terça-feira, 5 de outubro de 2021

Lizzie Bravo (1951-2021): a brasileira que cantou com os Beatles. Por Roberto Muggiati

Lizzie em Londres, 1968. Foto Álbum de família

Em 2011, a pedido da revista Contigo, Roberto Muggiati entrevistou Lizzie Bravo. Na época, ela preparava o livro Do Rio a Abbey Road, onde contou a grande aventura que foram os dois anos e oito meses vividos em Londres junto aos Beatles – e gravando com eles.  Elizabeth Villas Boas Bravo, a carioca da Penha, morreu hoje, aos 70 anos, vítima de problemas cardíacos. 

A seguir, você poderá ler a íntegra da entrevista.  


A brasileira que entrou para a lenda dos Beatles

Superastros exigem superfãs. Durante dois anos e oito meses, entre 1967 e 1969, a carioca Lizzie Bravo viu de perto John, Paul George e Ringo quase todos os dias na porta dos Estúdios de Abbey Road, e na Apple, em Londres. Mais do que isso, Lizzie gravou com os Beatles, quando tinha apenas 16 anos. Esta gravação  histórica, Across the Universe, marcou sua vida para sempre, entrou para a lenda dos Beatles e foi lançada pela NASA para o espaço profundo, a 431 anos-luz da Terra.

Ela adoraria ser “a garota dos olhos de caleidoscópio” (de Lucy in the Sky with Diamonds), mas se eternizou como “a esperança de óculos” na letra de Casa no Campo, de José Rodrix, seu marido em 1971. Os insondáveis caminhos que levaram Elizabeth Villas Boas Bravo, nascida no bairro carioca da Penha em 29 de maio de 1951, dão uma boa ideia de como pode ser rica a história individual de um ser humano. Lizzie conta:

— Quando nasci, meus pais moravam em cima do Cine Vaz Lobo. Quando eu tinha três anos, meu pai, Luiz Carlos Bravo, foi transferido para a Venezuela como gerente da Encyclopaedia Britannica (olhaí o inglês entrando já na minha vida...). Na volta ao Brasil, em 1962, a família se instalou no Leme e entrei para o colégio de freiras Stella Maris. Eu estudava piano e balé e era bandeirante naquela igreja ao lado do Rio Sul.  Meu pai um dia trouxe dos Estados Unidos um LP, Meet the Beatles. Pirei. Mas só a música dos carinhas não me bastava. A filha da empregada, Helena, insistiu que a gente fosse ao cinema para ver o primeiro filme dos Beatles, A Hard Day’s Night, chamado Os reis do Iê-Iê-Iê no Brasil. Era outra coisa não só ouvi-los, mas vê-los em movimento. A gente via uma sessão atrás da outra, se escondendo no banheiro para não pagar ingresso. Muitas meninas da época são minhas amigas até hoje. Eu e minha amiga Denise pedimos à família como presente de 15 anos uma viagem a Londres. Os Beatles pararam de excursionar em 1966, se não tomássemos uma atitude, nunca mais os veríamos “ao vivo”. Denise viajou um mês antes. Parti em 13 de fevereiro de 1967. Chorei sentada na poltrona do avião ao ver a família lá fora acenando para mim. Aí eu já era Lizzie (de Dizzy Miss Lizzy, gravado pelos Beatles), havia Elizabeths demais na minha turma na escola. Em Londres, Denise me recebeu ansiosa (‘Vamos, corra, menina!’), larguei a bagagem no hotel e me mandei com ela para os estúdios de Abbey Road. 

— Vi os quatro Beatles na noite daquele dia em que cheguei a Londres, 14 de fevereiro de 1967.  Eles saíram em dupla, primeiro John e Ringo, depois Paul e George.  Foi um choque – de um dia para o outro, eles viraram “de verdade!”.  Passei a freqüentar a porta de Abbey Road todo dia com a Denise.  De dia, as meninas eram muitas, mas poucas podiam esperá-los sair, tarde da noite.  As mais corajosas aturavam um frio de rachar, vento, chuva, neve – o que fosse.  Com minissaias e meias finas, sentadas na pedra gelada das escadas da porta de entrada de Abbey Road, congelávamos a bunda, cantando musicas dos Beatles para amenizar o sofrimento físico.  Nossa alimentação era precária, idas ao banheiro só em caso de emergência, porque a qualquer cochilo você deixaria seu Beatle favorito ir embora, depois de tantas horas de espera.

Não havia nenhum prêmio especial para as fãs, bastava estar perto dos ídolos e vê-los de vez em quando, bater um papinho, tirar fotos e pegar autógrafos. Mas, quase um ano depois de ter chegado a Londres, em 4 de fevereiro de 1968, Lizzie Bravo tirou a sorte grande. O feito está nos compêndios. Mark Lewisohn registrou em The Complete Beatles Chronicle:

“John e Paul se deram conta de que faltava à canção [Across the Universe] harmonias em falsete. Encontrar duas cantoras numa noite de domingo normalmente teria sido impossível, mas para os Beatles bastava dar um pulo até a frente do Estúdio da EMI e congregar duas das fãs que estavam sempre lá. Paul fez justamente isso, escolhendo Lizzie Bravo, uma brasileira de 16 anos, que morava perto de Abbey Road, e Gayleen Pease, 17, londrina, que naturalmente ficaram empolgadas por serem as únicas fãs jamais convidadas a contribuir para uma gravação dos Beatles.”

