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domingo, 18 de setembro de 2022

1965, o último grande funeral: “Eu enterrei Churchill na BBC” • Por Roberto Muggiati


O cerimonial proibia que se fotografasse o caixão de Churchill. Apesar disso, Jáder Neves
fez essa foto exclusiva para a Manchete




Churchiil velado no Westminster Hall. Jáder fez essa imagem a partir das galerias. 


Manchete, 1965: a cobertura do adeus a Churchill foi feita por
Narceu de Almeida e Jáder Neves



No domingo 24 de janeiro de 1965 eu fazia sozinho a transmissão ao vivo do Serviço Brasileiro da BBC. O trabalho consistia em levar ao ar programas pré-gravados durante a semana pela equipe, excetuando dez minutos do boletim de notícias e dos editoriais, traduzidos uma hora antes das doze badaladas do Big Ben (oito da noite no Brasil), para injetar o máximo de atualidade na programação. 

Naquela noite foi tudo diferente. Tinha morrido, aos 90 anos, Sir Winston Leonard Spencer Churchill, o lendário ex-Primeiro Ministro britânico. Limitei-me a dar a notícia pontual do falecimento, liberada pela newsdesk que fornecia os boletins para os serviços da BBC em língua estrangeira, e mandei rodar a fita com o obituário do grande estadista.

Em meus primeiros dias de BBC, em agosto de 1962, fiquei sabendo da existência daquela fita com o perfil do grande estadista. Ela era periodicamente atualizada, mas, a partir de junho de 1962 – quando fraturou os quadris em Monte Carlo, Churchill praticamente não saiu mais de casa. Aliás, em meus primeiros dias de Londres, morando provisoriamente no apartamento de um amigo em Kensington, eu podia ver da janela dos fundos a casa de Churchill em Hyde Park Gate, com um policial sempre à porta. 

Em 12 de janeiro de 1965 o ex-Premier sofreu um derrame que colocou toda a mídia em alerta. Na BBC eu mantinha um regime de trabalho muito conveniente para mim: trabalhava na redação das 10 às 17 as quartas quintas e sextas e na transmissão direta aos sábados e domingos, isso me deixava totalmente livre às segundas e terças. Enquanto a metrópole de oito milhões de habitantes labutava, eu folgava, fazendo da fascinante London meu parque de diversões cultural. E o trabalho no fim de semana se resumia a uma hora de transmissão cada dia, mais o tempo de tradução dos boletins e editoriais – uma hora no sábado para traduzir os artigos e notícias, mais o adiantamento dos artigos do domingo, e meia hora apenas para a tradução do boletim no domingo.

Roberto Muggiati na BBC


Por mera obra do acaso, coube a mim irradiar em português para o Brasil naquele domingo a morte de Churchill, no dia exato em que fazia 70 anos a morte do seu pai. O correspondente de Manchete em Londres era meu amigo Narceu de Almeida, que no ano seguinte assumiria a chefia da Sucursal de Paris. Como Narceu não podia estar a todo tempo em toda parte, ajudei-o pontualmente na apuração de retaguarda. 

O fotógrafo designado para cobertura foi Jáder Neves, que não falava uma palavra de inglês, mas era um daqueles veteranos confiáveis do diretor da revista, Justino Martins. E não deu outra: Jader cumpriu tudo o que se esperava dele, com uma demonstração de perseverança e malandragem de que só um dos nossos “pés-de-boi” seria capaz.  Movido pelo pavor de perder o emprego caso não fizesse a foto do caixão sobre o catafalco em Westminster Hall, Jáder fez o impossível. Era terminantemente proibido fotografar  no recinto e batalhões de policiais estavam a postos para impedir a ação. Jáder ficou horas na fila e, ao se aproximar do caixão, sacou sua Rolleiflex, escondida debaixo da capa de chuva, mas a máquina foi imediatamente arrebatada por um bobby esperto. Sem se dar por vencido, voltou ao final da fila e reiniciou a operação, até ter a câmera novamente recolhida. Já na madrugada, depois de várias tentativas, Jáder pegou a guarda desatenta e “bateu a chapa” tão esperada. Foi o único fotógrafo do mundo a conseguir a façanha. Só na Manchete aconteciam coisas assim...

