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quarta-feira, 5 de junho de 2024

70 anos no lugar certo na hora certa • Roberto Muggiati compartilha alguns dos melhores momentos de uma carreira que já atravessa oito décadas

 




Uma exclusiva com o Portinari de Guerra e Paz
• Eu tinha um amigo japonês mais velho, colega da Cultura Inglesa, que era um gênio dos relacionamentos. Quando fiz minha primeira viagem para o Rio forrou-me de cartas de apresentação. Graças a ele, Cândido Portinari me recebeu no seu ateliê do Leme no momento mais importante da sua carreira. Entrevistei o Mestre enquanto ele esboçava os painéis de 14 x 10 metros que ornam até hoje a entrada do prédio das Nações Unidas em Nova York. Foi minha primeira matéria assinada, publicada no domingo 27 de março de 1955 na Gazeta do Povo de Curitiba. Uma estreia de luxo.




Cobrindo as Misses nos Anos Dourados • Sem duplo sentido: eram todas virgens e nós rapazes de bem. O livro favorito que não tinham lido era O Pequeno Príncipe. Eu, 20 anos, embasbacado diante da beldade, no tempo em que repórter usava smoking. Karin Japp, Miss Paraná 1957, ficou em 5º no concurso nacional. Uma época inocente apenas na fachada. Já em 1954, com cinco meses de profissão, eu encarava minha primeira edição extra na Gazeta: o suicídio de Getúlio.




Tragédia nos céus de Curitiba • Na noite chuvosa de 16 de junho de 1958 fui mandado ao Hospital da Cruz Vermelha para entrevistar o sobrevivente de um desastre aéreo nas imediações do aeroporto Afonso Pena. “Estava muito escuro, da traseira do avião só ouvi um baita estrondo!” Atrelado a uma cama hospitalar, o rapaz louro não exibia um curativo sequer. Foi um dos oito sobreviventes do voo do Convair da Cruzeiro do Sul de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, com escalas em Florianópolis, Curitiba e São Paulo. No outro extremo da cidade, no Hospital do Cajuru, fui ver a chegada dos 22 mortos, entre eles o Senador Nereu Ramos, que ocupara a presidência do país. Dois socorristas carregavam uma caixa metálica de meio metro cúbico. “É o corpo do governador de Santa Catarina”. Há quase um ano eu nutria um ódio visceral por Jorge Lacerda. Na época, jornalista mal pago, decidi escrever matérias pagas. Até o respeitável Dicesar Plaisant, da Academia Paranaense de Letras, praticava a “picaretagem”. Ouvi dizer que o Jorge Lacerda estava distribuindo dinheiro a rodo e viajei a Florianópolis para pleitear o meu. Encontrei-o à saída do palácio, recusou rispidamente qualquer proposta. Talvez procurasse poupar aquele jovem imberbe de se tornar um “picareta”. Ao vê-lo reduzido àqueles míseros despojos, fui tomado de profundo remorso. Lamento até hoje a morte, aos 43 anos, do filho de imigrantes gregos formado em medicina e em direito, brilhante político e poeta que ombreava nos suplementos literários com Drummond e Bandeira, Raquel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles.






Arte: Roberto Mendonça Muggiati



O amigo brasileiro do Kerouac • No final de 1959 recebi em Curitiba um cartão postal de Jack Kerouac, que vivia dias de glória como autor do romance épico da beat generation, On the Road. Tinha mandado a seu agente a cópia de artigo que eu publicara no sdjb, Jack Kerouac e as crianças do bop. Ele lamentava certas escorregadas do meu texto e defendia o movimento beat. “Se a crítica é ‘Para onde vocês estão indo?’ a resposta é ‘Nós chegaremos lá’.” Jack despedia-se com uma saudação fraternal escrita em esferográfica e, por sua vez, escorregava no idioma: salud, hombre. Em 2013 tentei sem sucesso vender o cartão num leilão da Sotheby’s em Nova York. O pequeno retângulo de cartolina empreendeu de novo a viagem de NY ao Brasil. Às vésperas da pandemia, o vendi finalmente ao colecionador Pedro Correa do Lago e ganhei uma sobrevida financeira. Agradeci a Jack – morto havia meio século – acendendo uma vela na Igreja de São Judas Tadeu, perto da minha casa em Laranjeiras.





Estagiando no DC nos primeiros dias da Belacap • Uma dezena de jornalistas das principais cidades do país estagiou em maio de 1960 nos melhores jornais do Rio, que deixara de ser a Capital Federal e vivia seus primeiros dias como sede do Estado da Guanabara. O humor carioca continuava soberano: se Brasília era a Novacap, o Rio seria a Belacap. Coube-me um jornal genial, o Diário Carioca, fundado pelos Macedo Soares e na época propriedade de Horácio de Carvalho. Sua paginação era ainda mais ousada que a do JB. Juscelino Kubitschek se tornou JK porque seu nome não cabia nas estreitas colunas de títulos do DC. Depois de uma semana morna na redação comandada por Ascendino Leite (lá conheci o baiano Hélio Pólvora, sete anos depois assinaríamos as traduções da trilogia de Henry Miller, ele Plexus e Nexus, eu Sexus), parti para as ruas sob as asas do generoso Gilson Campos, cobrindo o primeiro concurso de Miss Guanabara no Maracanãzinho e a chegada no Galeão de um avião cheio de revolucionários cubanos, com seus uniformes verdes de campanha, encabeçados pelo irmão de Fidel, Raul Castro. O estágio foi sacramentado pelo Sr. ABI, Herbert Moses, cuja mão apertei emocionado em seu escritório no Prédio da Esso, que fez seu nome promovendo nosso jornalismo com o Repórter Esso, o Prêmio Esso e aquele estágio que, infelizmente, só teria aquela edição, nos vibrantes primeiros dias da Belacap.





