domingo, 15 de outubro de 2023

João Américo Barros (1931-2023): algumas linhas e imagens para a última página

João Américo Barros.
Paraty, 3 de setembro de 2023.
Foto: Arquivo Pessoal

por José Esmeraldo Gonçalves 

Esta última foto do João Américo Barros nos remete a um instante de profunda paz. Ele esteve em Paraty, no primeiro fim de semana de setembro, com a filha, Lúcia, e o genro Fernando e, de lá, enviou uma mensagem no whatsapp contando suas impressões da cidade. Barros gostava muito de História e a "capital" colonial do Ciclo do Ouro inspirou seu comentário. No domingo, dia 3, qundo voltava de Paraty enviou o que seria a derradeira mensagem. Queria saber do resultado do GP de Monza. A Fórmula 1 era outro dos seus interesses além do Flamengo que, naquele domingo, lhe deu a alegria de derrotar o Botafogo. "Em tempo: ganhamos do Bota", assim ele encerrou o papo virtual. Apenas dois dias depois foi atendido em emergência e, em seguida, levado à UTI com sintomas de uma pneumonia que resultou em infecção generalizada. Não foi embora sem luta. Aos 92 anos, resistiu por mais de um mês. 

O faixa preta Barros foi homenageado pelos colegas do aikido. Maio de 2023.
Foto: Arquivo Pessoal

A segunda foto foi feita em maio desse ano. Registra uma homenagem que a turma de aikido fez ao atleta que era faixa preta desde 2011, quando completou 80 anos. A imagem também é simbólica do seu jeito de ser. Barros não se isolou no outono da vida. Mantinha-se ativo no Facebook, voltou a pintar, era bem informado, conversava sobre política, sempre civilizado e ora com esperança ora com decepção. 

Em um dos seus artigos, ele abordou o ataque
à democracia em 8 de janeiro.

Lamentava não ter tempo para ver o Brasil que sonhamos, socialmente justo e desenvolvido, virar enfim uma realidade. Publicou neste blog reflexões políticas, profissionais e pessoais.

Bem no começo dos anos 1980, o então chefe de Arte da Fatos & Fotos, Ezio Speranza, deixou a Bloch. Barros, que entrou na editora como diagramador da revista Tendência e, em seguida, tornou-se diretor de Arte da Manchete Esportiva, foi indicado para o posto. Era o nome certo. Carregava no currículo nada menos do que O Cruzeiro, a mais importante revista ilustrada do Brasil até meados do anos 1960. Após uma temporada na FF, até 1986, ele foi transferido para a principal publicação da Bloch, a Manchete. Brincávamos que se tornara tríplice coroado como chefe de Arte por ter passado pelo O Cruzeiro, Fatos&Fotos e, finalmente, Manchete, as três revistas mais conhecidas no segmento ilustrado de atualidades e variedades. Trabalhei com o Barros por mais de 15 anos. Certamente enfrentamos bons e maus momentos naquelas revistas semanais intensas e desafiadoras. Este blog, para o qual ele criou o logotipo costuma recontar memórias das redações. Vou citar dois momentos que, tenho certeza, foram marcantes nas nossas trajetórias profissionais. Um de frustração e outro de realização. Em 1984, a Fatos & Fotos agonizava em praça pública travada por pouco investimento e baixa circulação em uma época em que a Bloch priorizava a decolagem da Rede Manchete. Carlos Heitor Cony, o diretor, Barros, o diretor de Arte e eu, editor-executivo, não aguentávamos mais carregar aquele fardo. Conversávamos os três sobre o que poderíamos propor à direção da empresa. 

João Américo Barros, José Esmeraldo e Carlos Heitor Cony.
Foto: Jussara Razzé
 

Cony pensou no assunto e, um dia, nos convidou para uma reunião fora da sede da Bloch. A ditadura também agonizava naquele época, talvez até mais do que a FF, embora ainda exibisse força.  Os milicos conseguiram barrar as Diretas-Já e manobravam para eleger Paulo Maluf no famigerado Colégio Eleitoral quando o nome de Tancredo Neves se impôs como uma alternativa. Cony havia sido convidado por Tancredo para dar  consultoria sobre a campanha. Foi várias vezes a Belo Horizonte. A ideia era - apesar de se tratar de uma eleição fechada em um Colégio eleitoral espúrio, criado pela ditadura, tentar falar com a população, procurar captar parte da força que o país demonstrara na épica jornada das Diretas-Já. 