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Trinta e cinco anos sem Narceu • Por Roberto Muggiati

Domingo, cinco de julho de 1964: Muggiati, Sabino e Narceu na Catedral de Rouen, voltando para Londres
de uma visita a Vinícius de Moraes em Paris. Foto: Arquivo Pessoal 

Sexta-feira, 3 de maio de 1985. Chego cedo à redação, ainda vazia, vai ser um dia morno, poucas matérias serão fechadas, o maior número de páginas fica para o sufoco do fechamento final da revista na segunda-feira. Minutos depois chega o Alberto (de Carvalho), a redação está na penumbra, poucas luzes foram acesas. Numa voz soturna, para dentro, diz: “Nasceu, morreu.” Perturbado, sem querer entender o que ouvi, protesto: “Pô, Alberto! Quem nasceu e morreu?” Alberto não queria também dar a notícia, coitado. Mas disse, firme e pausadamente: “Muggiati, o Narceu morreu esta madrugada.”

De infarto, aos 52 anos.

Narceu de Almeida Filho: minha história com ele começa 22 anos antes, em Londres, 1963, na BBC. Jornalista conhece um mundo de gente, mas nunca tem tempo e oportunidade para fazer amigos. Narceu foi um dos meus maiores amigos, contados na ponta dos dedos de uma mão. Como Programme Assistant do Serviço Brasileiro da BBC, além de traduzir, escrever e ler textos das transmissões para o Brasil, eu contratava matérias dos raros free lancers que apareciam por lá. (Para se ter uma ideia, nas eleições de 1962 compareceram ao consulado do Brasil em Londres pouco mais de 60 eleitores, era o número de nossa diminuta colônia na capital britânica então. Nada a ver com o contingente de brasileiros da Swinging London de 1966 e menos ainda com a patuleia de jovens que acorreu em massa à London London de Caetano e Gil no início dos anos 70).

Lembro a colaboração inicial do Narceu, foi uma brilhante resenha do filme estreado naquele ano de 1963, Tom Jones – tanto o filme como o diretor, Tony Richardson, ganharam o Oscar.
Narceu tinha 30 anos, eu 25. Independente, ele tinha um carro, daqueles primeiros modelos compactos britânicos – um Morris Mini Minor. Frequentávamos o clube de jazz Ronnie Scott’s, ainda em seu endereço original no 39 da Gerrard Street, no Soho, uma arapuca à qual você descia  por uma escada estreita num ângulo quase de 90 graus, sem janelas, um incêndio ali e em poucos minutos virávamos cinzas. Mas milagres aconteciam, principalmente em Londres, como reza a letra de Ira Gershwin em A Foggy Day, “The age of miracles hadn’t passed...” O próprio Ronnie Scott – uma mistura redundante de judeu e escocês – cuidava da casa, dos ingressos (você pagava uma libra anual e se tornava sócio do “clube”) à cozinha, da apresentação dos shows, com seu humor esperto, à própria participação como músico, tocava um sax tenor profissional e honesto. O consumo etílico na Inglaterra era subordinado a um emaranhado de leis (na maioria de fundo moralista), depois da meia-noite, para beber, você tinha de encomendar alguma comida. Lá pelas duas da madrugada você saía com uma meia dúzia de Scotches na cabeça e deixava sobre a mesa pilhas de hambúrgueres e sanduiches intocados. Numa daquelas noites, ao sair, não vimos nenhum traço do nosso Mini Minor. O carrinho tinha sido rebocado por estacionamento ilegal. Até nessas coisas os ingleses são organizados, havia uma placa no local indicando onde resgatar o veículo, Sem problemas, uma hora depois estávamos rodando de novo pelas ruas desertas de Londres. Eu morava em Chelsea, à beira do Tâmisa; o Narceu num lugar de nome poético, mais para o norte, Swiss Cottage.
A mobilidade do carro nos permitia outros programas culturais. Num sábado de agosto fomos ao Festival de Teatro de Chichester ver uma versão do Tio Vânia dirigida e interpretada por Sir Laurence Olivier, com sua mulher Joan Plowright e Sir Michael Redgrave no papel de Tio Vânia.

