"Veja ilustre passageiro, que belo tipo faceiro, que está ao seu lado. Não sabe? Salvou-o o Rhum Creosotado!"
De repente, me peguei abstraido, lendo os dizeres do cartaz pregado na porta que separava a cabine do Motorneiro dos bancos dos passageiros. Chovia muito e as cortinas que protegiam os passageiros não conseguiam evitar que fossem molhados pela chuva que caia fortemente. Era uma chuva de verão com direito a raios e trovões. Eram 4 horas da tarde. As nuvens muito baixas e escuras prenunciaram o temporal para algumas horas depois. Mas esse temporal prometido não se fez esperar muito. Logo, desabou do céu com tudo que tinha direito. Era uma chuva sonora, barulhenta. Parecia que gargalhava de alegria com o estrago que fazia. O vento de tão forte, envergava os galhos mais compridos das árvores que ladeavam o canal da avenida. Os oitis eram arrancados pelo vento e projetados com toda a força contra o chão de terra, ensopada pela água, respigando lama para todos os lados.
O Condutor, na verdade o cobrador das passagens, molhado pela chuva dos pés à cabeça, se refugiou na cabine do Motorneiro. Essa chuva era demais para ele. O seu trabalho: cobrar as passagens pendurado nos balaustres dos Bondes. Tarefa para mim, senão imposível, muito arriscada, porque se corria risco de vida.
Eram verdadeiros atletas, se agarrando nos balaustres e se apoiando nos estribos, iam de banco em banco a cobrar as passagens dos passageiros sentados. Isso quando o Bonde levava poucos passageiros. Quando estava cheio, nas horas de maior movimento, carregava até passageiros pendurados nos balaustres, que se apoiavam apenas nos estribos do Bonde.
Malabaristas da vida, acrobatas da sobrevivência, o Condutor, herói do quotidiano, não deixava de cobrar a passagem de ninguém. Todos tinham que pagar. Com chuva ou com sol a pino.
Nesse dia, nessa hora o Bonde estava cheio e os estribos, carregados de pingentes, pendurados nos balaustres com a chuva batendo forte, molhando, ou melhor, encharcando os que estavam nos estribos e sapecando os que estavam sentados.
Teve uma hora que o Condutor teve que sair, enfrentar a chuvarada, porque tinha de cobrar os passageiros. Ele começou a cobrança pelo primeiro banco. Com uma capa impermeável de capuz, que não impedia que ficasse encharcado, começou a sua jornada e o seu trabalho. Cobrava primeiro dos que estavam sentados e a seguir dos que estavam nos estribos.
Esse Bonde carregava também um reboque, que além dos bancos passageiros, tinha um espaço entre eles, para transportar bagagens. Geralmente as lavadeiras, com as trouxas de roupas sujas, que levavam para as suas casas, no subúrbio, para nos seus quintais lavarem as roupas das madames.
Nessa tarde, o reboque também estava lotado de passageiros e de lavadeiras.
O Bonde já tinha percorrido metade do seu trajeto e logo adiante tinha uma curva em U, fechada para dentro e precisava de perícia do Motorneiro para nela entrar sem maiores problemas.
O Bonde ia a uma velocidade estimada em ponto nove, que é a sua maior velocidade alcançada, correndo o risco de sair dos trilhos podendo causar um desastre com consequências graves.
Não deu outra. O Motorneiro não conseguiu diminuir a velocidade a tempo e o Bonde entrou na curva como veio, descarrilhando dos trilhos e escorregando no chão de paralelepípedos molhados pela água da chuva, jogou os passageiros dos estribos para fora. Muitos pressentindo o desastre saltaram do veículo andando. Os poucos que foram arremessados no chão se feriram alguns com certa gravidade, mas que não passou de pernas e alguns braços quebrados.
No primeiro momento, assustado com o barulho da rodas trincando os paralelepípedos a soltar chispas de fogo no atrito do aço com as pedras e sentindo a estrutura do Bonde envergar, dei um grito de pavor e levado pela necessidade de sair o mais depressa de onde estava para respirar ar puro e me sentir seguro longe da caixa toda torcida que tinha sido um Bonde.
Todo mundo gritava, principalmente as mulheres sendo que algumas desmaiavam despencando no chão.
A chuva caindo mais forte deixava todos encharcados. Foi quando um grito maior, que mais parecia o uivo de um animal, cortou o ar silenciando o resto. Todos pararam até de respirar com o grito e olhando para a mulher que gritara viram que apontava para o reboque. Todos voltaram os seus olhos para essa direção e viram, horrorizados, o Condutor, embaixo das rodas do reboque, com as duas pernas cortadas se esvaindo em sangue que se misturava com a água da chuva, escorrendo para o bueiro do meio fio.
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