O General não segurou o Homem da Vassoura • Ao sufocar o golpe de Carlos Lacerda e asseclas contra a posse de JK, eleito legitimamente no pleito presidencial de 1955, o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott se consagrou como defensor da democracia e candidato natural à sucessão de JK. Entrevistei Lott na sua campanha em Curitiba: seu perfil austero não era páreo para os esquetes histriônicos de Jânio da Silva Quadros, o Homem da Vassoura, que venceu em outubro de 1960 por uma enxurrada de votos em mais uma explosão de populismo delirante do nosso povo. Empossado como o primeiro Presidente em Brasília (que ele odiava), depois de uma série de medidas autoritárias e idiossincráticas – proibição do biquíni, da lança-perfume, das rinhas de galo e das corridas de cavalo nos dias de semana, a mania dos bilhetinhos e a adoção de alpercatas e um uniforme funcional apelidado de pijânio – após 237 dias de governo Jânio Quadros renunciou. Darcy Ribeiro escreveu: “Ninguém sabe, até hoje, por que Jânio renunciou. Nem ele.” O tresloucado gesto provocaria uma agitação nas camadas tecnônicas da nossa política que levaria inexoravelmente ao golpe militar de março de 1964.







Paris é uma festa • Em 6 de outubro de 1960 fiz 23 anos de idade a bordo de um avião da Panair para Paris. Bolsista do governo francês, hospedei-me na Casa do Brasil, na Cidade Universitária. Não ficava em Paris – não naquela cobiçada Paris de meus sonhos. Em fevereiro eu já morava no centro histórico e geográfico da cidade, na ponta da Île de la Cité, no 29 place Dauphine. Quatro noites por semana eu cruzava o Pont Neuf até a margem direita do Sena, a caminho do 29 rue du Louvre, onde eu estudava no Centre de Formation des Journalistes. Forçosamente atravessava Les Halles, o maior centro de distribuição de alimentos do mundo, que Émile Zola batizara “O Ventre de Paris”. Era uma festa para os olhos. Uma noite passava por entre o quilômetro de carcaças bovinas penduradas em ganchos; na outra, pelos quiosques verdejantes de hortaliças, na seguinte pelos de legumes; ou então pelas bancadas úmidas e acinzentadas de peixes e frutos do mar, com alguns animais ainda saltitando. O curso no CFJ, todo em francês, foi altamente proveitoso. Na prova final, o aluno tinha de diagramar a primeira página de um matutino do dia seguinte, completa com títulos, subtítulos e textos de chamadas, com base nas principais notícias daquela noite. O oposto total da masturbação teórica de nossas faculdades de comunicação. Hemingway disse: “Se você teve a sorte de morar em Paris quando jovem, aonde quer que vá, a cidade o acompanhará pelo resto da vida.” No filme Paris nous Appartient/Paris nos pertence, o diretor Jacques Rivette propõe uma charada Zen ao usar como epígrafe uma pequena frase do poeta Charles Péguy que contradiz o título do filme: “Paris n’appartient à personne/Paris não pertence a ninguém.” Peu importe, a lembrança do ano e meio que vivi em Paris, há sessenta anos, ainda dorme toda noite e acorda todo dia comigo.





No calor da Guerra Fria em Berlim • Terminada a bolsa, estiquei minha estada na Europa aceitando um convite do consulado alemão de Curitiba para visitar a República Federal. O foco da viagem foi Berlim, a cidade dividida pelo “Muro da Vergonha”. Regiamente instalado no Bristol Kempinski, na manhã seguinte fui levado por meus gentis anfitriões para uma sessão de fotos no Portão de Brandenburgo – o centro nevrálgico do Muro – erguido exatos quatro meses antes. Minhas fotos – num capote surrado de estudante, em contraste com os estilosos uniformes dos soldados da RFA – foram distribuídas pelo mundo inteiro. No dia seguinte, num deprimente bunker, fizeram desfilar diante de mim fugitivos do “outro lado”, numa encenação que nem Brecht teria feito melhor. Declarei-me insatisfeito com a visita protocolar à Berlim soviética num ônibus de turismo. Arranjaram-me um taxista autorizado a circular no lado comunista. Assim que atravessamos o Checkpoint Charlie, o sujeito distribuiu cigarros aos coleguinhas soviéticos num ponto de táxi, comentando comigo: “Unterschied!” (“Que contraste!”) Levou-me pelo mesmo roteiro do ônibus turístico e ao mesmo gran finale: o cemitério dos soldados comunistas mortos na 2ª Guerra e sua escultura monumental feita com o bloco de granito que Hitler escolhera para erigir o seu Arco do Triunfo.
Minha última noite em Berlim me arrancou da atmosfera de pesadelo para uma de sonho. Jantando na cobertura do Hotel Hilton com um grupo de jornalistas brasileiros, inadvertidamente invadimos outra festa, bem maior, e passei a trombar com figuras que me pareciam vagamente familiares. Spencer Tracy? Montgomery Clift, com sua indefectível capa de chuva? Sim, e sem a menor dúvida Marlene Dietrich, Judy Garland, Burt Lancaster, Richard Widmark, o ‘Risadinha’ – era o elenco milionário au grand complet do filme Julgamento em Nuremberg, num dos maiores lançamentos cinematográficos de todos os tempos. A Guerra Fria vivia um de seus momentos mais acalorados.