Nessa época eu estava encalacrado (a palavra obsoleta diz tudo) num caso amoroso sem futuro, mas com um presente intenso. A jovem em questão era casada com um diplomata da nossa embaixada. Eu a visitava uma vez por semana, nas tardes de segunda ou terça, meus dias de folga na BBC, por trabalhar nas transmissões diretas da meia-noite à uma da manhã aos sábados e domingos. Tínhamos tudo a ver, ela morava em Chelsea, perto de mim, os filhinhos – um menino, uma menina – dormiam no andar de cima, na sala de estar tomávamos chá e discutíamos Proust, ou o que fosse – é sempre Proust nestas horas – uma madeleine e nada mais, para minha imensa frustração. Às vezes, lá pelas seis horas, o marido chegava cansado do trabalho, me cumprimentava cordialmente e subia para o quarto. Tudo muito civilizado, very British... O sapiente e paciente Narceu não só ouvia as lamúrias do pierrô apaixonado como, de certa forma, participava indiretamente daquela louca aventura amorosa.

Em 1964 entra em cena Fernando Sabino, nomeado adido cultural do Brasil em Londres poucos meses antes do golpe militar. Em carta de 13 de abril de 1964 a Otto Lara Resende, Sabino escreve: “O meu amigo aqui se chama Narceu de Almeida (também não é mineiro, mas parece) – um jornalista daí que trabalhou no Estado de S. Paulo, passou pela Thompson, etc e veio dar com os costados em Londres, Ótimo sujeito, escritor, 30 anos, goiano, excelente companheiro.” (Cartas na mesa, Record, 2002). Baterista amador e grande aficionado de jazz, Sabino passou a nos acompanhar nos programas noturnos – Londres era passagem obrigatória dos maiores músicos, lembro-me de ter ouvido com Sabino e Narceu os tenores de Stan Getz e Sonny Rollins, o piano de Bill Evans. Na manhã de quarta-feira, 1º de julho de 1964, na Mini Minor do Narceu, pegamos a estrada rumo a Paris, Sabino ia visitar Vinícius de Moraes, que trabalhava no consulado. Narceu e eu desfrutamos também da companhia do poetinha e de seus parceiros da hora, Baden Powell e a bela Odete Lara, com quem Vinicius gravou um LP fabuloso para a Elenco: doze composições de Baden e Vinícius com arranjo e regência de Moacir Santos e produção de Aloysio de Oliveira,

Sábado de Aleluia, 17 de abril de 1965, em Cambridge. Narceu entre Lina Muggiati e Celina Luz. Foto; Arquivo Pessoal

Essa viagem, mal sabia eu, seria responsável por meu primeiro casamento. Conheci Lina, casada com um dos maiores doleiros do Rio, Daniel Tolipan, e amante de um arquiteto francês, Jerôme. Francês tem amante, mas não larga a família jamais de la vie. Dentro de seis meses Lina estaria morando comigo em Londres – uma tremenda responsabilidade substituir marido e amante. Narceu e eu nos afastamos por um período, ele havia iniciado, via Sabino, negociações com Adolpho Bloch para assumir a chefia do principal escritório europeu da Manchete, a cidade escolhida foi Paris por ter voo direto para o Rio. Antes disso, o Narceu teve uma estranha incumbência. Ia com seu carrinho a Aylesbury, onde o jornalista Assis Chateaubriand, ex-embaixador do Brasil na Inglaterra, estava internado num centro neurológico desde que sofrera uma trombose em 1960. Embora paraplégico, Chatô conseguia, com a ajuda de fiações amarradas aos dedos, como aquelas de marionetes, teclar a sua máquina de escrever, a fim de mandar o artigo diário para seus jornais. Narceu pegava aquelas páginas empasteladas, fazia o devido “copidespe” (como dizia o Adolpho) e despachava o artigo limpo para o Brasil. Fazia todo dia a viagem de 60 quilômetros a Aylesbury – 120 km ida-e-volta.

