segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O Cristo e seus clones • Por Roberto Muggiati


Cristo Redentor, Corcovado. Foto de Fernando Maia Riotur-Divulgação

Nos 90 anos da estátua do Redentor no alto do Corcovado, a TV mostrou as incontáveis réplicas do Cristo que se espalham pelo Brasil afora. Em sua grande maioria, são imitações toscas e cafonas da escultura feita pelo francês Paul Landowski, uma autêntica joia da art déco. 

Cristo de Brejatuba. Reprodução Facebook

Minha nêmesis (em grego: Νέμεσις) – deixa pra lá, sem pedantismos, minha bronca maior é com o Cristo de Brejatuba, praia do litoral paranaense no municipio de Guaratuba. No alto de um morro, é alcançada por uma escadaria com 197 degraus de placas de cimento, que subíamos correndo nas jovens noites de porre no início dos anos 1950. A estátua lamuriosa, inaugurada em 1952, mostra um Cristo com as vestes infladas, pés apartados, a mão direita apontando para a entrada da barra, a mão esquerda sobre o coração. A pose atlética é ridícula e lembrava a mim – numa interpretação personalíssima – aquela do discóbulo de Mirón.

Foi por essa época que comecei a frequentar o balneário nas férias de inverno. Acontecia ali o fenômeno que no Rio de Janeiro foi batizado de “cigarras”. Respeitáveis cidadãos mandavam suas famílias para as férias na Serra e ficavam a farrear na pródiga noite da Capital Federal. No Paraná o movimento só era geograficamente inverso: chefes de família desovavam esposas e filhos nas praias e se esbaldavam na noite curitibana, turbinada naqueles tempos pelo dinheiro das exportações de café – aviões cheios de argentinas pousavam em Curitiba trazendo belas bailarinas e acompanhantes para os cabarés e boates da Cidade-Sorriso (ainda não tinha surgido a Boca Maldita).

Desterradas em Guaratuba, algumas mulheres – especialmente aquelas sem filhos – iam à forra. Nós, garotos de treze, quinze anos, nos divertíamos nas tardes frias e chuvosas circulando no carrão americano da família (geralmente um Caddilac rabo-de-peixe) pelas ruas desertas, pavimentadas de conchas de sambaquis. Era um passatempo típico da época da gasolina barata, que os americanos chamavam de “cruising” – algo como navegar sobre quatro rodas, a gíria veio da ronda dos carros-patrulha da polícia. Visitávamos as casas de namoradinhas potenciais – as donzelas nas janelas – e fazíamos uma parada às vezes para subir no alto do Morro do Cristo, um posto de observação privilegiado. Com um pouco de paciência, flagramos muitas vezes respeitáveis esposas no carro de um pai esperto que, às profissionais portenhas, dava preferência a mães locais desgarradas e genuinamente fogosas.

O equivalente norte-americano do nosso Cristo é a Estátua da Liberdade, da qual existem réplicas em praticamente cada um dos 50 estados da federação. O que me lembra imediatamente um dos melhores romances de Paul Auster, Leviatã (1992), em que um promissor romancista sai pelo país explodindo réplicas da Estátua da Liberdade. Tal iconoclastia jamais ocorreu no Brasil com relação ao Cristo, excetuando o ato isolado de um obscuro bispo da Igreja Universal que chutou aos palavrões uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. O que me leva a uma reflexão sobre a índole dos nossos anarquistas, única faixa da população de que se poderia esperar alguma rebeldia. Aliás, eu não estaria aqui hoje não fosse a Colônia Cecília, um sonho de anarquistas italianos que durou pouco, mas inspirou incontáveis livros e filmes. Intelectuais e sindicalistas de Milão e arredores, liderados pelo ideólogo Giovanni Rossi, tentaram criar uma colônia anarquista em solo brasileiro, nas terras doadas por D. Pedro II em Palmeira, a 100 km de Curitiba. Meu bisavô Ernesto Muggiati, de Stradella, (com mulher, dois filhos e duas filhas) quase chegou lá. Morreu de febre amarela ao aportar em Paranaguá. Nossos anarquistas fizeram tudo errado. Nos vastos campos plantaram milho, uma cultura demorada. Quando venderam o produto da primeira colheita, quatro anos depois, o tesoureiro fugiu com todo o dinheiro. Foi o fim da Colônia, seus integrantes aos poucos debandaram, em busca de emprego em Curitiba, outros seguiram para São Paulo. A maioria dos italianos que vieram para o Brasil trouxe a religiosidade ancestral, apegando-se ao culto da Virgem e de seu filho Jesus. As famílias costumavam destinar pelo menos um de seus filhos ao sacerdócio. Das filhas que ficavam solteiras, muitas ingressavam em conventos. Muitos imigrantes – antigos pedreiros ou mestres de obras – se improvisaram em arquitetos e construíram igrejas e até mesmo catedrais.  Uma história que Zélia Gattai contou muito bem (os Gattai vieram também para a Colônia Cecília) em seu livro com o título irônico de Anarquistas graças a Deus...

Um comentário:

Mazzarello disse...

Em São Paulo essa moda dos cigarras era forte. as famílias eram despachadas para o litoral e os maridos caiam na farra. Não tinha celular pras mulheres localizarem os maridos. Eles botavam o siga- me nos telefones fixos e atendiam em apartamentos alugados só para a gandaia. Os malandros fingiam que estavam em casa.