Da metrópole vitoriana à Swingin London • Morei em Londres três anos, a partir de agosto de 1962, trabalhando como assistente de programação no Serviço Brasileiro da BBC, a British Broadcasting Corporation. (Na foto de divulgação, entre os colegas Floriano Parreira e Nemércio Nogueira Santos.) No oitavo mês passei a ocupar meu endereço definitivo, 8 Embankment Gardens, uma transversal em forma de cotovelo do Embankment, a grande avenida que margeia o Tâmisa. Dirigia-me ao trabalho – em Bush House, no Strand – pelo ônibus da linha 11, bem mais agradável que o metrô. Fazia uma rota turística, passando pelos fundos do Palácio de Buckingham, Victoria Station, Casas do Parlamento, Big Ben, Whitehall, Trafalgar Square, Strand e Aldwych. Viajava sempre no segundo andar do bus vermelho, é claro. Na BBC estabeleci logo um esquema conveniente: trabalhava em horário integral (9 to 5) nas quartas quintas e sextas e na transmissão ao vivo aos sábados e domingos. (No Brasil, das 20 às 21, em Londres da meia-noite à uma da manhã). Segunda e terça folgava e fazia da grande metrópole meu playground. Nada melhor do que flanar, fazer compras, ir a casas de chá e visitar livrarias e museus quando o resto do mundo está trabalhando. Muitas vezes faltava à última hora um dos dois assistentes de programação que fazia a transmissão. Se eu estivesse num de meus dias de trabalho integral (de quarta a sexta) vinham me implorar de joelhos que fizesse a transmissão. Isso me dava uma “comp” (compensação), que me valia um dia inteiro de trabalho para efeito de férias. Conseguia assim ter dois ou até mais períodos de um mês de férias ao ano. Adquiri hábitos britânicos: conheci pouco do país, viajava sempre para The Continent, França, Espanha, Itália. Uma das vantagens de trabalhar na BBC era ser convidado para as prévias matinais de filmes da nouvelle vague britânica – cineastas como Tony Richardson, Karel Reisz, John Schlesinger. Outras áreas foram tomadas por uma verdadeira revolução cultural no brevíssimo período que vivi em Londres: o teatro e a literatura, com os angry young men; a música com os Beatles, Rolling Stones, Yardbirds, The Who; o jornalismo satírico; os esquetes cômicos da TV independente; a moda, com as roupas de Carnaby Street, a minissaia de Mary Quant, as manequins Jean Shrimpton e Twiggy, as fotos de David Bailey. Por tudo isso, costumo dizer que cheguei à Londres vitoriana e saí, três anos depois, da Swinging London. Coube a mim anunciar pelo serviço brasileiro da BBC a morte emblemática de Sir Winston Churchill no domingo 24 de janeiro de 1965, aos 90 anos.






No Rio, um recomeço na revista Manchete • Voltei para o Brasil em meados de 1965 casado com uma carioca. Ela começou a mandar na minha vida, eu deixei. Empurrou-me para o exame do Itamaraty, acho que seu sonho era ser embaixatriz. Fui reprovado, eu não me via como um diplomata a serviço de uma ditadura militar. Voltei a ser o que era desde os dezesseis anos: jornalista. Narceu de Almeida, meu amigo de noitadas de jazz em Londres, se tornara chefe da sucursal da Manchete em Paris. Em visita ao Rio, levou-me a almoçar com os Bloch na redação da revista em Frei Caneca.  Comecei em meados de novembro como repórter especial da própria Manchete. Inquieto e cheio de ideias, logo passei a ocupar espaço. Sugeri a publicação dos Cadernos de Jornalismo, que editava com Arnaldo Niskier e Zevi Ghivelder. Tornei-me o responsável jornalístico pela parceria de Manchete com o Ibope, iniciada com a contrapartida brasileira do famoso relatório Kinsey sobre o Comportamento Sexual do Homem (1948) e da Mulher (1953). Virei também o redator encarregado de “furar” a Realidade, a nova revista da Abril lançada em 1966. A prática começou quando Paris-Match publicou uma reportagem de capa fascinante sobre o primeiro ano de vida do bebê. Tentamos comprar a matéria, mas a Realidade chegou antes. Fui designado então para “reconstituir” a matéria em nosso quintal, com um trunfo imbatível: o livro da Bloch A vida do bebê, do dr Rinaldo De Lamare, verdadeira bíblia de toda jovem gestante. Com 800 páginas ricamente ilustradas, o livro vendeu mais de cinco milhões de exemplares e sobreviveu à Bloch, com sucessivas edições ao longo do novo milênio. Sob a orientação do grande pediatra, montei uma matéria interessante e visualmente atraente. A capa da revista, lançada duas semanas antes da Realidade, foi um sucesso: um bebezinho rechonchudo de um ano, em suas primeiras tentativas de ficar de pé, e por um feliz acaso sobrinho-neto de Adolpho Bloch. Com um detalhe bem familiar: circuncidado. 
Para carrear publicidade de multinacionais, Manchete publicou uma série de matérias sobre os principais países investidores no Brasil. Fiz uma bela reportagem de 30 páginas sobre a Alemanha e outra sobre a Suíça. Entreguei em mãos um exemplar dessa edição para o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, na Casa da Suíça no Rio, em 1966. Bucher seria sequestrado em 7 de dezembro de 1970 por uma facção guerrilheira liderada por Carlos Lamarca e libertado em 16 de janeiro de 1971 em troca de 70 prisioneiros políticos. A partir daí as embaixadas abriram mão da doce vida carioca e optaram pela segurança da remota Brasília.





