segunda-feira, 15 de maio de 2023

Eu podia ser hoje um aposentado do Brexit, sabiam? • Por Roberto Muggiati


O casal real perdeu um súdito.
Foto: Reprodução 

Foto Cláudia Alves

Já fui súdito do Ray Charles, mas poucos sabem que eu poderia estar vibrando entre as hordas que festejaram a coroação do Rei Charles. Explico: em 1965 eu havia prorrogado por dois anos meu contrato de trabalho com o Serviço Brasileiro da BBC em Londres. Eis que entra intempestivamente em cena Lina, que seria não só minha primeira mulher, mas aquela que mandaria na minha vida nos doze anos seguintes: 

– Nada de ficar por aqui mofando como funcionariozinho da BBC.... Vamos voltar para o Brasil, você vai entrar para o Itamaraty!

Até hoje não sei explicar por que embarquei tão passivamente na onda da Lina. O Itamaraty não aconteceu, não me tornei lacaio da ditadura. Caí nos braços da Manchete e o resto é história... Mas houve ainda uma mãozinha da Lina na minha contratação para a Veja como um dos quatro supereditores do Mino Carta. Ela insistiu em participar das conversações durante um cozido no restaurante Ca´d’Oro. Feminista de carteirinha, aonde o marido ia, ia atrás. Ajudou-me a obter o segundo cargo em importância na revista. Mas, ano e meio depois,  nunca lhe perdoei o vexame de convocar a mim e ao Mino, no meio de uma tarde de trabalho, para uma reunião em nossa casa no Pacaembu. Queria voltar para o “balneário” e exigia que eu fosse nomeado diretor da Veja no Rio. Surpreendentemente, Mino topou largar tudo na redação da Marginal do Tietê para conversar chez Lina. Até hoje devo a ele desculpas, vou mandar uma “Carta ao Mino”. 

Sujei minha biografia na BBC ao desonrar meu compromisso de continuar mais dois anos. Muitas vezes ainda penso como teria sido a vida que perdi em Londres por causa da Lina? Não consigo imaginar, vivi várias outras vidas nestas sete décadas. O trauma da escolha errada entre isso ou aquilo – que chamei de Síndrome do Remorso da Escolha Binária, é tão ocioso e deletério  como a Teoria do Complô. Os franceses já se descartaram dela nessa deliciosa frase de efeito: “Avec des ‘si’, on mettrai Paris dans une bouteille...”/“Com ‘suposições vãs’ a gente colocaria Paris dentro de uma garrafa...”

Mas enfrentei ainda na vida encruzilhadas marcantes que merecem citação.

• No dia dos meus 24 anos – 6 de outubro de 1961 – eu encerrava um giro de um mês pela Sicília em Taormina, um dos lugares mais bonitos do planeta, duzentos metros acima do Mar Iônio, com o Etna mais ao sul eternamente cuspindo lava. Num dos acolhedores cafés de calçada da via principal, à beira do penhasco, um simpático sessentão puxou conversa e embarquei assim num longo papo com “Il Colonnello”, um ex-oficial do exército americano, de perfil hemingwayano, que, cativado pela beleza do local, se deixou ficar por ali. “Você não é como os garotos italianos, fala um inglês perfeito e tem muita cultura, ” comentou a certa altura. Convidou-me para jantar em sua casa aquela noite. Tomei uma ducha e troquei de roupa no Albergo della Gioventù de Giardini-Naxos, à beira-mar abaixo de Taormina. “Il Colonello” morava num belo palacete no centro de um amplo terreno bem arborizado.  Uma governanta rigorosamente paramentada nos encaminhou para uma sala de estar à meia-luz onde havia uma seleção de drinques ao nosso dispor. Lá pela segunda dose, o anfitrião já se mostrava mais afoito e foi então que caí na real. No fundo, sabia o que me esperava, mas a curiosidade de escritor me impeliu a ver até onde chegaria nosso bravo guerreiro. Quando aproximou o rosto do meu e senti o Bafo da Morte, saí porta afora e desci correndo os degraus que levavam a Naxos. A sorte me havia dado (com cacófato) a chance de me tornar um castelão num dos locais mais belos do mundo – o  velho não devia durar mais do que uns dez anos, talvez até cinco ou menos. Mas literalmente não tive culhões para encarar a situação. O preço não valia o prêmio.

• Entre a bolsa de estudos em Paris e a temporada na BBC de Londres, passei em Curitiba o que chamei de “seis meses num DKW”. Numa crise aguda de vazio existencial, enfronhei-me no zen-budismo. Estimulado por amigos de São Paulo, participei de um concurso de monografias da Associação Cultural Brasil-Japão. Escrevi um ensaio maravilhoso sobre a influência da cultura japonesa no Ocidente, mas fiquei só com o segundo prêmio, uma viagem marítima pelas linhas OSK de Santos a Buenos Aires. Dei a passagem a meu pai, que fez com minha mãe sua primeira viagem internacional e se tornou assíduo no eixo Curitiba-Buenos Aires, naqueles tempos de moeda argentina desvalorizada.

Ganhasse o primeiro prêmio – passagem e estadia de um ano no Japão – eu me empenharia na minha busca zen, talvez até me tornasse mestre, feito só alcançado por um ocidental. Jornalista, redator de publicidade e colecionador de arte, John Toller serviu no exército americano em 1954 no Japão e ficou por lá fazendo traduções. Em 1973, aos 42 anos, raspou a cabeça e entrou para um mosteiro em Kyoto. Alternava meditação e diálogos com tarefas como cortar lenha, cultivar legumes e limpar o chão do templo. Com outros discípulos, embarcou em viagens de mendicância, caminhando no rigor do inverno pela neve com sandálias de palha, esfregando os pés com óleo para prevenir rachaduras e sangramento. Vejam só as delícias de que o destino meu poupou.

• Uma última vez sofri a Síndrome do Remorso do Dilema Binário. Eu fazia traduções para o serviço de divulgação A Voz da Rússia e, crítico de jazz com vários livros publicados, me convidaram para o Odessa JazzFest, mas, por obra e graça da dupla diabólica Putin-Medevdev, a viagem foi abortada. Lamentei amargamente perder a oportunidade de visitar a monumental e lendária Escadaria de Odessa, onde foi filmada a mais importante cena do cinema: o fuzilamento pelos cossacos do Tzar de populares que iam acolher os marujos do Encouraçado Potemkim. Aquele turbilhão de imagens na fantástica montagem de Serguei Eisenstein, inspirada – como assinalei em meu trabalho sobre a cultura japonesa – no ideograma chinês e na estrutura do haicai.

A idade me ensinou a não chorar pelo leite derramado. Quanto à ideia de reescrever o meu destino, cheguei à conclusão de que a vida de uma pessoa é a combinação daquilo que cai ao acaso no seu caminho com aquilo por que ela mesma corre trás. Como diz o Bardo, “Bem está o que bem acaba.”



Um comentário:

Isabel Kohl disse...

Excelente, Muggiati! Bom humor e sabedoria.