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sexta-feira, 17 de junho de 2022

Maria Lúcia Dahl: da sombra do Arco do Triunfo às madrugadas do Baixo-São João Baptista • Por Roberto Muggiati

Aos 20 anos, então Maria Lúcia Pinto, no palacete do embaixador Paulo Carneiro, em Paris.
Fotos: Arquivo Pessoal

Foram cinquenta anos de amizade, entrecortados por nosso Wanderlust em várias paragens mundo afora. Conheci Maria Lúcia Pinto em Paris, 1961, no palacete de Paulo Carneiro, nosso embaixador junto à Unesco, numa transversal de uma das grandes avenidas que irradiavam da Étoile do Arco do Triunfo. Tinha 19 anos e, para mim, era a mulher mais bonita e desejável do mundo. Elegante, sua griffe era Chanel, roupas e perfume.

Eu era um bolsista pobre, mas tive a sorte de encontrar um hotelzinho no local mais charmoso de Paris, na Place Dauphine, na proa da Île de la Cité, onde as águas do Sena se bifurcam debaixo do Pont Neuf. O pai do surrealismo André Breton também morou lá e menciona o City Hôtel em seu romance-chave Nadja.  Eu recebia um dinheirinho de minha família de Curitiba e o reservava para concertos de jazz no Olympia e noitadas excepcionais no Blue Note. Maria Lúcia viajava com os pais, Mário e Regina, e com a irmã Marília. Tentei seduzi-la convidando para shows de jazz. SeLembro de uma noitada com o quinteto dos irmãos Adderley, Julian “Cannonball” e Nat no Olympia, depois do show nos juntamos a amigos que nos esperavam no Harry’s New York Bar: Marília, Joaquim Pedro de Andrade, duas ou três funcionárias da coorte de Paulo Carneiro na Unesco. Uma delas, Neusa Azambuja, tinha um carro. Depois de umas e outras, nos pusemos a tramar uma incursão a Bruxelas para sequestrar a estátua do Manneken Piss – o famoso Manequinho Mijão. Os vapores etílicos acabaram dissipando a brilhante ideia. Quando saímos do Harry’s, a manhã precoce de primavera já raiava, fomos passear no Jardim das Tulherias, Maria Lúcia mais inclinada pelo Joaquim Pedro, eu com Marília, que era noiva do filho do embaixador, Mário Carneiro, grande fotógrafo do Cinema Novo, com quem casaria depois. (Marília Carneiro tornou-se figurinista da TV Globo e uma das melhores do país.)

Corte rápido do Sena para o Tâmisa, às margens do qual eu morava em  1963. Depois de uma noitada num pub à beira-rio, levei um grupo para o meu apartamento no 8 Embankment Gardens. Eu ia passar um mês de férias na Itália e o decorador Rodrigo Argollo, que fazia parte da turma, queria sublocar meu apartamento. Maria Lúcia foi junto, toda de preto. Reparei um furo no seu suéter, a região da omoplata, e enfiei o dedinho nele. Era o detalhe do fim da farra: em breve todos nós, por absoluta falta de dinheiro, voltaríamos para o Brasil, pisando pela primeira vez no Rio da ditadura militar. Casado com a Lina, que conheci em Paris, e era amiga da Maria Lúcia, fomos visita-la e ao marido Gustavo Dahl, cineasta que ela conhecera em Roma, na casa de vila que ela ganhou do pai, o engenheiro e empreiteiro Mário Pinto. Na tarde do réveillon de 66 para 67, Mário morre de mal súbito. A viúva, Regina – outro golpe brutal para Maria Lúcia – suicida-se saltando do seu apartamento no Flamengo. No réveillon seguinte, na famosa festa na casa de Heloisa Buarque de Holanda, duas dezenas de casais se separaram, inclusive a anfitriã e Maria Lúcia, depois de tomar uns sopapos do enciumado Gustavo por ter dançado de rosto colado com um galã egípcio, ou coisa parecida.

Novo corte, para 1972 em Paris. Lina e eu visitamos Maria Lúcia, que está grávida de sua única filha, Joana, com o segundo marido, o líder estudantil exilado Marcos Medeiros.

Com Malu: bom humor no lançamento
do livro Aconteceu na Manchete,
na Travessa do Leblon, em 2008.
Foto: Jussara Razzé
E então um hiato enorme, até o final de 2008, quando – um dos 16 autores do livro Aconteceu na Manchete – estou na noite de autógrafos na Travessa do Leblon. Começo a visita-la na eterna casa de vila coberta por uma mangueira na São João Baptista, 41. Toda noite de sexta-feira, compareço com um vinho tinto chileno e uma pizza gigante (sem duplo sentido). Mal me sento no sofá esfarrapado, o gato Netuno vem sentar-se no meu colo, um grafite, uma gracinha. Vemos um filme (lembro uma noite, com uma grande amiga dela, assistimos àquela obra-prima do Fritz Lang, Metropolis.) Depois ficamos horas jogando conversa fora, fofocando, lembrando os velhos tempos. Saio de madrugada e a quadra final da rua ainda está tomada por um burburinho de mesas e cadeiras que avançam até a metade da pista naquelas loucas baladas eufóricas da década que seria liquidada pela Covid-19 (de 2019). Certa noite, vamos de táxi ao lançamento de um livro de frei Leonardo Boff no Colégio Bennett. Sugiro que, para encurtar o trajeto, a gente pegue a Travessa dos Tamoyos. “Prefiro não”, diz Maria Lúcia, “minha mãe se matou nesta rua.”

Eu a chamo de Maria Lúcia Dahl-ou-desce! – incorrendo naquela piada-chavão machista. Malu também  tem humor, me contou uma história deliciosa. Idosos, com planos de saúde que nos tratam como debilóides (o meu, do Silvestre, fazia testes me obrigando a contar os dedos da mão, ou caminhar em linha reta de uma parede à outra do consultório, só faltava mandar fazer o 4...) – sua amiga Nelita Léclery, cujo primeiro casamento aos vinte anos foi com Vinícius de Moraes, foi sabatinada por um paramédico que, a certa altura, lhe perguntou, no item quesitos gerais para avaliar demência precoce: “A senhora sabe quem foi Vinícius de Moraes?” Responde Nelita: “Claro. Foi meu marido.” Só não a internaram porque era casada com o milionário francês Gérard Léclery. 

Siga em paz Maria Lúcia, daqui a pouco – quem sabe? – a gente se reencontra por aí...