terça-feira, 16 de agosto de 2022

Trocadilho visual só para cinéfilos • Por Roberto Muggiati

 

Woody Allen. Foto CBS


Em Cul-de-sac/Armadilha do destino, Donald Pleasence e Françoise Dorleac. A irmã de Catherine Deneuve caiu sob a Maldição de Polanski. No ano seguinte, morreu carbonizada
ao volante de seu carro a caminho do aeroporto de Nice. Foto Divulgação

Depois de um longo e tenebroso inverno cinematográfico, voltei à alegria e ao humor cáustico dos filmes de Woody Allen. Do descolado Sweet and Lowdown/Poucas e boas, em que Sean Penn protagoniza um guitarrista de jazz muito doido; e de Scoop/O grande furo, em que a foca Scarlet Johansson, partindo de uma dica do além, incrimina como improvável assassino o filho de um lorde inglês, passei para o soturno Shadows and Fog/Neblina e sombras (1991), com uma constelação que inclui Woody Allen e sua então mulher Mia Farrow. (É o penúltimo dos treze filmes que fez com Woody nos seus doze anos de casamento.) A história, literalmente nebulosa, trata de um serial killer que sai estrangulando gente a granel numa cidadezinha anônima. 


Em Neblina e sombras, Donald Pleasence na mira do estrangulador;
ao fundo, parte do letreiro Cul-de-sac. Foto Divulgação



Uma das vítimas é o legista, interpretado por Donald Pleasence, encurralado pelo assassino numa viela. Woody aproveita a cena para homenagear Roman Polanski, que dirigiu em 1966
Cul-de-sac/Armadilha do destino, com Pleasence num dos papeis principais. Num close do apavorado Donald, prestes a ser estrangulado, aparece ao fundo na parede o aviso cul-de-sac, beco sem saída. Uma citação muito sutil, endereçada e a meia dúzia de cinéfilos encardidos. 

A marca registrada de Woody Allen: a fonte Windsor. Quase sempre ele escreve
e dirige seus filmes; muitas vezes, atua também.

E um brinde aos fãs de um cineasta tão detalhista que, a partir de 1977, com Annie Hall/Noivo neurótico, noiva nervosa, - o sétimo dos seus 50 filmes – passa a usar exclusivamente a fonte Windsor de Benquiat nos títulos e créditos, assim como nos cartazes e nas capas de seus DVDs.

Cena de Match Point: filme de Walter Salles em cartaz no Curzon Mayfair.
Foto Divulgação

Woody gosta de homenagear colegas de profissão. Em sua obra-prima Ponto final: Match Point ele exibe na marquise de um cinema londrino THE MOTORCYCLE DIARIES, o título do filme de Walter Salles. Outro de seus favoritos é Ingmar Bergman, e Woody não escondeu isso, clonando o estilo do mestre sueco em filmes como Interiores, Stardust Memories e Setembro

O cineasta também tem seus escritores de estima. Em Match Point é Dostoievski de “Crime e castigo”, com a diferença de que o filme poderia se chamar Crime sem castigo. O romance do russo é citado também no mais recente Homem irracional: Joaquin Phoenix, um professor de filosofia especializado nos existencialistas, comete um “assassinato moral”, eliminando um juiz cruel especializado em desgraçar a vida alheia. Namora uma aluna – a única pessoa a saber que ele é o assassino. Quando outro homem é acusado do assassinato, namorada exige que o professor se entregue, ou ela o denunciará. Phoenix tenta jogar a jovem no poço do elevador, mas quem acaba caindo é ele, ao escorregar na lanterna de pilha que ele ganhou para ela na roleta de um parque de diversões em tempos mais felizes. 

Os filmes de Allen estão cheios de discussões filosóficas e falam muito sobre o papel da sorte, ou do acaso, na vida ou na morte das pessoas. Tudo pode dar certo é outro filme que trata do tema. Cita até o Princípio da Incerteza de Heisenberg, mas Woody sabe lidar tão bem com o discurso intelectual (ou pseudointelectual) que nunca afasta o espectador, ao contrário, o atrai. Consegue se safar também quando cita a Melancolia de Ozymandias em Para Roma com amor. Esse filme, aliás, é parte de uma série de produções que fazem descaradamente a propaganda de cidades turísticas, como Meia-noite em Paris e Vicky Cristina Barcelona. Já chamaram Woody de o Midas do Celuloide: tudo em que ele toca vira ouro, sem comprometer o mérito do produto como obra de arte. 

Foram 50 filmes nos últimos 54 anos, um presente anual para sua multidão de admiradores. Nos últimos tempos, ele se viu arrastado pelo tsunami moral do #metoo e injustamente cancelado. Mas Allan Stewart Könibsberg, nascido em 1º de dezembro de 1935 no Bronx e criado no Brooklyn, em Nova York, é osso duro de roer. Vamos torcer para continuar com ele por muito tempo mais.


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