Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sergio Dias. Foto de Antonio Trindade/Manchete |
Em março de 1968 troquei o Rio por São Paulo para trabalhar no projeto da revista Veja, que seria lançada em setembro. Editar um newsmagazine nos moldes da americana Time era o sonho dourado de Victor Civita, tão importante que ele aposentou sua galinha dos ovos de ouro – a revista mensal de reportagens Realidade, o maior sucesso da Abril – para concentrar todas suas forças e finanças na semanal de atualidade.
Numa estratégia equivocada, o velho VeeCee, 61 anos, adotou a grade funcional da Time, copiando seu expediente, preenchendo centenas de empregos com os melhores jornalistas do Brasil. O êxodo das redações cariocas para a Pauliceia somava algumas dezenas de editores, redatores e repórteres. Acontece que a Time – iniciada com um punhado de bravos em 1923 – evoluiu palmo a palmo até sua configuração de 1968, ao longo de cinco décadas, num cenário sociocultural específico, atravessando os crazy twenties, o crack da Bolsa, a Depressão, a Segunda Guerra, o boom dos anos 50, a Guerra Fria e os swinging sixties, ou seja, um cenário tipicamente norte-americano.
Ainda: a campanha publicitária dava a impressão de que a Veja seria a Manchete da Abril. Esse erro foi bombasticamente reforçado na véspera do lançamento: transmitido pela TV em cadeia nacional às 20 horas de domingo 8 de setembro (a revista saía às segundas com a data de capa de quarta), um documentário de Jean Manzon mostrava a Veja cobrindo todas as frentes de guerra do mundo, que não eram poucas na época. A Abril se deu conta da imagem truncada ainda na fase dos “números zero” e – pior a emenda que o soneto – acrescentou ao veja do logotipo as palavras e leia. Fez ainda uma maciça distribuição de brindes para meio Brasil: uma lupa num estojo com a logomarca veja e leia.
A "Árvore" no topo da antiga sede da Abril, na Marginal Tietê |
Record acompanhando Gilberto Gil em Domingo no Parque; no ano seguinte fizeram história na final paulista do FIC, cantando sob vaias o polêmico É proibido proibir de Caetano Veloso.
O recente anúncio da doença de Rita Lee me fez voltar àqueles tempos e me sentir, de certa forma, culpado. Não havia nenhum espaço decente na Abril para receber celebridades. Tinham de comer no horroroso galpão de madeira comunal dos jornalistas e demais empregados, que ficava num anexo ao lado do prédio da editora – quando chovia, e amiúde chovia grosso, todo mundo se encharcava. Senti-me vexado ao receber os garotos – Rita e Arnaldo tinham 20 anos, Sérgio 18. Ainda não tinha aflorado ao sangue da ruivinha a rebeldia sulista de seus antepassados que lutaram na Guerra da Secessão – as irmãs, Mary Lee e Virginia Lee também foram nomeadas em homenagem ao general confederado Robert E. Lee – mas cheguei a recear, da parte de uma Rita Lee afrontada, algum protesto, como batucar numa panela, igual à matriarca dos filmes de faroeste, e chamar os caubóis para o rancho: “Come and get it!”
No ano e meio que passei na Veja em São Paulo só uma vez fui convocado por Seu Victor para receber um convidado VIP, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, recém-consagrado “Velho Guerreiro” por Gilberto Gil em Aquele abraço, o hino de despedida do baiano ao partir para o exílio em Londres. Foi um almocinho tacanho naquele pequeno anexo na cobertura do prédio encimado pela árvore da Abril. Um cardápio tão banal que não guardo a menor lembrança do que foi servido. Não podia haver maior disparidade de temperamento entre o Civita e o Chacrinha, o motivo do encontro era um negócio, os dois iam ganhar muito dinheiro à custa do outro. Chacrinha era tão genial que tinha resumido toda a teoria do Marshall McLuhan num bordão: “Quem não se comunica, se trumbica.”
Glauber Rocha na capa da Veja, 1969 |
Recebi ainda outra celebridade, sem o menor aviso: uma tarde Glauber Rocha adentra meu cubículo de editor, avisado de que a Veja preparava uma grande matéria sobre seu “cordel Western” O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que concorria ao Festival de Cannes de 1969. Além da alma de cineasta, Glauber tinha feeling de marqueteiro e faro de repórter e me encheu de mil detalhes sobre o making of do filme: por exemplo, como uma pesada câmera foi perigosamente içada por meio de cordas a uma escarpada montanha no sertão baiano. Glauber ganhou o prêmio de melhor direção em Cannes, ganhou também a capa de Veja, a única que assinei, enriquecida pelas informações de cocheira do cineasta. Nem um cafezinho morno lhe foi oferecido no prédio da Abril.
Na Veja, em 1968. Foto Acervo Pessoal |
Guardo da época uma única foto, um melancólico instantâneo, de paletó e gravata, no cubículo que dava para a terra devastada do Tietê. Rita Lee, em troca, era a glória, com seu olhar safado debaixo das franjinhas, rosto sardento, margaridas nos cabelos, bochechas rechonchudas, um fininho entre os dentes.
Pouco depois, eu voltava ao “balneário da república” para dirigir a Fatos&Fotos, na empresa que Adolpho Bloch definia como “um grande restaurante que, por acaso, imprimia revistas”. Em breve, aguardem no Panis Cum Ovum – até o título do nosso blog é uma referência culinária – um suculento relato sobre o Império Gastronômico da Manchete.
2 comentários:
Texto fundamental para compreendermos o jornalismo dos anos 1960 e 70 e o que veio depois. Esses artigos mereciam estar reunidos num livro
A Abril sempre foi assim: travada, sem jogo de cintura, contraditória... paulista, enfim.Eles conseguiam transformar uma coisa deliciosa (publicar revistas) em algo pesado, chato, burocrático. Ali passei os momentos mais aborrecidos de toda a minha carreira jornalística.Voltar para a Bloch foi um alívio.Ganhávamos uma miséria, mas nos divertíamos uma barbaridade!
Postar um comentário