quarta-feira, 19 de julho de 2023

Flanando na chuva • Por Roberto Muggiati

London Albert Bridge depois da chuva. Foto Roberto Muggiati

Ponte Vecchio, Florença/Reprodução Instagram

Não sei se é coincidência ou tendência, mas tenho visto muita coisa sobre a arte de flanar nas folhas (sim, ainda sou daqueles que lê as folhas, ou meramente as folheia...). O Estadão desta terça dedicou duas páginas ao assunto (Como vagar por cidades ao lado de escritores) e aguardo ansioso o livro que encomendei à Estante Virtual Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres (quem sabe já estaria a caminho uma versão “transflâneuxx”?)

Gostaria de contribuir aqui com uma variante sobre o tema que pratiquei em meus dias de Paris, Londres e adjacências: o contrassenso de flanar na chuva. E não o fazia por excentricidade, mas por mera necessidade. Nos três anos que morei em Londres, conheci muito pouco do Reino Unido, apenas um Natal em Bath, uma ida a Stratford para uma nova encenação de uma peça de Shakespeare e uma escapada dominical ao País de Gales. Britânico de raiz, eu passava as férias no “Continente”. E como tinha férias! Solteiro descompromissado, muitas vezes emendava um dia normal de trabalho no Serviço Brasileiro da BBC com a transmissão noturna ao vivo. Isso me rendia “comps”, compensações que eu ia somando para gozar duas ou até três férias por ano. A Itália era um dos destinos favoritos e foi assim que me encontrei no verão de 1963 em Florença, no momento em que jornais do mundo inteiro noticiavam a devastação do meu estado natal, o Paraná, por um dos maiores incêndios florestais da história. Hospedado no centro monumental de Firenze, eu já estava no meu terceiro dia sem poder sair por causa de um a chuva persistente. Alguém me avisara “Florença é o penico do mundo”  – mas não dei ouvidos. Só faltava pedir à dona da pensione que me ensinasse a fazer crochê, mas meu lado rebelde se insurgiu. Vesti minha valente capa impermeável Burberry e saí na chuva. Vocês não podem imaginar a sensação de liberdade, tendo Florença só para mim, despida das hordas turistas. Pude observar detalhadamente a placa no chão da Piazza dela Signoria, QVI FU IMPICCATO ED ARSO FRA GIROLAMO SAVONAROLA, “aqui foi enforcado e incinerado Girolamo Savonarola”, evocando o frade rebelde executado em 1498. Ou atravessar o rio Arno pela Ponte Vecchio. Ou simplesmente vagar pelas ruas de pedras seculares. Numa de minhas andanças noturnas ouvi música de piano emanando da igreja do Santo Spirito, era o concertista chileno Claudio Arrau numa apresentação gratuita, interpretando a Sonata Les Adieux de Beethoven. 

Sonata No. 26 in E-flat Major “Les Adieux”, Op. 81a: II. Abwesenheit (Andante espressivo) - YouTube 

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Em Londres continuei a saudável prática – propícia a resfriados ou a uma eventual pneumonia – no meu “quadrilátero sobre o Tâmisa”: a extensão do Embankment na margem norte e a do Battersea Park na margem sul do rio, ladeadas pelas pontes Albert e Chelsea, quatro quilômetros de percurso. Uma vez me aventurei um pouco mais longe para o sul, até Clapham Common, onde ficava o prédio de Graham Greene destruído por uma bomba na Segunda Guerra. Ele localizou ali a casa da amada em The End of the Affair /Fim de caso (1951). No romance, meu favorito de GG, a heroína morre de uma infecção pulmonar agravada por ter caminhado na chuva em Clapham Common. 


Hoje vejo flanar na chuva como uma atividade sem futuro. A temperatura amena que ela requer foi violentada pelo aquecimento global. Há violência nas ruas, balas perdidas prontamente achadas. 

E os humanos passaram a preferir capas de chuva berrantes de PVC. 

Impermeáveis da Burberry se tornaram exclusividade do pet elegante...

Um comentário:

Isa disse...

O Rio é uma cidade perfeita para isso. A beleza da cidade, a história,o que foi preservado, infelizmente a violência não recomenda. Minha mãe adorava a Praça Paris e me levava lá. Gostaria mas tenho medo de voltar lá.