sábado, 15 de outubro de 2022

O Último Tango em Paris faz 50 anos • Por Roberto Muggiati

 “Quo vadis, baby?” – pergunta Paul a Jeanne.

Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider) na cena do tango, Por não saber dançar, o casal recebe olhares de reprovação dos demais dançarinos.Reprodução vídeo

O cartaz do filme lançado em 1972

Lançado no Festival de Nova York em 14 de outubro de 1972, O último tango em Paris foi uma bofetada na cara daquela sociedade pragmática que ainda tentava se recuperar da ressaca comportamental dos anos 60. A crítica de Vincent Canby no New York Times reflete admiravelmente a repercussão do filme: 

“Os sentimentos de amor, angústia e desespero que eclodem por toda parte no novo filme de Bernardo Bertolucci são tão intensos, tão avassaladores, que assistir ao filme chega em momentos a ser um constrangimento, uma invasão da confiante privacidade da classe média. O último tango em Paris trata do amor romântico, mas expressa às vezes os gestos ousados e às vezes tolos de paixão sexual intensa à D.H. Lawrence que vai até seus limites e então entra em colapso, de exaustão física e emocional. O filme é triste, mas é também imensamente engraçado, sem a intenção de o ser. É tudo menos pornográfico, mas a candura de suas cenas de amor é tamanha que uma quantidade de cidadãos de moral ilibada não deixará de se sentir indignada – e se mostrará muito ruidosa na sua indignação.”  

Direção: Bernardo Bertolucci instrui os atores Marlon Brando e Maria Schneider
Foto MGM

Bertolucci, 31 anos na época, explica como lhe veio a ideia da história: “Eu sempre sonhei encontrar uma mulher num apartamento vazio, um apartamento de ninguém, um lugar sem personalidade, e fazer amor com ela sem saber quem é. Queria repetir esse ato sexual à exaustão.”

Começa o filme: um quarentão e uma jovem de vinte anos se encontram casualmente num apartamento para alugar. Trocam cinco minutos de conversa banal, o homem ergue a mulher em seus braços como uma noiva, a encurrala contra a parede e inicia a penetração. Ela consente e após cinco minutos de sexo selvagem os dois rolam exaustos no chão. Ao deixarem o prédio, o homem arranca da parede o anúncio de “aluga-se apartamento.” E partem, cada um para o seu lado. 

A jovem, Jeanne, vai a uma estação de trem encontrar o noivo, que a recebe com toda uma equipe de filmagem. Propôs à TV um documentário, “Retrato de uma jovem”, e a heroína é a própria noiva. 

O homem volta para o hotel onde mora e encontra a empregada lavando a sangueira deixada pela mulher dele, que se suicidou com uma navalha na banheira. A empregada foi interrogada a fundo pelos policiais, que desconfiavam do marido. Sabem tudo sobre ele. “Não deu certo como pugilista. Virou então ator, tocador de bongô, revolucionário na América do Sul, jornalista no Japão, vagabundo no Taiti, onde aprendeu o francês, que o levou a Paris, onde conheceu uma dona de hotel e casou com ela.” O protagonista, Paul, personalidade complexa, é delineado nestas rápidas pinceladas. A empregada lhe entrega a navalha, que os tiras devolveram, encerrando a investigação com o laudo de suicídio.  A navalha, na verdade, pertence a Marcel, o amante da mulher de Paul, que também mora no hotel.

Jeanne e Paul voltam a se encontrar no apartamento. Ela pergunta o nome dele e leva uma terrível bronca. “Nada de nomes! Você e eu vamos nos encontrar aqui sem saber nada do que acontece no mundo lá fora.” Ele estabelece as regras da relação, rígidas como as de uma convenção de condomínio. Inicialmente, a coisa funciona. Paul impõe à inexperiente Jeanne todo um repertório sexual que inclui sodomizá-la usando manteiga como lubrificante, receber dedadas no ânus – cuidando que a jovem apare com uma tesourinha de unhas os dedos médio e indicador da mão direita – e até uma cópula em que o casal não chegue a se tocar, ambos sentados nus frente a frente de pernas cruzadas, olhos nos olhos. 

A certa altura. Paul e Jeanne simulam seus nomes através de grunhidos, num jogo erótico simiesco. A descontração os induz – rompendo as regras – a inconfidências: ela, filha de um coronel que serviu na Argélia, na liberdade de um casarão com vasto terreno (sua “selva”) no interior da França; ele, filho de um fazendeiro autoritário e de uma mãe alcoólatra na América profunda de Omaha, Nebraska.