Na Páscoa de 1965, Narceu nos visitou no apartamento de Embankment Gardens com a Celina Luz, um jornalista curitibana velha amiga, filha de pastor que lia Henry Miller às escondidas. No carrinho do Narceu, Celina, Lina e eu visitamos Cambridge no dia 17 de abril, sábado de Aleluia. E eu não conhecia a Universidade de Cambridge – minha alma mater via Cultura Inglesa – excepcionalmente nevou naquele dia. Pouco depois, Lina começou a mostrar a que viera. Me fez desfazer a prorrogação de contrato por dois anos que tinha assinado com a BBC. Invariavelmente, quem continuava lá, continuava para sempre. Hoje eu seria um plácido pensionista do Brexit, em vez de suportar as agruras de aposentado do INSS por aqui, jornalista com 66 anos de carreira sem trabalho. Mas Lina ambicionava, no mínimo, ser embaixatriz, e decidiu que eu voltaria para tentar o Itamaraty. É um exame que não se faz em cima da hora. Fiz e não passei. Tínhamos alugado a casa-ateliê do pintor Loio Pérsio em Santa Teresa, fomos expulsos por uma praga de camundongos e tivemos de nos refugiar no pequeno apartamento do sogro no Leblon. Foi quando reencontrei o Narceu, que viera ao Rio por conta do I Festival Internacional de Cinema, comemorando os 400 anos da cidade.

Honor Blackman no Baile das Celebridades, em 1965, no Rio. A atriz participava do
festival internacional de cinema que homenageou o 4° Centenário da Cidade Maravilhosa.
Foto Manchete/Reprodução

E no filme Goldfinger contracenando com Sean Connery. Foto: Divulgação

Narceu de Almeida teve um caso com Honor Blackman. Ele entrevistou a atriz
para a Manchete. No texto uma revelação: a bondgirl adiou a volta a Londres
por três semanas para "conhecer melhor o Rio". 

Um pouco sobre a personalidade do meu amigo goiano-mineiro. O Narceu tinha uma enorme dificuldade de falar. Às vezes abria a boca e não saía nada. Nem a leitura labial ajudava, seus lábios quase não se mexiam. Pois não é que no voo de Londres para o Rio o Narceu veio sentado ao lado da exuberante Honor Blackman? Faixa preta de caratê, a moça brilhava no terceiro filme da série, 007 contra Goldfinger, fazendo a Bond Girl com o sugestivo nome de Pussy Galore – algo como Xota a Granel...  Ninguém sabe o que se passou na meia-luz da travessia transatlântica, o fato é que a Honor Blackman desceu as escadas no Galeão com um namorado brasileiro a tiracolo – nosso bom Narceu. Podem imaginar o frisson que atacou os bravos rapazes da imprensa? No ano anterior tivemos de recorrer a um playboy marroquino metido a brasileiro, Bob Zagoury, para conquistar Brigitte Bardot em Búzios...

Terminado o festival, o Narceu, posto em sossego, me procurou. Depois da reprovação no Itamaraty, fui recomendado para o Rogério Marinho no Globo, que me encaminhou ao chefe de reportagem Alves Pinheiro, que me botou imediatamente a trabalhar. Fui ao Hotel Glória cobrir um congresso internacional da Interpol. O transporte do Globo era complicado, tinha de telefonar de um orelhão para uma central de rádio, enfim esperei mais de uma hora pelo carro que me levou à redação da Rua Irineu Marinho que, desde o começo, me pareceu sinistra e cheia de bad vibes... Bati a matéria na máquina – como dizia um coleguinha nosso, para ele escrever não passava de uma atividade física – botei o texto na mesa do Alves Pinheiro, eu tinha ido fazer uma boquinha na lanchonete da esquina, e nunca mais voltei a pisar na redação de O Globo. Narceu caiu do céu. Lina e eu o recebemos com uma garrafa de bom Scotch no apartamento da Rita Ludolf, em cima da farmácia Piauí – os sogros estavam na casa da ilha de Paquetá. Narceu me animou a procurar a Manchete. “Você vai encontrar o Ricardo Gontijo e o Zuenir.” Ricardo era irmão do Antônio Fernando, meu colega de BBC que morreu afogado em Málaga. Zuenir Ventura fora meu colega de bolsa no Centre de Formation des Journalistes em Paris, em 1960.

O quadro de Harry Elsas no restaurante da Frei Caneca:
dramaticidade expressionista inibia apetites. 
Dois ou três dias depois adentrei o prédio de Frei Caneca, você tinha de caminhar meio quilômetro entre máquinas sucateadas até um elevador de carga que servia o prédio de oito andares nos fundos, onde ficavam as redações, a administração e o restaurante. No oitavo andar, o restaurante tinha uma peculiaridade: uma parede enorme coberta por um mural do Harry Elsas, um pintor do século 20 que se imaginava Hyeronymus Bosch, o que estava longe de ser. A comida de Frei Caneca era ótima, sempre teve a fama de ser melhor do que a do Russell, mas o painel do Harry Elsas era um grande inibidor do apetite.

