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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O “botão da tosse” da BBC - 50 anos antes do Brexit, um típico dilema britânico

Floriano Parreira, Roberto Muggiati e Nemércio Nogueira Santos no Serviço Brasileiro
da BBC em 1964: tossir ou não tossir, eis a questão. Foto Arquivo Pessoal

Por ROBERTO MUGGIATI

Em agosto de 1962, mudei-me de Curitiba para Londres com um contrato de três anos para trabalhar no Serviço Brasileiro da British Broadcasting Corporation. A Bush House, que abrigava os Serviços Externos da BBC, era um imponente bloco de edifícios plantado entre a região dos teatros e a região dos jornais — logo depois de Bush House começava a lendária Fleet Street.

O portal da Bush House dando para Aldwych. Era ali
a entrada do  Serviço Brasileiro, que ficava no primeiro
andar. A janela do primeiro andar à direita de quem olha, 
acima do semáforo, era onde ficava a nossa "redação".



O prédio, que ocupava o imenso quarteirão em forma de semicírculo entre o Aldwych e o Strand, era uma verdadeira Torre de Babel, com transmissões nas mais inusitadas línguas do mundo, e um labirinto de salas e corredores abrangendo os serviços estrangeiros, os estúdios de gravação, edição e transmissão, e o setor administrativo. Tinha ainda uma barbearia bem britânica e a cantina – na verdade um imenso refeitório self-service com um sofisticado cardápio que, na temporada de caça, dava-se ao luxo de servir “grouse”, aquele galináceo parrudinho da Escócia.

Na altura do primeiro andar, os prédios eram ligados por passarelas cobertas (lembravam-me a Ponte dos Suspiros de Veneza), pelas quais podíamos circular sem tomar chuva em nossas andanças de um estúdio para outro.

No Serviço Brasileiro, os redatores contratados – chamados de Programme Assistants – iam da casa dos vinte à dos quarenta, selecionados por concurso, e vinham das mais diversas regiões do país.

A BBC não fazia questão daquela voz empostada e possante típica dos radialistas pátrios. Bastava você não gaguejar e falar com naturalidade. Havia veteranos, alguns remanescentes do que chamávamos a “Legião Estrangeira do Éter” — tinham passado pela Voz da América (EUA), pela Rádio Canadá, pelas estatais da França, Holanda, Suécia, Itália e Alemanha. (Conheci dois brasileiros que, embora não tendo estado na BBC, trabalharam alguns anos no serviço brasileiro da Rádio do Cairo, experiência que descreviam como literalmente tórrida.)

Com a atriz Tonia Carrero, que 
visitava Londres. A BBC 
fazia questão de pagar 5 libras 
(aquela nota azul da Rainha) para 
cada entrevistado.
Surpreendi Mariinha molhando 
sua mão 
enluvada com um "fiver".
Foto: Reprodução O Globo
Havia também os freelancers, como Carlos Cotrim, galã de bigodinho dos filmes da Atlântida, que se parecia mais com Clark Gable do que o próprio Clark Gable; o ator de teatro Luís Tito, figura bizarra e engraçada; e Lucy Ward, uma velha senhora do Amazonas que se casou com um inglês do Bank of London and South America e foi morar em Londres para o resto da vida. Os preconceituosos vinham logo com a piadinha de que Lucy tinha “pegado o cipó das onze” para a Europa, mas a velhinha viúva — toda retorcida pela artrose, sem reclamar nunca das dores terríveis, gabando-se das “obsceeene phone-calls” que recebia — era uma criatura adorável, daquelas comadres dos romances de Jane Austen, sabendo tudo o que acontecia com a diminuta colônia brasileira em Londres (62 compareceram ao consulado de Londres em 1962 para justificar o voto) e jamais sonegando informação.

Para os mais jovens era uma verdadeira mãe, com todo tipo de conselhos, desde como tirar manchas de roupas a receitar remédios e, eventualmente, até emprestando um dinheirinho.

Solteiro, logo estabeleci um esquema de trabalho muito conveniente para mim: trabalhava no horário integral (ten to six) às quartas, quintas e sextas. Aos sábados e domingos, fazia a transmissão ao vivo, ouvida no Brasil das 20 às 21, que começava em Londres com as batidas da meia-noite pelo Big Ben.

Dois dos meus quadros favoritos de Londres; "Os jogadores de cartas"
(1892-95), do Paul Cézanne (Courtauld Institute)  e...



"O balanço" (1767), de Jean-Honoré Fragonard (Wallace Collection)


Aos sábados, como o transporte público em Londres não funcionava depois da meia-noite, a BBC nos reservava um tratamento de luxo: os carrões dos altos executivos nos aguardavam no portão de saída de Bush House, um motorista de libré nos abria elegantemente a porta e nos conduzia até em casa.
Com isso, eu tinha inteiramente livres as segundas e terças, para fazer da cidade de Londres o meu playground. Chás no Fortnum & Mason’s ou na sala da Twinings, que ficava perto da BBC, museus particulares como a Wallace Collection, com seu fabuloso acervo de pintura galante francesa (Watteu, Fragonrard, Boucher); ou visitar o Cortauld Institute só para apreciar Les Jouers de Cartes de Cézanne. Ou um cineminha no National Film Theatre, a cinemateca londrina, com sua sala maravilhosa debaixo da Ponte de Waterloo. Programas que eu fazia com minha namorada Gillian, que trabalhava como Studio Assistant em Bush House, até o dia em que o marido, um advogado chamado John, foi trabalhar em Hong Kong e ela o seguiu.

