórias chama-se A vida é uma reportagem – esta gentil mistura de vida e escrita que supera todas as pedras do caminho.

sábado, 18 de março de 2017

UPA: tratamento VIP e cinco estrelas. Quebrei a cara em Botafogo e recorri ao SUS. E não é que cuidaram bem de mim?


por Roberto Muggiati

Tropecei no meio-fio e mergulhei de cabeça no asfalto da rua. Imediatamente um rapaz e uma moça me ajudaram a levantar, queriam que eu encostasse na calçada. Agradeci e expliquei que morava perto e estava bem. Não estava tão bem assim.

O detalhe hediondo: eu tinha comprado um potinho de curau temperado com canela e o carregava como um bem precioso, mas de repente curau, sangue e canela se misturaram, ainda hesitei antes de jogar o pote fora. Em casa, avaliei o prejuízo: joelhos e palmas da mão ralados, o joelho esquerdo inchado e doendo e uma devastação geral no rosto na lateral do olho direito. A maçã do rosto escorchada, com perda de uma parte da pele. Um talho obsceno na pálpebra superior direita que obviamente requeria sutura. “Que saco,” pensei, “deixa pra lá.” Eram sete horas da tarde e eu nem havia almoçado, trabalhava para pagar as contas, tendo completado 63 anos de jornalismo nos idos de março, dia 15. Mas ainda persistem fiapos de bom senso nesta velha carcaça. Separei o livro que estou lendo, Os belos e malditos, de Fitzgerald, e – desobedecendo meu programa Transporte Zero – peguei um táxi até a UPA de Botafogo, esperando o pior dos horrores.

Entrei e me surpreendi: o ambiente parecia acolhedor, ar condicionado, tudo certinho. Muita gente esperando, aquilo me afligiu. Mas a mocinha da recepção logo sentiu que meu caso requeria “pronto atendimento”, como a sigla UPA promete. Achou que precisaria de sutura, tirou minha pressão (13/10) e me encaminhou adiante, dez minutos depois me convocam para a triagem na Classificação de Risco. Uma jovem robusta que, depois fiquei sabendo, sofreu um tombo parecido, senão pior que o meu, me levou para uma sala onde uma enfermeira simpática, a Jaci, fez os primeiros curativos. Ela comentou comigo que era imensa a quantidade de pessoas que davam entrada na UPA em consequência de ferimentos provocados por quedas devidas ao péssimo estados dos pisos e calçadas.

Veio então o cirurgião, Diego Nascimento, aplicou a anestesia e suturou quatro pontos. Um pessoal solidário, humano, rindo da própria desgraça – os salários atrasados – adorei a UPA de Botafogo. Mil vezes melhor e menos engessada do que o meu antigo Plano de Saúde Adventista Silvestre (religião embutida nunca dá certo). Na única emergência em que recorri ao Silvestre – e tive que subir até quase ao sovaco do Cristo Redentor – fui pessimamente tratado. Esperei das três da manhã até as onze, para ser medicado de uma luxação num dedo.

Lembro ainda de outro episódio, quinze anos atrás, com fortes lesões nas costelas, sem saber se tinham quebrado – meu filho me desovou na emergência do Miguel Couto, onde fui também muito bem tratado. E atendido em menos de hora e meia, com chapa de raios-X , laudo e medicação.
Voltando às reflexões costuradas com a enfermeira Jaci, enquanto o doutor suturava minhas pálpebras, concordamos que o acidente com a colega dela e meu tombo terrível tinham tudo a ver com o mau estado do piso das calçadas da cidade.

"Eu me feri por causa de um
buraco na calçada do
Palácio da Cidade, a mansão de festas
do prefeito carioca,
na Rua São Clemente". 
Depois, ainda, me dei conta do simbolismo do acontecido: eu me feri por causa de um buraco na calçada do Palácio da Cidade, a mansão de festas do prefeito carioca, na Rua São Clemente. Nada acontece por acaso, a vida é rica em associações, e o desastre me aconteceu justamente no dia do terceiro aniversário da operação Lava-Jato. Concluindo, lembrei-me de uma declaração contundente lida dias antes, feita pelo procurador Deltan Dallagnol e publicada pelo blog da Política Brasileira.

A corrupção mata

“A corrupção mata. A corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa. É um serial killer que se disfarça de buraco de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza” (Deltan Dallagnol, procurador da República)

A frase acima, proferida no discurso do procurador, em discurso à Câmara dos Deputados, revela bem o caráter da corrupção no Brasil. Sem dúvidas, ela é o nosso maior problema. Por conta da corrupção, direta ou indiretamente, a economia do país encolhe, pais de família perdem seus empregos, a criminalidade aumenta, e os cidadãos pagam a conta.

Se o senso comum for observado, veremos que a sensação de impunidade, e de que “tudo ficará como está” impregna as mentes dos brasileiros e, mesmo que surjam iniciativas populares com o objetivo de promover alguma mudança no cenário, muito pouco acontece, e a esperança acaba por se esvair.

Dallagnol (na foto) falou para poucos presentes, a maioria, membros da sociedade civil, e esta é a maior prova de que nossos representantes estão pouco comprometidos com atitudes que possam mudar os rumos da política no Brasil.

Mas, independentemente dos políticos, a sociedade precisa se comprometer mais. O brasileiro precisa encontrar e recuperar o gosto pela política, precisa debater, viver, participar. As estruturas partidárias precisam se revigorar e atrair novos membros, uma nova geração realmente comprometida com a mudança. Os políticos precisam se comprometer com a reforma política.

O país precisa encarar a política da mesma maneira que os gregos a encaravam na idade de ouro da civilização ocidental, com entrega e seriedade. A esperança reside nos espaços online, e na força de mobilização que o debate nas redes sociais incita. E reside no papel que o brasileiro desempenhará nas urnas, daqui em diante.

Do contrário, a corrupção continuará vitimando: pessoas, sistemas e estruturas.