As coisas aconteciam rápido demais na Bloch, Zuenir não estava mais lá, tinha brigado com o Adolpho e se mandado. Também rapidamente o Jaquito e o Arnaldo Niskier foram com a minha cara. “Veio da BBC? Que bacana! Pode começar depois do feriado como repórter especial?” Dito e feito. O 15 de novembro caiu na segunda, terça-feira eu estava lá para iniciar o que jamais imaginaria seriam 35 anos de Manchete, um bom pedaço – o melhor talvez – da minha vida.

Terça-feira, 17 de dezembro de 1972: na redação da Manchete,  Narceu, 39 anos, com o jovem Ruy Castro, 24 anos.
Foto: Arquivo Pessoal

Narceu chefiava a sucursal de Paris com seu fiel escudeiro, o fotógrafo Alécio de Andrade, mestre da Leica que entraria para o seleto clube da Magnum. Eram os anos da contracultura, a Revolução Cultural anteciparia Maio de 68. Para Adolpho Bloch Paris era luxo puro, adorava ser recebido com tapete vermelho nos melhores restaurantes, segundo o Protocolo Sylvio Silveira que seria consagrado a seguir. Horas antes de Adolpho embarcar para o Rio, Sylvio o levava à melhor casa de queijos de Paris e forrava bolsas térmicas de queijos de todas as variedades, Adolpho voltava direto do aeroporto para a Manchete, convocava seus favoritos e fazia a distribuição. Além de queijos, eu recebia patês e às vezes um potinho de caviar. Não fazia parte do figurino do Adolpho e da Lucy (Lucy Mendes foi Miss Rio Grande) encarar o Narceu e o Alécio num bistrô enfumaçado da rive gauche com duas garotas punk de boina coroada pela estrela vermelha. Adolpho ficou com aquilo atravessado na garganta. Um dia, encontrou o pretexto que procurava, na mesa de edição do Justino: fotos da namorada do Narceu seminua distribuídas por uma agência internacional. Já com a decisão tomada, Adolpho convocou o Sabino e a mim – nunca me dirigira a palavra até então – para sermos seus avalistas. “Essa mulher está desgraçando a vida do Narceu! Ele precisa voltar para o Brasil já, senão estará perdido.” Almoçando com Adolpho no restaurante de Frei Caneca, sob os olhares sorumbáticos dos judeus do Harry Elsas, nada tínhamos a dizer, Sabino e eu. Nosso silêncio estupefato selou o destino do Narceu. Logo depois ele voltava ao Rio para trabalhar como redator da Manchete.

Um corte rápido para 1970. Editor de EleEla, Carlos Heitor incumbiu a repórter Ana Maria de Abreu de entrevistar jornalistas conhecidos sobre seu filme de amor preferido. Ana Maria procurou o Narceu. Sua love story favorita só podia ser, como ele, romântica e trágica: Acossado/À bout de souffle, de Godard, em que a mocinha (na verdade bandida) entrega à polícia o bandido (na verdade mocinho), que morre com uma bala nas costas. Da entrevista ao casamento, Narceu e Ana Maria viveram felizes quinze anos (com três filhos) até a morte prematura dele.

Depois do AI-5, que proibiu qualquer expressão política, intelectuais e jornalistas que faziam a resistência contra a ditadura militar optaram pelo discurso cultural, Ou melhor, contracultural. Do meu panfletário Mao e a China de 1968, parti para o Rock: o grito e o mito/A música pop como forma de comunicação e contracultura, em 1973. Narceu entrou na onda de maneira mais radical. Amigo dos jornalistas Luiz Carlos Maciel e Luiz Carlos Cabral, que também trabalhavam na Bloch, acabou partindo com eles – e a musa de ambos, a atriz Maria Claudia, casada com Maciel – para uma temporada de vida alternativa na Região dos Lagos. Jaquito, em suas rondas pelas redações, costumava zoar: “O Narceu está jogando pingue-pongue contra o vento!” Quando Narceu voltou para garantir o leite das crianças – iniciara o alfabeto, teve os filhos André e Bruno e Ana Maria estava grávida do César quando ele morreu – Jaquito o colocou punitivamente no regime de frila. “Agora ele está correndo atrás, o Capelinha. Cobra como uma corrida do táxi, de preferência em bandeira 2...” Não faltava humor ao Jaquito, afinal ele cresceu entre os Karamabloch e as víboras das redações. Capelinha era a marca dos taxímetros da época.