Tarimbado, ma non tropo... • Apesar dos 30 anos de vida e 14 de carreira, eu ainda guardava certa ingenuidade. Isso ficou flagrante quando tive o privilégio raro de compartilhar o mesmo metro cúbico de ar com Gina Lollobrigida em seu apartamento no Copacabana Palace, no Carnaval de 1967, onde me recebeu para uma entrevista exclusiva. Foi antes do baile famoso do Copa, ela já vestia sua sugestiva fantasia de cortesã da Belle Époque. Aos 39 anos, a Lollô estava no auge da beleza.
Havia um intérprete disponível, mas dispensei os seus serviços. A certa altura, buscando impressionar, mas contaminado ainda por aquela idiotia intelectualoide típica dos anos 60, pedi a Gina sua opinião sobre “il problema sessuale”
Com um sorriso irônico, a diva me colocou no devido lugar:
Problema sessuale? Non lo so, il sesso per me non è un problema. Forse lo sarebbe per lei? (Problema sexual? Não sei, o sexo para mim não é um problema. Talvez seja para você?)
Guardo do encontro nossa foto, eu o repórter de terno e gravata com as ferramentas do ofício.  Como 57 anos passam rápido... 







Veja: a revista certa na hora errada • Em março de 1968, fui convidado para trabalhar na revista Veja, a semanal de texto da Abril. A Manchete não cobriu a proposta, mudei-me para São Paulo. Com sua fúria eslava, Adolpho Bloch saiu me xingando de traidor pelos corredores. Publicar a versão brasileira da Time era uma obsessão de Victor Civita, nascido em Nova York, então com 61 anos. Uma das editoras mais sólidas do país, a Abril canalizou todos os seus recursos para a operação. Pegou o expediente da Time e preencheu todos os escaninhos com os melhores profissionais da praça. A foto histórica do número inaugural mostra uma equipe de peso. Na primeira fila, eu, barbudo, ar vigilante, na extrema esquerda; ao centro, [Demétrio] Mino Carta ensaia seu olhar de galã. Só havia uma diferença nessa história: fundada em 1923, Time crescera organicamente ao longo de 45 anos, no maior país do mundo, através de crises históricas como o Crack da Bolsa, a depressão econômica, a 2ª Guerra, a Guerra Fria, a turbulência dos movimentos igualitários como Women’s Lib, Black Power, Gay Pride, a contestação universitária e a convulsão maior da Guerra do Vietnã. Quatro editores respondiam ao Mino pelo “bolo” da revista, coube-me logo a fatia da cereja, a de Artes e Espetáculos, numa época de intensa efervescência cultural. O problema foi que Mino já havia preenchido os cargos de meus subeditores, pelos critérios os mais bizarros:  Paulo Cotrim cuidava da música popular por ter sido dono do João Sebastião Bar, o templo paulistano da bossa nova; Paulo Mendonça, um crítico da antiga, era o editor de teatro, pertencia à família Mesquita, que acolhera o pai de Mino, jornalista, quando chegou ao Brasil; Leo Gilson Ribeiro, medalhado em letras germânicas pela Universidade de Heidelberg, escrevia teses ao invés de textos. Nenhum deles jamais trabalhara como jornalista escrevendo para o grande público em jornal ou revista. O único que pude escolher, para a editoria de cinema, foi Geraldo Mayrink, considerado um dos melhores textos da nossa imprensa. Seu relato para a Veja sobre a morte da atriz Sharon Tate foi brilhante, escrito na forma de roteiro cinematográfico. Mas todas essas dificuldades estruturais e culturais não influíram no fracasso inicial da Veja e sim o fato de que, concebida como uma revista política, ela se viu proibida de preencher sua vocação, apenas três meses depois do seu lançamento, pela edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, que cassou toda a liberdade de expressão no país.