Lizzie não teve a dimensão do que estava acontecendo naquela hora:

— Estar no estúdio com os quatro Beatles, o George Martin, Mal (Evans), Neil (Aspinall) e minha amiga Gayleen naquele momento pareceu muito bacana, mas “normal”.  Afinal estava acostumada a vê-los quase todos os dias o ano todo de 1967.  Só muito mais tarde “caiu a ficha” do que tinha acontecido. Demorou um bocado para Across the Universe chegar às lojas. Primeiro eles doaram a canção para um disco de caridade, Nothing’s Gonna Change Our World, projeto do Príncipe Phillip.  Depois, ela saiu num LP chamado Rarities, e finalmente no Past Masters II, onde pode ser encontrada até hoje, agora remasterizada. O curioso é que nada mudou depois da gravação. Gayleen e eu continuamos esperando do lado de fora, e nossas amigas nos tratavam do mesmo jeito.  Ambas tímidas, pouco falávamos no assunto.

Em agosto de 1969, com o final das gravações do álbum Abbey Road, chegava ao fim a Era dos Beatles. Lizzie deixou Londres no finzinho de outubro.

— Estava cansada, queria passar um tempo no Rio e depois voltar (deixei caixas com minhas coisas por lá).  Mas...  em março de 1970 conheci o Zé Rodrix num ensaio do Som Imaginário com Milton Nascimento no Teatro Opinião em Copacabana. Começamos a sair, fomos morar juntos pouco tempo depois, dividindo um quarto-e-sala em Copacabana com os amigos Tavito e Marco Antonio Araujo. Casamos em dezembro do mesmo ano, 1970.  Marya nasceu dez meses depois, no final de outubro de 1971.  Eu e o Zé nos separamos pouco depois, em meados de 1972. Na época ele compôs sua obra-prima, Casa no Campo, perguntei a ele um dia o que queria dizer com aquele “eu quero a esperança de óculos” da letra. O Zé respondeu: “Mas a esperança de óculos é você, Lizzie!”

Existe vida depois dos Beatles? Com certeza. Lizzie voltou a viver fora do Brasil: em Caracas, após a separação; nos Estados Unidos entre 1984 e 1994. Tornou-se uma hábil fotógrafa, trabalhou como assistente de Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos e Milton Nascimento, entre outros. Cantou com Joyce de 1980 a 1992 em discos, shows e turnês, inclusive no Japão e Estados Unidos. Gravou ainda com Milton, Egberto, Toninho Horta, Ivan Lins — a lista é interminável, uma verdadeira enciclopédia da MPB. Engana-se quem pensa que Lizzie Bravo só ouve os Beatles. Adora e ouve muito MPB, o que pode até chocar os beatlemaníacos mais extremados. Lizzie também é louca pela banda U2. Ao todo, desde os anos 80, já assistiu a 36 shows da banda. 

Marya Bravo, a filha de Lizzie, também se tornou cantora. Com cinco anos, gravou o conhecido jingle “Cremogema”, entre outros, e logo depois começou a cantar nos discos do Egberto e a fazer vocal com muitos nomes da MPB.  Aos 17 anos, foi para a Europa em turnê com o musical Hair e acabou ficando seis anos na Alemanha, com direito a marido e filha, Morgana, hoje com 18 anos. 

Pouca gente teve o privilégio de gravar com os Beatles. Profissionais, apenas o Eric Clapton e o Billy Preston. Yoko Ono fez um dueto com o John em Everybody's Got  Something to Hide Except for me and my Monkey e ela e Pattie Harrison fizeram vocais em Birthday. E, é claro, Lizzie e Gayleen.Mas ela faz questão de ressalvar:

— Não gosto de ser citada como "amiga dos Beatles".  Nunca fui amiga de nenhum deles.  Apenas uma fã privilegiada.  Quando as pessoas falam isso, eu respondo com uma pergunta: "Você deixaria seus amigos esperando você do lado de fora, na neve?”.

Pergunto a Lizzie: “E a importância na sua vida das seis palavras que você canta em Across the Universe: NOTHING IS GONNA CHANGE MY WORLD ?”

— Estas palavras mudaram o meu mundo para sempre.

A saga de Across the Universe continua viva. Um jogo de computador recente, Trivial Pursuit/The Beatles, tem uma pergunta dedicada a Lizzie e Gayleen: “Quais fãs dos Beatles foram convidadas por Paul a cantar os backing vocals em Across the Universe?” A canção foi mandada pela NASA para a Estrela do Norte, Polaris (a 431 anos-luz da Terra), em 4 de fevereiro de 2008, comemorando os 40 anos de sua gravação, os 50 anos da própria NASA, e os 45 anos do Deep Space Network, uma rede de antenas que apóia as missões de exploração do universo. Paul vibrou, na ocasião: “Incrível! Beleza, NASA. Mandem meu amor para os ETs.” 

Já Lizzie, com um humor mais para Lennon, comenta:

— Meu irmão, Ricardo, acha melhor eu não esperar para ver se eles vão gostar. Afinal são 400 e poucos anos para chegar lá e outros 400 e poucos para voltar... 

3 comentários:

J.A.Barros disse...

Lizzie é uma história fantástica. Sua vida poderia ser contada em um livro, não só pela oportunidade e do destino de ter gravado uma canção com os lendários Beatles, mas também pelo o que veio acontecer após esse evento inédito. Lizzie viveu no mundo da música com os grandes artistas que deixaram suas marcas neste maravilhoso palco musical. Lizzie é uma história.

Isabela disse...

Também fotógrafa que deixou registro importantes. Vai com Deus

Renan disse...

Lizzie Bravo lançou o livro Do Rio a Abbey Road, que conta sua história e vem com muitas fotos. O livro está ainda pode ser encontrado como indica o Google.