Narceu tinha uma qualidade que nem todo jornalista, por mais brilhante e intelectualmente equipado, era capaz de ter: sabia fazer amigos. Assim, ele publicou em O Globo a última entrevista de Vinicius de Moraes e, no EleEla, uma entrevista histórica com Os Quatro Mineiros do Apocalipse: Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

Na madrugada da sexta-feira, 3 de maio, Ana Maria ligou aflita para o Irineu Guimarães. Ele e o Cícero Sandroni, que morava perto, no Cosme Velho, acorreram (Narceu morava nas proximidades da estação do trenzinho do Corcovado), mas o amigo já tinha morrido de infarto. Partiu silencioso, discreto como sempre. Numa atmosfera que me recorda a de um dos mais belos poemas do século 20, de Dylan Thomas, ele mesmo morto muito cedo, aos 39 anos. Com a palavra Dylan Thomas e o grande tradutor, Ivan Junqueira

NÃO ENTRES NESSA NOITE ACOLHEDORA COM DOÇURA

                    Dylan Thomas • Tradução: Ivan Junqueira

Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva
                                               [ lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha
                                               [ esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os bons que, após o último aceno, choram pela
                                               [ alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde
                                               [ baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea
                                               [ altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua
                                               [ travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os
                                              [ transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se
                                              [ alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula
                                              [ obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima
                                              [ bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


DO NOT GO GENTLE INTO
THAT GOOD NIGHT

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

PS – Opções no YouTube: o poema recitado pelo autor, Dylan Thomas, ou pelos atores Anthony Hopkins ou Richard Burton. Recomendo o Burton.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O “botão da tosse” da BBC - 50 anos antes do Brexit, um típico dilema britânico

Floriano Parreira, Roberto Muggiati e Nemércio Nogueira Santos no Serviço Brasileiro
da BBC em 1964: tossir ou não tossir, eis a questão. Foto Arquivo Pessoal

Por ROBERTO MUGGIATI

Em agosto de 1962, mudei-me de Curitiba para Londres com um contrato de três anos para trabalhar no Serviço Brasileiro da British Broadcasting Corporation. A Bush House, que abrigava os Serviços Externos da BBC, era um imponente bloco de edifícios plantado entre a região dos teatros e a região dos jornais — logo depois de Bush House começava a lendária Fleet Street.

O portal da Bush House dando para Aldwych. Era ali
a entrada do  Serviço Brasileiro, que ficava no primeiro
andar. A janela do primeiro andar à direita de quem olha, 
acima do semáforo, era onde ficava a nossa "redação".



O prédio, que ocupava o imenso quarteirão em forma de semicírculo entre o Aldwych e o Strand, era uma verdadeira Torre de Babel, com transmissões nas mais inusitadas línguas do mundo, e um labirinto de salas e corredores abrangendo os serviços estrangeiros, os estúdios de gravação, edição e transmissão, e o setor administrativo. Tinha ainda uma barbearia bem britânica e a cantina – na verdade um imenso refeitório self-service com um sofisticado cardápio que, na temporada de caça, dava-se ao luxo de servir “grouse”, aquele galináceo parrudinho da Escócia.

Na altura do primeiro andar, os prédios eram ligados por passarelas cobertas (lembravam-me a Ponte dos Suspiros de Veneza), pelas quais podíamos circular sem tomar chuva em nossas andanças de um estúdio para outro.

No Serviço Brasileiro, os redatores contratados – chamados de Programme Assistants – iam da casa dos vinte à dos quarenta, selecionados por concurso, e vinham das mais diversas regiões do país.