O homem invisível dos Anos de Chumbo • No auge da Revolução Cultural, sugeri à Bloch um livro que fundisse a biografia de Mao Tsé-tung com a história da China comunista. Alberto Dines, o intelectual da família (era casado com uma sobrinha de Adolpho), ficou tão entusiasmado com o projeto que me deu um adiantamento de mil dólares e colocou à minha disposição as sucursais internacionais, que me forneceram uma montanha de livros, na época a China era um dos temas favoritos das editoras do mundo inteiro. Nas brechas da reportagem – e num mês de férias que dediquei exclusivamente ao livro – escrevi Mao e a China, um volume robusto de 502 gramas e 374 páginas. Quando deixei a Manchete pela Veja, cinco mil exemplares já impressos ocupavam um bom espaço na gráfica de Parada de Lucas. Em represália à minha saída, Adolpho se recusava a lançar o livro, mas o bom senso comercial o fez repassa-lo para outra editora. Em concorrida noite de autógrafos, Mao e a China foi lançado na segunda-feira, 9 de dezembro de 1968 (foto). Na sexta-feira 13 era decretado o AI-5. Mais inoportuno do que a Veja, foi o livro errado na hora errada. Mao e a China era uma declaração de amor ao comunismo chinês. O livro, uma incitação à luta armada, passou a aparecer menos nas vitrinas das livrarias do que nas exposições de “material subversivo apreendido pelo exército”. Quando o guerrilheiro Carlos Lamarca morreu fuzilado em 1971, no sertão da Bahia, os jornais do país inteiro publicaram trechos de suas cartas para a companheira Iara Iavelberg. “12 de julho: Lendo Mao e a China, de Roberto Muggiati, me impressiono cada vez mais em tudo e vejo a necessidade urgente da Revolução Cultural dos quadros de vanguarda.” Mao e a China foi o último livro que Lamarca leu. Estranhamente, em momento algum a ditadura veio bater à minha porta. Com um forte sentimento de rejeição, autointitulei-me O Homem Invisível dos Anos de Chumbo. Só tempos depois matei a charada. Em 1969 voltei para a Manchete e para o Rio. Tivesse ficado em São Paulo, a coisa seria bem diferente. Num documentário sobre Vladimir Herzog, vi colegas meus da Veja e da Realidade – ideologicamente autênticos sacristães comparados a mim – que foram presos e torturados nos porões do DOI-CODI em São Paulo. Eu tinha tudo a ver com Vlado: nascemos no mesmo ano e, quando deixei o Serviço Brasileiro da BBC em Londres, em 1965, ele foi ocupar a minha vaga. A volta para o “balneário da República” – quem diria? – salvou a minha vida.





Muggi das crises e seus discípulos: a Manchete no apogeu • Esta foto da redação da Manchete em 1977 reproduz, por uma feliz coincidência, o afresco famoso de Da Vinci, com uma pequena variação: sentados, não, mas eretos, como cabia àquela brava equipe. A partir da esquerda: o impagável secretário de redação, Alberto de Carvalho, alma secreta da revista, que me apelidou de Muggi das Crises; o redator Ivan Alves, o Pato Rouco, que nos Anos de Chumbo escapou da prisão e tortura indo para a Sucursal de Paris (como Roberto Marinho, Adolpho Bloch protegia os “seus comunistas”); Wilson Cunha, chefe de redação e cinéfilo, que saiu depois para a Rede Manchete e as TV Globos da vida; o crítico de arte Flávio de Aquino; este que vos escreve, que carregava uma cruz por semana; Heloneida Studard, escritora e líder feminista; R. Magalhães Jr., redator e imortal, um baixinho duro de lidar; Wilson Passos, o grande chefe de paginação da Manchete, que desenhou a revista dos anos 50 até a falência em 2000; Argemiro Ferreira, redator e líder sindical; Pedro Guimarães, diagramador, o primeiro a nos deixar, dias antes da edição de Carnaval de 1980; Ney Bianchi (de Almeida), que cobria Copas e Olimpíadas e depois encontrou o filão místico: desvendou os mistérios do Dr. Fritz e tornou-se interlocutor exclusivo de Dona Neila Alkmin; Carlos Heitor Cony, romancista, escritor escalado para as grandes coberturas de Manchete, como a visita do Papa (veio com o Sumo no mesmo avião), o casamento da Princesa Diana e ghost writer do lendário vidente cego Allan Richard Way; e o redator Irineu Guimarães, que foi seminarista em Marselha e trabalhou no prestigioso Le Monde.
Treze diante da mesa. Um reparo: entre meu ombro direito e a cabeça do Flávio de Aquino aparece o contínuo Sammy Davis Jr. Só numa empresa como a Bloch o contínuo tinha acesso direto ao dono. Sammy vivia dizendo a Adolpho que iria conseguir para ele a casa que ficava ao lado do segundo prédio. Conseguiu. Adolpho comprou e demoliu a casa da senhorinha e acrescentou assim a terceira fatia da fachada monumental do Niemeyer para abrigar parte da Rede Manchete. Sammy sumiu do mapa, ninguém soube se levou o seu...




