Com Fernando Sabino e Narceu de Almeida. |
Sob as luzes de Magritte |
Chegamos no comecinho da noite de quarta-feira, 1º de
julho de 1964, é verão, quase dez horas da noite, em terra já escureceu, mas,
acima das árvores frondosas, o céu é claro como o dia, como na tela de Magritte
O Império das Luzes (1954). Sem
celular, GPS ou internet ficamos sabendo que Vinicius não está em casa, mas no
restaurante La Feijoada, na Île de Saint-Louis, com o parceiro da hora, Baden
Powell, e a musa da hora, Odete Lara.
No Chez André, |
...discussão sobre o adesismo em forma de livro. |
Vinicius mora no seizième, estamos num hotel dos Champs
Élysées, vamos almoçar – eu, Narceu e Sabino – no Chez André, um prestigiado
restaurante de executivos na Rue Marbeuf. Degustando as entrées – o prato principal não chega antes de meia hora – Sabino
se põe a elogiar empolgado um livro que acaba de ser lançado là-bas, à Riô, Os idos de março e a queda em
abril. Nove autores de centro (em cima do muro) – o coitado do Callado
se deixa cooptar – fazem uma crítica arrasadora da esquerda, uma atitude
equivalente a mijar em cachorro morto e também – queiram ou não – adesista ao
regime militar. Começo a rebater o Sabino, a discussão se torna cada vez mais
violenta, quase chegamos aos tapas. Sabino estava em Londres nomeado adido cultural
do Brasil pela ditadura, enquanto o aguerrido Di Cavalcanti acabava de ser
demitido pelos militares como adido cultural em Paris.
Sabino e eu ficamos estremecidos pelo resto da viagem. Saboreei a vingança num detalhe pífio, favorecido por minha estrela. Na free shop do ferry do Canal, voltando para Londres, comprei uma garrafa de licor de menta para minha velhinha protetora da BBC, Lucy Ward – socorria-me sempre com um pequeno empréstimo nas horas mais criticas – e Sabino comprou uma garrafa de conhaque, Rémy-Martin ou Henessey. Na alfândega inglesa, passei sem problemas, Sabino foi pesadamente taxado.
O tempo cura todas as
feridas. Trinta e cinco anos depois, quando eu estava para lançar meu romance A contorcionista mongol pela Record, o
Sérgio França, ex- Bloch, assessor da diretora editorial Luciana Villas-Boas,
promoveu um encontro com o Sabino, também da Casa. Um almoço no maravilhoso
restaurante que existia então no primeiro andar no Palácio do Catete, dando
para os jardins, Depois de muito uísque antes, vinho durante e conhaque depois
– a refeição, por mais genial que fosse, ficou em segundo plano. Saímos de lá
trôpegos depois das seis, já anoitecia. Foi a última vez que vi o Sabino, era
catorze anos mais velho. Libriano como eu, morreu em 11 de outubro de 2004, um
dia antes de completar 81 anos. Humano, muito humano, com todos os seus
defeitos e idiossincrasias. Afinal, como dizia Rimbaud, “Quel âme est sans défaut?”