terça-feira, 15 de junho de 2021

Raul de Souza: à vontade mesmo • Por Roberto Muggiati

Com Raul e sua mulher – a francesa Yolaine – no Centro Cultural Correios, Rio, 2012.
Foto: Acervo Pessoal

Conheci o Raul em 1958 numa noite fria de Curitiba. Era um garoto que como eu amava Charlie Parker e Dizzy Gillespie. E idolatrava J.J. Johnson, o Mestre. Aos 24 anos, já tocava trombone quase tão bem como ele. Com uma diferença: não soprava um reluzente trombone de vara, mas um acanhado trombone de pisto comprado no sacrifício pelo pai, pastor presbiteriano. 

Nascido na remota Pavuna, começou a brilhar nos programas de calouros cariocas – num deles Ary Barroso pespegou-lhe seu nome profissional: “João José [Pereira de Souza] não é nome de trombonista. Já temos o Raulzão (Raul de Barros). Você vai ser o Raulzinho.” Prêmios em programas de calouro não davam para sustentar uma família, Raul já tinha mulher e dois filhos. Seguindo a deixa de um músico amigo, candidatou-se a um posto de primeiro sargento tocador de bombardino na Base Aérea do Bacacheri, em Curitiba. O comandante da base, coronel Peralta (fazia jus ao sobrenome), queria que sua banda fosse a melhor de Curitiba e criou essa insólita ponte aérea Rio-Curitiba oferecendo a músicos talentosos um emprego fixo no qual faziam aquilo que mais gostavam: música. Além da banda marcial, Peralta criou uma orquestra de dança, a 14-Bis, que fazia sucesso nos bailes e festas da cidade. No Bacacheri, Raul ensaiava marchas e dobrados no bombardino o dia inteiro. Queria tocar algo mais instigante, como o jazz que ouvia nos discos importados. Militar era proibido de circular sem farda, mas seria preso se frequentasse boates fardado. Raul viveu cinco anos esse “Catch-22”: em busca da sonhada jam session,  incursionava na noite curitibana com a farda azul da aeronáutica e o trombone de pisto para tocar em boates e dancings. Mas a música que se fazia na noite curitibana era descartável e não aquele jazz de acordes e improvisos complexos que vivia uma revolução naquele momento.

Já em 1958 nos tornamos companheiros de noite. Três anos mais moço, com 21, eu trabalhava em jornal desde os dezesseis. Ia ouvir Raul tocar em buracos como a Caverna Curitibana – um taxi dancing onde o distinto pagava um tíquete e passava pela roleta que para dançar na pista com a dama da noite de sua escolha. Às vezes não havia sequer onde tocar, Raul e o trombonista Maciel Maluco (fazia jus ao apelido) tocavam em duo para estátuas e bustos, pelo menos eram um simulacro da figura humana e nunca se queixavam da música. 


Outras noites, Raul se encontrava comigo na redação da Gazeta do Povo depois do fechamento, outras almas perdidas compareciam e iniciávamos nossa romaria pelos botecos e boates da cidade. Um dos peregrinos assíduos era o escritor Dalton Trevisan, à caça de histórias para seus contos. Dalton e Raul discorriam em vão sobre seus J.J.s favoritos: James Joyce e J.J. Johnson.

Foi nessa época que ocorreu o episódio do búfalo, o encontro metafísico-musical de Raul com um representante da espécie Bubalus bubalis, um búfalo indiano ou búfalo aquático, no meio da madrugada no Passeio Público de Curitiba, onde Raul tocava na Boate Tropical, à beira de um lago. Ali havia a moradia do búfalo (ou seria uma búfala?) e, nos intervalos do show, Raul – pra lá de Marajó – embarcava com seu trombone num pedalinho e ia fazer uma serenata para o bicho. Ele jura que o amigo respondia, com uivos e bufos. A cada noite os duetos foram se tornando mais intrincados e complexos – uma espécie de free jazz inter-espécies – Raul, compositor de mão cheia, nunca foi capaz de reconstitui-los.

Depois do segundo casamento, com uma curitibana que lhe daria duas filhas e um filho, Raul ficou mais caseiro, no seu apartamento da Rua Cruz Machado – uma área comercial de alugueis baratos, o poeta Paulo Leminski assim a definiu:

todo mundo carrega a sua cruz

eu, a cruz machado

No início dos anos 60 partimos mundo afora, eu Paris, Londres, Rio, São Paulo, Rio; Raul, além do circuito dos festivais e turnês, Los Angeles, Rio, São Paulo, Paris. Passava um ano, o telefone tocava, “Roberto”, já na primeira sílaba eu identificava aquela voz de trombone. Mas os reencontros foram frequentes, principalmente por conta de nossos vínculos curitibanos. Além dos filhos, netos e bisnetos, Raul se fez acompanhar nos últimos anos, em gravações e shows, pelo quarteto curitibano Na Tocaia, levou-o até mesmo para sua apresentação num festival de jazz na Ilha da Reunião, no Oceano Índico. 

Fez também a trilha sonora – totalmente improvisada durante a projeção, com o pianista Guilherme Vergueiro – do filme Lost Zweig, do cineasta Sylvio Back, outro companheiro das velhas noites curitibanas. 

Em Curitiba, 2019. Tributo ao
músico e amigo Edson Maciel.
Foto Divulgação
Até o final, excetuando os últimos seis meses, Raul compôs, tocou e gravou intensamente, mantendo sempre a qualidade exemplar da sua obra. 

Sua música feliz e vibrante, no timbre cálido do trombone – eu a batizei de “jazzfieira” – manifestava já sua postura existencial zen no tema de 1964 intitulado À vontade mesmo. 

Aonde quer que tenha ido – se é que foi – Raul de Souza estará sempre, e nos deixará – à vontade mesmo...

 

Um comentário:

Ana Lucia Bizinover disse...

Muggi querido,na estrela em que está Raul está lendo e relendo seus "causos". O do búfalo (a?) é impagável. Somos sortudos em contar com seus "escritos". Jazzly yours ,Bizi