             
Champanhe em tête-à-tête com Elis • Convidado para cobrir a Noite Brasileira do Festival de Montreux em 1979, tive o privilégio de fazer a viagem do Rio até Genebra com Hermeto e sua banda completa. E mais, o convite para tomar champanhe com Elis depois da apresentação, no Bar des Musiciens, enquanto seu marido, Cesar Camargo Mariano, tocava numa jam session com os gringos. A primazia me foi concedida pelo produtor Marcos Mazzola, que capitaneava a equipe da WEA, e refletia o alto prestígio da revista Manchete. A Noite Brasileira teve tanta procura que a organização de Montreux escalou um show extra naquela tarde de sexta-feira. Nos dois espetáculos, Elis abriu para Hermeto, com seu grupo estrelado (o marido como tecladista e maestro) e ela mesma com um figurino vamp, top e vestido roxo e vermelho cravejados de strass e uma imensa flor nos cabelos à Billie Holiday. Ao final, com um vestidinho estampado, Elis juntou-se a Hermeto para um duo, só piano e canto, uma eclosão de gênios num encontro mágico, doze minutos de Asa Branca, Garota de Ipanema e Corcovado. Foi com esse vestido simples que Elis desceu comigo à cave dos músicos. Barbudo, confuso, eu não estava muito bem nessa época, apesar do sucesso na Manchete. Devo ter alugado a pobre da Elis com minhas lamúrias a crise dos 40 anos, mas o papo rolou com a ajuda das borbulhas e de uma Elis muito serena. Quando ela morreu, dois anos depois, pensei: “Mas o suicida era eu...” Caminhando para o hotel pela Avenue du Casino, fui arrancado dos meus devaneios por um carro cheio de jornalistas da TV Globo. Me zoaram: “Coitadinho do Bloch, indo a pé pra casa...” Mal podiam imaginar que eu desfrutava um momento mágico, flanando pelas ruas vazias de Montreux numa doce noite de verão depois de um encontro inesquecível com Elis Regina.






Dona do Washington Post sofre apagão na Manchete – Em 1986, editor da revista Manchete, ajudei Adolpho Bloch a receber a dona do Washington Post, que visitava o Brasil. Ms. Katherine Graham se mostrou dócil e simpática, mas senti uma firmeza formidável por trás daquela aparência enganosa de avozinha do Meio-Oeste americano. O encontro foi na espaçosa sala de visitas do décimo andar do 804, com sucos e biscoitos – era verão e fazia muito calor no Rio, um chá seria totalmente fora de questão. Katherine Graham tinha 69 anos. O mundo mudara muito desde que seu jornal levara Nixon à renúncia no Caso Watergate. O ex-canastrão de direita Ronald Reagan presidia os EUA, a Dama de Ferro Margaret Thatcher mandava na Grã-Bretanha, Gorbachev conduzia o Império Soviético para o seu colapso. Aqui reinava Sarney, no segundo ano do seu desastroso governo. 
Voltando à Manchete: para nosso vexame supremo, o bairro do Flamengo sofreu um apagão geral. À luz de velas, prontamente providenciadas por Dona Arminda e seu batalhão de serviçais, ajudei os dois velhinhos a descerem as escadas – Adolpho a dois anos de completar seus “quatre-vingt ans” – e a dona do Washington Post robusta, mas à beira dos setenta – até o majestoso saguão do térreo, abençoado pela escultura gigantesca do Krajcberg.







Por pouco o IRA não explodiu a Abadia no casamento do Príncipe Andrew • Em 1986, minha mulher e fotógrafa Lena e eu esticamos a viagem ao Festival de Jazz de Montreux até Londres para cobrir o casamento real do Príncipe Andrew com Sarah Ferguson. Para comparecer à cerimônia na Abadia de Westminster, precisei alugar fraque e cartola, quem pagou as 150 libras foi nossa correspondente em Londres, Marina Wodtke, até hoje não foi reembolsada pela Bloch. Só dias depois ficamos sabendo que a Abadia, no auge do terrorismo do IRA (o Exército Revolucionário Irlandês) ia ser explodida. A contraespionagem britânica detectou o plano na madrugada da cerimônia e desativou a tempo as bombas já devidamente instaladas nas fendas da imensa catedral de pedra. Um risco mais subjetivo eu corri ao me encontrar a sós no banheiro da Abadia com um saltitante Elton John de fraque cinza-chumbo, amigo de Andrew e Fergie. Na matéria sobre o casamento, escrevi que, com amizades exóticas como aquela, o casamento não iria muito longe. Não só estava certo, como Andrew, acusado tempos depois de abuso sexual, é hoje um pária entre os Windsor, destituído de todos os títulos e patentes militares.




Adolpho Bloch e Lula: um encontro surreal • Antes do segundo turno presidencial em 1989, Fernando Collor de Mello foi convidado a jantar na Manchete. Adolpho Bloch deu uma desculpa esfarrapada e não compareceu, Jaquito e Oscar recepcionaram o futuro presidente. A Bloch teve uma mãozinha em sua eleição. Collor concorreu por uma legenda menor, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), antes Partido da Juventude, fundado por Daniel Tourinho, que trabalhou na área de RH da Bloch entre 1974 e 1985, quando saiu para fundar o PJ. 
Num gesto insólito, na véspera do segundo turno, sábado, 16 de dezembro, Adolpho ofereceu no Russell um almoço a Luís Inácio Lula da Silva. Lula e comitiva vieram naquela manhã de São Paulo num jatinho. Anna Bentes, mulher de Adolpho, acolheu Lula com beijinhos e abraços (eu apareço na foto de papagaio-de-pirata). Adolpho recebeu calorosamente o líder sindicalista. Fez questão que visitasse o escritório do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, que havia se tornado uma peça de museu depois da morte de JK em 1976. Durante o almoço, Adolpho desconcertou Lula a certa altura com seu linguajar críptico (e típico), que só os mais próximos conseguiam captar:
– Iele é mais moço que eu, o senhor é capaz de imaginar uma coisa dessas?
E Lula, atônito: – Ele quem, seu Adolpho?
–  A porra do sogro! 
Referia-se ao general Abraham Ramiro Bentes, pai de Anna Bentes, que era quatro anos mais moço do que Adolpho.
Lula não emplacou a presidência. Pena: teria feito com Adolpho uma dobradinha genial, igual àquela que Adolpho fez com o governador Leonel Brizola.






