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domingo, 25 de setembro de 2022

Sou italiano graças ao Senegal • Por Roberto Muggiati

 

Cartão enviado de Dacar, por Diogo Muggiati, em 1911

O Senegal em sua segunda participação numa Copa (se seguir em frente poderá enfrentar o Brasil nas quartas de final) me levou a divagar sobre minha relação com aquele país do oeste africano. Entre velhos papeis da família que dormiam no fundo de uma gaveta, tive um dia minha atenção chamada para um pequeno cartão postal enviado de Dacar por meu avô paterno para minha avó em Curitiba. 

Resumo a história de sua breve vida: com pai mãe, irmão mais velho e duas irmãs deixou a Itália aos doze anos, em 1889, e veio participar do sonho da Colônia Cecília, uma comunidade anarquista que se instalaria nos campos de Palmeira, a cem quilômetros de Curitiba. O sonho virou pesadelo quando o pai morreu de febre amarela ao chegar em Paranaguá. A viúva subiu para Curitiba e, sem meios para criar as crianças, as destinou a famílias locais em cujas casas teriam cama e comida, é claro, ajudando como serviçais, cumprindo pequenas tarefas., Maria Quaroni Muggiati, com os ganhos do trabalho de costureira logo, resgatou os dois filhos e as duas filhas. Os meninos, começando como sapateiros acabaram em pouco tempo donos de uma próspera indústria de calçados.

Meu avô casou com uma italiana nascida já no Brasil e teve cinco filhos, quatro homens e uma mulher. Pouco depois de completar 34 anos, uma doença pulmonar o levou a procurar cura na Itália. O cartão enviado de Dacar em 3 de agosto de 1911 – cuja imagem destaca um embarque de tropas sei lá de que guerra, o Senegal seria colônia francesa até 1960 – descreve as vicissitudes por que passava meu avô Diogo:

 “Acho-me na metade da viagem, pior do que imigrante, devido ao grande número de passageiros que somos não me foi possível passar para a 2ª nem 1ª classe por não haver lugar, minha saúde sempre o mesmo, não tive nenhuma melhora, paz.”

Um mês depois, em 3 de setembro, meu avô morria num hospital de Pavia. 0itenta anos depois, inspirado nessa informação, dei início ao processo de aquisição da cidadania. O consulado italiano no Rio redigiu uma carta em para a prefeitura de Pavia requisitando o atestado de óbito. Através desse documento ficamos sabendo que tinha nascido em Stradella. A certidão de nascimento o dava como Pietro Giuseppe Diego Muggiati, o escriba da imigração, que não gostava de nomes compridos, o reduziu a Diogo Muggiati. 




Juntando toda essa papelada e vertendo os documentos brasileiros para o italiano por um tradutor juramentado, ganhei o passaporte italiano, extensivo a minha mulher e meus dois filhos. Morando no exterior (ele há 14 anos, ela há seis anos), recebem o tratamento condigno de cidadãos da comunidade europeia, que jamais receberiam como brasileiros.

• Em outubro de 1960, a caminho de uma bolsa de estudos em Paris, na escala do voo São Paulo-Lisboa eu teria no aeroporto de Dacar o meu gostinho do Senegal – ou pior, meu cheirinho, o bodum descomunal de um punhado de burocratas soviéticos com ternos grossos, pulôveres, camisas, camisetas e ceroulas, vendendo seu peixe em longas viagens ao redor do mundo.

• Em Paris, estudando no Centre de Formation des Journalistes, ao voltar certas noites para a Cité Universitaire, comia algo no bistrô La Petite Source, no Carrefour de l’Odéon, muitas vezes na companhia do colega Cissé, do Senegal, que me assediava sedento de notícias do Brasil. Quando nos conhecemos olhou para mim como se eu fosse um ser extraterreno e me perguntou, solene:

– Monsieur Muggiatí, est-ce que tu connais vraiment le Roi Pelé?

Na sua visão, Sua Majestade Edson Arantes do Nascimento reinava supremo sobre um vasto império tropical cheio de súditos felizes. Curiosamente, eu acabara de assistir em 13 de junho, no Parc des Princes, à fabulosa vitória do Santos de Pelé sobre o Racing por 5x4 no Torneio de Paris, diante de de 40 mil pessoas extasiadas. 

Outra das fantasias do bom Cissé eram as brasileiras:

– Ah, les femmes brésiliennes... Ce que je ferais pour les connaître!

• Dezoito anos depois, em outra escala no aeroporto de Dacar, no voo Rio-Genebra a caminho do Festival de Jazz de Montreux, com Hermeto Pascoal e sua banda, conversei com o saxofonista Nivaldo Ornelas que, ao saber que eu era da Manchete, me inquiriu exaustivamente sobre seu conterrâneo Argemiro Ferreira, que trabalhava na revista, contrariando a frase famosa que Nelson Rodrigues atribuía a Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.”

• Em tempo: um dos senegaleses mais célebres foi Léopold Sédar Senghor, seu primeiro Presidente da República, criador – com o martiniquense Aimé Cesaire – da palavra e do conceito da negritude.