Nos intervalos da maratona sexual no apartamento, Jeanne reassume a relação com o noivo e as filmagens do documentário; Paul tem um encontro com o amante da mulher, que trabalha em casa para uma agência de recortes de jornais; e um monólogo com a mulher morta – maquiada, vestida de branco e cercada por montanhas de flores, providenciadas pela mãe – uma atuação em que Brando reedita seu famoso discurso fúnebre em Júlio Cesar, vinte anos antes. Com seu suicídio sem explicação, Rosa agride todos ao seu redor: o marido, o amante, a mãe. Diz Paul/Brando aos prantos: “Ainda que vivesse a porra de duzentos anos, um marido nunca seria capaz de descobrir a natureza real de sua mulher. Eu seria capaz de compreender o universo, mas jamais descobriria a verdade sobre você. Nunca.”

Exorcizados os fantasmas do suicídio da mulher, Paul volta à vida. Troca o capote surrado em que se escondia até agora por um elegante blazer azul marinho, camisa social azul listrada, gravata vermelha e calças cinza. Revela seu nome e status social a Jeanne, a quem propõe um casamento “normal”. Na contramão, a filha do coronel, sufocada pelos desvarios do quarentão esquisito, optou pelo casamento “pop” com o cineasta da sua idade. O adeus acontece, solene como um rito, durante uma competição de dançarinos de tango na pista da vetusta Salle Wagram. E acaba em tragédia: Jeanne foge pelas ruas de Paris para o apartamento familiar, é perseguida por Paul e lhe desfere um tiro a queima roupa com o revólver do coronel no momento em que ele diz: “Quero saber o seu nome.” Espantado diante da morte que chega, Brando ainda acha tempo para um gesto banal: tira da boca a goma de mascar e a gruda na grade da sacada de onde avista Paris pela última vez.  

O último tango é a soma feliz de fatores como a atuação de Marlon Brando, a direção de Bertolucci, a fotografia de Vittorio Storaro (inspirada pela pintura de Francis Bacon) e a trilha sonora do saxofonista argentino Gato Barbieri, que pontua cada cena do filme, sublinhando a tensão cênica.

Um dos "cacos" que Brando adicionou ao filme. Reprodução

Uma palavra sobre Brando: quando filma Tango, ele arrebata plateias pelo mundo afora com sua interpretação de Don Corleone, em O poderoso chefão, que lhe daria o Oscar de melhor ator em 1973. Embora se entenda bem com Bertolucci, ele faz cortes e acréscimos ao roteiro escrito pelo cineasta e muitas das lembranças de Paul no filme correspondem a memórias de sua juventude em Omaha. Quando Jeanne ameaça sair do apartamento na chuva, ele pergunta: “Quo vadis, baby?” Muitas das citações que improvisa são calcadas na cultura da época, essa ao filme Quo Vadis?, sobre o martírio dos cristãos sob o imperador Nero. (Vendo Cristo adentrar as portas de Roma, Pedro, que fugia da cidade, pergunta “Para onde vais, Senhor?” Jesus responde: "Já que você está fugindo e abandonando o meu povo, eu volto a Roma para ser crucificado". Arrependido, Pedro retorna a Roma para continuar suas pregações e morrer em nome de Cristo.) Seria muito preciosismo interpretativo dizer que Jeanne se deixa martirizar na arena sexual do impiedoso Paul, mas existem mil nuances de significados nos “cacos” intelectuais de Brando ao longo do filme...

Na França, o filme estreou em 15 de dezembro em sete salas com filas de duas horas durante o primeiro mês. Lançado na Itália em 16 de dezembro, depois de faturar cem mil dólares na primeira semana, Tango foi apreendido e Bertolucci processado por obscenidade e “pansexualismo exacerbado e gratuito”. A ação rolou na justiça até janeiro de 1976, quando a Suprema Corte ordenou que as cópias fossem destruídas e Bertolucci fosse condenado a quatro meses de prisão (sentença suspensa), com seus direitos civis revogados por cinco anos, incluindo o direito de voto. (Receberam também sentenças suspensas de dois meses o co-roteirista Franco Arcalli, o produtor Alberto Grimaldi e o ator Marlon Brando.)

A proibição na Espanha de Franco até 1977, levou milhares de cinéfilos espanhóis a viajarem milhares de quilômetros a cidades francesas da fronteira, como Perpignan e Biarritz.

A censura britânica cortou grande parte da cena de sodomia e grupos de defesa da moralidade condenaram a exibição do filme no país. Tango foi banido no Chile durante os trinta anos da ditadura militar, na Argentina, Venezuela, Coreia do Sul, e Cingapura; em Portugal, até a Revolução dos Cravos, em 1974. 

No Brasil, o filme só seria exibido em 1979, após a decretação da anistia política. O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, com seu proverbial mau humor, viu o filme na Europa e criticou, em meados dos anos 70, “sua temática infanto-juvenil, a exaustão do sexo como forma de diálogo.”

O tempo corrige julgamentos emocionais, principalmente em relação a obras de arte. Aqueles que reduziram O Último tango em Paris a seus aspectos meramente sexuais deixaram de perceber o real significado da love story de Bertolucci – “existencialista, com toda razão” – o trágico e complexo destino do homem na sua obstinada busca do amor

 

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