Voltando às origens, 125 anos depois • Numa viagem a Curitiba em 2014 fui visitar o local onde existiu no final do século 19 a famosa colônia anarquista Cecília. Não fosse ela e eu não estaria no Brasil. Meu bisavô Ernesto Muggiati, de Stradella, frequentava a Casa del Popolo em Milão e ouvia as pregações anarco-sindicalistas de Giovanni Rossi, que conseguiu de D. Pedro II terras nos arredores de Palmeira, no Paraná, para instalar ali uma pioneira comunidade anarquista. Meu bisavô veio antes dos colonos, com a mulher, Maria Quaroni, dois filhos e duas filhas, no paquete francês Hindoustan.
No Rio, esbarrou com uma quarentena de febre amarela. Descobriu na hora o “jeitinho brasileiro” e embarcou com a família no vapor Campos, com destino a Paranaguá. O Ernesto, que se convidou, era um dos muitos “apressadinhos” com o DNA dos Muggiati (eu me incluo no lote). Morreu de febre amarela ao chegar a Paranaguá, em 3 de março de 1889, e foi enterrado na Ilha das Cobras. A viúva subiu a serra com os filhos e se instalou em Curitiba. Um deles, Diogo Muggiati, de engraxate e sapateiro tornou-se, com o irmão, um rico industrial de calçados. Morreu de tuberculose aos 34 anos quando fazia tratamento num hospital de Pavia, em 1911. Devo a ele a nacionalidade italiana que passei para minha mulher Lena e meus filhos Roberto e Natasha, que moram respectivamente em Edimburgo e Berlim. Quanto à Colônia Cecília, só existiu de 1890 a 1893. Formada por intelectuais urbanos, sem nenhuma experiência agrícola, sofreu ainda a hostilidade da comunidade polonesa vizinha, fortemente católica, do clero e das autoridades locais, que sufocaram a colônia. Os Gattai – cujo patriarca se chamava Ernesto – também vieram para a Cecília e se fixaram depois em São Paulo. É do título do livro de Zélia Gattai que tiro o comentário irônico sobre a dubiedade da empreitada: Anarquistas graças a Deus...



 



O jornalismo nos tempos da goma arábica.

Adolescente, cabeça nas nuvens, viajando nos livros da coleção Terramarear, eu galopava com Winnetou pelas pradarias de búfalos da América, singrava os Mares do Sul com o corsário Sandokan (o Tigre da Malásia), enfrentava os perigos da Amazônia Profunda com os náufragos do igapó. Ao cair num buraco sem fundo na jângal, Tarzan se vê lutando na grande arena do império romano, o Coliseu. Algo parecido abriu para mim o mundo de aventuras que vivo intensamente até hoje desde que transpus os umbrais do casarão verde na Praça Carlos Gomes em 15 de março de 1954, uma segunda-feira, para minha primeira noite de trabalho na Gazeta do Povo de Curitiba. Não tinha, como o imperador Júlio César, um vidente a me alertar “Cuidado com os idos de março!” Só muito tempo depois vim a saber que “os idos de março” eram precisamente o dia 15, uma data-chave no calendário romano. César não deu ouvidos ao adivinho e morreu apunhalado naquele dia exato, em 44 a.C. Eu não sofreria punhaladas fatais, como as de César: mais sutis e traiçoeiras, elas exerceriam um efeito moral e emocional que, absorvido ao longo destes 70 anos, me ensinou a conviver melhor com a besta humana.

Toda manhã, como o leite e o pão, nosso jornal era entregue nas casas dos assinantes e nas bancas. Em termos de tecnologia, estávamos mais próximos da prensa de Gutemberg, de 500 anos antes, do que da mídia globalizada de McLuhan, apenas dez anos à nossa frente. Ainda não tínhamos teletipo e as notícias das agências caíam literalmente do céu: um velho senhor entalado num cubículo, a cabeça curvada por enormes fones de ouvido, recebia os últimos despachos em código Morse e os decodificava, teclando numa velha Remington. Por coincidência, o telegrafista Vergès era um kardecista convicto e tudo aquilo me parecia uma operação espírita. O tipo de texto que me chegava às mãos era puro telegrafês: "DEPUTADO DIX-HUIT ROSADO AVIONOU DF APRESENTAR PROJETO PALÁCIO TIRADENTES." Eu tinha de colocar a notícia num português legível e era mais rápido colar o despacho do Vergès numa lauda (na verdade, uma apara de bobina, áspera como lixa e porosa como mata-borrão) e corrigir à caneta-tinteiro (as esferográficas só seriam comercializadas no Brasil nos anos 60). Tesoura, pincel e goma arábica ainda eram ferramentas preciosas do nosso ofício. Quem tinha de decifrar todas essas charadas era um pobre revisor: com a clássica pala verde na testa, ocupava um mezanino, espécie de purgatório entre a redação (no primeiro andar) e a oficina (no térreo). Num pequeno galpão ao lado da casa, as fotos eram transformadas em clichês por um ex-soldado russo, Konstantin Tchernovaloff, que lutara contra os comunistas no exército branco e parecia um cossaco diabólico em meio aos clarões do seu arco voltaico. Os clichês seguiam para a oficina, que envolvia com seus vapores de chumbo a bateria de linotipistas disposta perto das páginas fixadas por parafusos-borboletas em molduras de ferro na prensa plana obsoleta que imprimia nossas verdades absolutas de todo dia.