Vieram então os chás e as conversas sobre Proust com a mulher de um diplomata que trabalhava demais, uma relação intensa, mas sem malícia, talvez fosse até mais uma grande amizade. Meu confidente desse affair tornou-se um colaborador freelance da BBC, o saudoso Narceu de Almeida, grande amigo do Fernando Sabino, graças ao qual seria escolhido por Adolpho Bloch em 1965 para dirigir a Sucursal a Manchete em Paris, com o fotógrafo Alécio de Andrade.

Capa do livro Vozes de Londres -
Memórias Brasileiras da BBC. Desde
15 de março de 1938, a British
Broadcasting Corporation
transmite para o Brasil. Entre seus
primeiro redatores está o poeta
Vinicius de Moraes Seguiram-se outros
escritores: Antonio Callado, José J.
Veiga (ambos na época
da 2ª Guerra ), Caio de Freitas
(que depois foi redator da
Manchete), os jornalistas Ivan
Lessa, Telmo Martino, Jáder de
Oliveira, Jason Tércio, Nemércio
Nogueira Santos, Fernando
Pacheco Jordão e Vladimir Herzog, os
atores de teatro Sergio Viotti e
Madalena Nichols (brasileira casada com
um inglês que fez sucesso nos
palcos londrinos), enfim, uma imensa
legião de intelectuais brasileiros
que marcou a BBC e foi
marcada por ela em seus 78 anos
de vida ativa. 
Conheci o Narceu quando ele me levou uma resenha do filme Tom Jones para o Serviço Brasileiro da BBC. Quando veio ao Rio para o 1º FIC, em 1965, regiamente acompanhado pela Bond Girl Honor Blackman, Narceu me levou à redação de Frei Caneca, onde Jaquito e Arnaldo Niskier me convidaram para o que – não tinha a menor ideia – viriam a ser 35 anos de Bloch Editores.

A solidão cobrava seu tributo entre meus colegas da BBC.

Um garoto jovem e brilhante, homossexual assumido — não dava bandeira, que os tempos eram discretos — resolveu trazer do Brasil sua amiga poeta e casar com ela.

O casamento, de papel e tudo, no cartório das estrelas, em Victoria (Liz e Burton casaram lá), terminou duas semanas depois com o arremesso de um cinzeiro de cristal Lalique na testa de um dos cônjuges, não lembro qual. A noiva procurou abrigou no apartamento de outro colega da BBC e logo depois voltou ao Brasil. O noivo, jovem e brilhante, prosseguiu suas investigações sexuais e intelectuais em Londres e, no ano seguinte, de férias na Espanha, morreu afogado, ou se afogou, na costa da Andaluzia.

Quem cuidou das disposições funerárias foi nosso cônsul em Sevilha, o poeta João Cabral de Mello Neto.

O homossexual quarentão que deu abrigo à poeta (depois viúva) do cinzeiro Lalique também vivia seu drama. Tinha um caso havia anos com um inglês da aristocracia rural e morava no apartamento londrino do namorado. Mas a família pressionava o filho para se casar — com uma mulher, de preferência. Nosso colega, encerrado o expediente da BBC, recolhia-se ao apartamento com um litro de uísque e botava no toca–discos a ópera A coroação de Popéia — esvaziava a garrafa e viajava na música de Monteverdi, projetando-se na figura de Popéia, cujo amante, Nero, rompia com a mulher, Otávia, e a fazia coroar imperatriz.

Só mais uma nota de pé de página sobre os colegas brasileiros da BBC. Quando saí, em 1965, quem ocupou a minha vaga foi Vladimir Herzog, que, infelizmente, não cheguei a conhecer. Mas, nascido no mesmo ano, sempre me identifiquei muito com ele e, como jornalista de esquerda, podia ter sofrido um destino parecido. Trabalhei em São Paulo no início da revista Veja, de março de 1968 a setembro de 1969. Voltei para a Bloch em 1969 para dirigir a Fatos&Fotos. Soube depois que muitos colegas da Abril foram levados aos porões da tortura em São Paulo – escapei por ter voltado ao balneário da República, quem sabe?

Mas, voltando à radiofonia da BBC. Fazendo a locução ao vivo, você dispunha de um botão à sua frente, ao alcance da mão direita – o famoso e controvertido “cough button”, “botão da tosse”. Duas escolas de opinião viviam em guerra permanente – quase uma guerra teológica, sobre o botãozinho que se resumia no dilema “to cough or not to cough” – “tossir ou não tossir”.

Os adeptos da escola natural defendiam que era normal um locutor tossir de vez em quando, aquilo ajudava até a injetar descontração nos trabalhos e criar mais intimidade com o ouvinte. Já os adeptos do uso do botão, da locução “engessada”, não admitiam de forma alguma o menor resquício do indecente pigarro numa transmissão. Não consigo lembrar se eu tossi alguma vez, mas a simples existência de tal botão me traz lembrança do temperamento característico do britânico e dos falsos dilemas que ele sempre inventou para acobertar dilemas maiores e mais reais.

Mas aí prefiro passar a bola para o nosso bom e velho Shakespeare. . .