A BBC não fazia questão daquela voz empostada e possante típica dos radialistas pátrios. Bastava você não gaguejar e falar com naturalidade. Havia veteranos, alguns remanescentes do que chamávamos a “Legião Estrangeira do Éter” — tinham passado pela Voz da América (EUA), pela Rádio Canadá, pelas estatais da França, Holanda, Suécia, Itália e Alemanha. (Conheci dois brasileiros que, embora não tendo estado na BBC, trabalharam alguns anos no serviço brasileiro da Rádio do Cairo, experiência que descreviam como literalmente tórrida.)

Com a atriz Tonia Carrero, que 
visitava Londres. A BBC 
fazia questão de pagar 5 libras 
(aquela nota azul da Rainha) para 
cada entrevistado.
Surpreendi Mariinha molhando 
sua mão 
enluvada com um "fiver".
Foto: Reprodução O Globo
Havia também os freelancers, como Carlos Cotrim, galã de bigodinho dos filmes da Atlântida, que se parecia mais com Clark Gable do que o próprio Clark Gable; o ator de teatro Luís Tito, figura bizarra e engraçada; e Lucy Ward, uma velha senhora do Amazonas que se casou com um inglês do Bank of London and South America e foi morar em Londres para o resto da vida. Os preconceituosos vinham logo com a piadinha de que Lucy tinha “pegado o cipó das onze” para a Europa, mas a velhinha viúva — toda retorcida pela artrose, sem reclamar nunca das dores terríveis, gabando-se das “obsceeene phone-calls” que recebia — era uma criatura adorável, daquelas comadres dos romances de Jane Austen, sabendo tudo o que acontecia com a diminuta colônia brasileira em Londres (62 compareceram ao consulado de Londres em 1962 para justificar o voto) e jamais sonegando informação.

Para os mais jovens era uma verdadeira mãe, com todo tipo de conselhos, desde como tirar manchas de roupas a receitar remédios e, eventualmente, até emprestando um dinheirinho.

Solteiro, logo estabeleci um esquema de trabalho muito conveniente para mim: trabalhava no horário integral (ten to six) às quartas, quintas e sextas. Aos sábados e domingos, fazia a transmissão ao vivo, ouvida no Brasil das 20 às 21, que começava em Londres com as batidas da meia-noite pelo Big Ben.

Dois dos meus quadros favoritos de Londres; "Os jogadores de cartas"
(1892-95), do Paul Cézanne (Courtauld Institute)  e...



"O balanço" (1767), de Jean-Honoré Fragonard (Wallace Collection)


Aos sábados, como o transporte público em Londres não funcionava depois da meia-noite, a BBC nos reservava um tratamento de luxo: os carrões dos altos executivos nos aguardavam no portão de saída de Bush House, um motorista de libré nos abria elegantemente a porta e nos conduzia até em casa.
Com isso, eu tinha inteiramente livres as segundas e terças, para fazer da cidade de Londres o meu playground. Chás no Fortnum & Mason’s ou na sala da Twinings, que ficava perto da BBC, museus particulares como a Wallace Collection, com seu fabuloso acervo de pintura galante francesa (Watteu, Fragonrard, Boucher); ou visitar o Cortauld Institute só para apreciar Les Jouers de Cartes de Cézanne. Ou um cineminha no National Film Theatre, a cinemateca londrina, com sua sala maravilhosa debaixo da Ponte de Waterloo. Programas que eu fazia com minha namorada Gillian, que trabalhava como Studio Assistant em Bush House, até o dia em que o marido, um advogado chamado John, foi trabalhar em Hong Kong e ela o seguiu.

Vieram então os chás e as conversas sobre Proust com a mulher de um diplomata que trabalhava demais, uma relação intensa, mas sem malícia, talvez fosse até mais uma grande amizade. Meu confidente desse affair tornou-se um colaborador freelance da BBC, o saudoso Narceu de Almeida, grande amigo do Fernando Sabino, graças ao qual seria escolhido por Adolpho Bloch em 1965 para dirigir a Sucursal a Manchete em Paris, com o fotógrafo Alécio de Andrade.