Que tipo de notícias oferecia o mundo em 1954? A Guerra Fria, a Bomba H, a caça às bruxas e a segregação racial nos EUA, a derrota militar da França na Indochina, as lutas de independência anticoloniais na África – se levássemos a sério as manchetes viveríamos à beira do Apocalipse. No Brasil, 1954 foi um ano trágico. A crise política, depois do atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda, culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto, no Palácio do Catete. Naquele dia, fui recebido no Colégio Estadual do Paraná pelos gritos dos colegas: "O Getúlio morreu!" Um instinto animal me fez correr para a redação da Gazeta, onde colheria os louros da minha primeira edição extra. Em contrapartida, descobri que o jornalista é escravo da notícia, um ser atrelado à vida e à morte dos outros. (Anos depois, editor da revista Manchete, quando morreu JK, eu passei 27 horas seguidas na redação, com raros intervalos para ir ao banheiro, – os sanduíches eram mordiscados entre a definição das pautas e o fechamento dos leiautes.)

Daqueles primeiros anos, guardo uma ternura especial pela fauna da Gazeta. Dicesar Plaisant – o decano, na flor dos 55 anos – era nosso gramático-mor (“Nunca escreva: ‘João, morreu’. Com a vírgula separando o sujeito do predicado, ele nunca vai morrer!”); o médico Aloysio Blasi assinava a coluna social; o repórter policial Luzimar Dionísio, o “Meio Quilo” – elementar, meu caro – trabalhava na polícia. Um protético de nobre família, o Mário de Mello Leitão, escrevia crônicas. Um dia, recebeu um telefonema do aeroporto, era Fernando Sabino que o convocava a incorporar-se à caravana eleitoral do general Juarez Távora, que disputava a Presidência com JK. Com a roupa do corpo, sem levar sequer uma escova de dentes ou uma lâmina gilete, o Mário embarcou num DC-3 numa epopeia cívico-etílica de três meses por lugares do Brasil que jamais se lembraria de ter passado.
A força da redação era um grupo de jovens estudantes de advocacia: o Newton Stadler de Souza, o Nacim Bacila Neto, o Daquino Borges, negro e manco, que depois se tornaria editor do jornal; e Orlando Soares Carbonar, que entraria para a diplomacia e encerraria sua carreira brilhante em nossa mais bela embaixada, o Palazzo Doria Pamphilli, em Roma. Na ala caçula, eu me enturmava com o Carlos Augusto Cavalcanti de Albuquerque e colegas de outros jornais, o Aderbal Fortes de Sá Júnior e o Sylvio Back, que se tornaria o cineasta mais polêmico do Brasil. Munidos de armas mágicas como o líde e o sublíde, iniciados nos segredos da pirâmide invertida, íamos revolucionar a imprensa.
A Gazeta me serviu como um trampolim para outros voos. Em 1960, bolsista do governo francês, estudei no Centre de Formation des Journalistes em Paris por dois anos. A seguir, trabalhei três anos em Londres, no Serviço Brasileiro da BBC. Em 1965, de volta ao Brasil, entrei na Bloch, onde seria o editor que mais durou na chefia da Manchete. De 1968 a 1969, fui o editor de artes e espetáculos da Veja em São Paulo, na sua conturbada estreia no mercado editorial. Numa profissão de alta rotatividade, tive relativamente poucos patrões: a Gazeta, a BBC, a Abril e a Bloch, onde passei 33 anos, até a falência da em¬¬presa, em 2000. De lá para cá, conheci o melhor patrão de todos: eu mesmo, em regime de frila (a palavra free lancer remonta aos lanceiros mercenários da Idade Média e foi cunhada no livro juvenil Ivanhoé, de Walter Scott).

Todo um mundo mudou nas comunicações nestes 70 anos. Não cabe inventariar aqui os avanços na área da palavra e da imagem. Tecnologia à parte, porém, pouca coisa mudou. A mídia se compartimentou, o nível de especialização dos profissionais e das publicações é espantoso, mas os fundamentos persistem. Quando me perguntam o que é preciso para ser um bom jornalista, eu respondo: curiosidade. Se você não for curioso, estupidamente curioso, vá procurar outro emprego. Curiosidade pela vida, pelas pessoas e pelos acontecimentos, mas, também, um certo desapego à vida organizada, programada. “Era preciso, mesmo no meio da noite, cortar seus laços, fechar suas gavetas, esvaziar seu quarto de si mesmo, de suas fotos, de seus livros e deixar tudo para trás, menos visível do que um fantasma. Era preciso, às vezes, em plena noite, se desvencilhar dos braços de uma jovem...” Assim Saint-Exupéry descreve o piloto do correio aéreo em 1927, nos tempos heroicos da aviação. A descrição vale também para o repórter, para o jornalista que, dividido entre o altruísmo e o individualismo, circulando num mundo em que o caos é a norma, exerce a função social suprema de ser – 24 horas por dia – o Historiador do Instante.

* Fotos reproduzidas do acervo pessoal de Roberto Muggiati