Barros no Hotel Novo Mundo em 2005: almoço comemorativo
dos 20 anos do lançamento da revista Fatos: o melhor fracasso das nossas vidas.
Foto: Jussara Razzé  

E foi essa possibilidade de mudança no Brasil que Cony usou como argumento para levar a Adolpho Bloch a sugestão de fechar a Fatos & Fotos e lançar a Fatos, uma revista semanal de informação, análise, cultura, economia, política, reportagens investigativas e um time de colunistas, redatores e repórteres de referência. Em uma segunda reunião, fizemos um projeto detalhado para a Fatos. Barros criou o visual da nova revista. Foi feito um número zero, que Adolpho aprovou apesar da resistência de outros diretores. A primeira edição foi lançada em março de 1985. O que não sabíamos era que aquela resistência logo se transformaria em forte campanha interna liderada por pelo menos um jornalista que havia sido informante da ditadura e que mobilizou outros editores da Bloch em uma espécie de brigada contra a Fatos. Após um ano e quatro meses, a "jihad" formada pelo dedo-duro se transformou em sanção financeira. A empresa passou a atrasar sistematicamente o pagamento dos colaboradores, a maioria freelance. As reclamações da equipe, justas e insuportáveis, levaram Cony a virar literalmente a última página da Fatos, um projeto pelo qual lutamos até onde foi possível. Mais uma vez tivemos uma conversa a três e concluímos que não havia mais condição de tentar por em pé uma revista proscrita na própria editora. E, assim, as luzes da redação foram apagadas e eu e o Barros fomos incorporados à Manchete. Cony manobrou junto à direção da Bloch e parte da equipe foi acomodada em outras publicações da casa. 

Ficou o gosto amargo das noites insones de fechamento, do esforço perdido. A realização só viria cerca de 20 anos depois. A Bloch não existia mais em 2005 quando um grupo remanescente da antiga equipe da Fatos organizou um almoço no Hotel Novo Mundo para marcar os 20 anos do lançamento daquela revista, se viva ainda fosse. Foi durante esse encontro que nasceu a ideia de uma coletânea com as memórias dos bastidores das redações da Bloch. Depois de três anos de trabalho, com base em um projeto gráfico idealizado por J.A.Barros, foi lançado o livro "Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou" (Desiderata). Cony chamou a coletânea de "nossa pequena vingança" - e escreveu isso na página de rosto de um exemplar que autografou para mim. A história da Fatos e da "jihad" contra a revista estava lá, exposta e revelada. Naquele dia 3 de novembro de 2008, há 15 anos, com a Livraria da Travessa, no Leblon, lotada de amigos, a frustração foi curada. 

No capítulo que escreveu para a coletânea - "Quarenta e seis anos paginando os fatos e as fotos" - Barros contou sua longa e brilhante trajetória no jornalismo. Em meio às recordações, ele comentou o processo de informatização da Bloch Editores na segunda metade dos anos 1980. Designer formado no lápis, Barros assimilou com rapidez e naturalidade as novas tecnologias. Os analistas de computação mais jovens costumavam duvidar da capacidade das gerações mais rodadas dominarem hard e software. Ele desmoralizou o preconceito. Em poucas semanas tornou-se amigo de infância do Macintosh. Esse era o Barros. Vá bem, irmão.                                          

2 comentários:

Anônimo disse...

Obrigada meu querido amigo Esmeraldo e todos aqueles que acompanharam meu pai nessa belissima trajetória. Lembro como se fosse hoje o lançamento do livro, que foi e ainda é uma belíssima historia que não pode ser esquecida. E vocês, grandes amigos, estão sempre em nossos corações. Obrigada , é um carinho grande que conforta meu pai , que está lá em cima escrevendo e pintando com seu belo sorriso, e a nós filhos que sentimos a saudade desse paizão que tanto nos ensinou. OBRIGADA

Moraes disse...

Conversador e sempre alegre, assim me lembro do Barros na Manchete Esoirtiva. Que Deus o receba entre os seus.