Capa do livro Vozes de Londres -
Memórias Brasileiras da BBC. Desde
15 de março de 1938, a British
Broadcasting Corporation
transmite para o Brasil. Entre seus
primeiro redatores está o poeta
Vinicius de Moraes Seguiram-se outros
escritores: Antonio Callado, José J.
Veiga (ambos na época
da 2ª Guerra ), Caio de Freitas
(que depois foi redator da
Manchete), os jornalistas Ivan
Lessa, Telmo Martino, Jáder de
Oliveira, Jason Tércio, Nemércio
Nogueira Santos, Fernando
Pacheco Jordão e Vladimir Herzog, os
atores de teatro Sergio Viotti e
Madalena Nichols (brasileira casada com
um inglês que fez sucesso nos
palcos londrinos), enfim, uma imensa
legião de intelectuais brasileiros
que marcou a BBC e foi
marcada por ela em seus 78 anos
de vida ativa. 
Conheci o Narceu quando ele me levou uma resenha do filme Tom Jones para o Serviço Brasileiro da BBC. Quando veio ao Rio para o 1º FIC, em 1965, regiamente acompanhado pela Bond Girl Honor Blackman, Narceu me levou à redação de Frei Caneca, onde Jaquito e Arnaldo Niskier me convidaram para o que – não tinha a menor ideia – viriam a ser 35 anos de Bloch Editores.

A solidão cobrava seu tributo entre meus colegas da BBC.

Um garoto jovem e brilhante, homossexual assumido — não dava bandeira, que os tempos eram discretos — resolveu trazer do Brasil sua amiga poeta e casar com ela.

O casamento, de papel e tudo, no cartório das estrelas, em Victoria (Liz e Burton casaram lá), terminou duas semanas depois com o arremesso de um cinzeiro de cristal Lalique na testa de um dos cônjuges, não lembro qual. A noiva procurou abrigou no apartamento de outro colega da BBC e logo depois voltou ao Brasil. O noivo, jovem e brilhante, prosseguiu suas investigações sexuais e intelectuais em Londres e, no ano seguinte, de férias na Espanha, morreu afogado, ou se afogou, na costa da Andaluzia.

Quem cuidou das disposições funerárias foi nosso cônsul em Sevilha, o poeta João Cabral de Mello Neto.

O homossexual quarentão que deu abrigo à poeta (depois viúva) do cinzeiro Lalique também vivia seu drama. Tinha um caso havia anos com um inglês da aristocracia rural e morava no apartamento londrino do namorado. Mas a família pressionava o filho para se casar — com uma mulher, de preferência. Nosso colega, encerrado o expediente da BBC, recolhia-se ao apartamento com um litro de uísque e botava no toca–discos a ópera A coroação de Popéia — esvaziava a garrafa e viajava na música de Monteverdi, projetando-se na figura de Popéia, cujo amante, Nero, rompia com a mulher, Otávia, e a fazia coroar imperatriz.

Só mais uma nota de pé de página sobre os colegas brasileiros da BBC. Quando saí, em 1965, quem ocupou a minha vaga foi Vladimir Herzog, que, infelizmente, não cheguei a conhecer. Mas, nascido no mesmo ano, sempre me identifiquei muito com ele e, como jornalista de esquerda, podia ter sofrido um destino parecido. Trabalhei em São Paulo no início da revista Veja, de março de 1968 a setembro de 1969. Voltei para a Bloch em 1969 para dirigir a Fatos&Fotos. Soube depois que muitos colegas da Abril foram levados aos porões da tortura em São Paulo – escapei por ter voltado ao balneário da República, quem sabe?

Mas, voltando à radiofonia da BBC. Fazendo a locução ao vivo, você dispunha de um botão à sua frente, ao alcance da mão direita – o famoso e controvertido “cough button”, “botão da tosse”. Duas escolas de opinião viviam em guerra permanente – quase uma guerra teológica, sobre o botãozinho que se resumia no dilema “to cough or not to cough” – “tossir ou não tossir”.

Os adeptos da escola natural defendiam que era normal um locutor tossir de vez em quando, aquilo ajudava até a injetar descontração nos trabalhos e criar mais intimidade com o ouvinte. Já os adeptos do uso do botão, da locução “engessada”, não admitiam de forma alguma o menor resquício do indecente pigarro numa transmissão. Não consigo lembrar se eu tossi alguma vez, mas a simples existência de tal botão me traz lembrança do temperamento característico do britânico e dos falsos dilemas que ele sempre inventou para acobertar dilemas maiores e mais reais.

Mas aí prefiro passar a bola para o nosso bom e velho Shakespeare. . .