O casal real perdeu um súdito. Foto: Reprodução |
Foto Cláudia Alves |
– Nada de ficar por aqui mofando como funcionariozinho da BBC.... Vamos voltar para o Brasil, você vai entrar para o Itamaraty!
Até hoje não sei explicar por que embarquei tão passivamente na onda da Lina. O Itamaraty não aconteceu, não me tornei lacaio da ditadura. Caí nos braços da Manchete e o resto é história... Mas houve ainda uma mãozinha da Lina na minha contratação para a Veja como um dos quatro supereditores do Mino Carta. Ela insistiu em participar das conversações durante um cozido no restaurante Ca´d’Oro. Feminista de carteirinha, aonde o marido ia, ia atrás. Ajudou-me a obter o segundo cargo em importância na revista. Mas, ano e meio depois, nunca lhe perdoei o vexame de convocar a mim e ao Mino, no meio de uma tarde de trabalho, para uma reunião em nossa casa no Pacaembu. Queria voltar para o “balneário” e exigia que eu fosse nomeado diretor da Veja no Rio. Surpreendentemente, Mino topou largar tudo na redação da Marginal do Tietê para conversar chez Lina. Até hoje devo a ele desculpas, vou mandar uma “Carta ao Mino”.
Sujei minha biografia na BBC ao desonrar meu compromisso de continuar mais dois anos. Muitas vezes ainda penso como teria sido a vida que perdi em Londres por causa da Lina? Não consigo imaginar, vivi várias outras vidas nestas sete décadas. O trauma da escolha errada entre isso ou aquilo – que chamei de Síndrome do Remorso da Escolha Binária, é tão ocioso e deletério como a Teoria do Complô. Os franceses já se descartaram dela nessa deliciosa frase de efeito: “Avec des ‘si’, on mettrai Paris dans une bouteille...”/“Com ‘suposições vãs’ a gente colocaria Paris dentro de uma garrafa...”
Mas enfrentei ainda na vida encruzilhadas marcantes que merecem citação.
• No dia dos meus 24 anos – 6 de outubro de 1961 – eu encerrava um giro de um mês pela Sicília em Taormina, um dos lugares mais bonitos do planeta, duzentos metros acima do Mar Iônio, com o Etna mais ao sul eternamente cuspindo lava. Num dos acolhedores cafés de calçada da via principal, à beira do penhasco, um simpático sessentão puxou conversa e embarquei assim num longo papo com “Il Colonnello”, um ex-oficial do exército americano, de perfil hemingwayano, que, cativado pela beleza do local, se deixou ficar por ali. “Você não é como os garotos italianos, fala um inglês perfeito e tem muita cultura, ” comentou a certa altura. Convidou-me para jantar em sua casa aquela noite. Tomei uma ducha e troquei de roupa no Albergo della Gioventù de Giardini-Naxos, à beira-mar abaixo de Taormina. “Il Colonello” morava num belo palacete no centro de um amplo terreno bem arborizado. Uma governanta rigorosamente paramentada nos encaminhou para uma sala de estar à meia-luz onde havia uma seleção de drinques ao nosso dispor. Lá pela segunda dose, o anfitrião já se mostrava mais afoito e foi então que caí na real. No fundo, sabia o que me esperava, mas a curiosidade de escritor me impeliu a ver até onde chegaria nosso bravo guerreiro. Quando aproximou o rosto do meu e senti o Bafo da Morte, saí porta afora e desci correndo os degraus que levavam a Naxos. A sorte me havia dado (com cacófato) a chance de me tornar um castelão num dos locais mais belos do mundo – o velho não devia durar mais do que uns dez anos, talvez até cinco ou menos. Mas literalmente não tive culhões para encarar a situação. O preço não valia o prêmio.
• Entre a bolsa de estudos em Paris e a temporada na BBC de Londres, passei em Curitiba o que chamei de “seis meses num DKW”. Numa crise aguda de vazio existencial, enfronhei-me no zen-budismo. Estimulado por amigos de São Paulo, participei de um concurso de monografias da Associação Cultural Brasil-Japão. Escrevi um ensaio maravilhoso sobre a influência da cultura japonesa no Ocidente, mas fiquei só com o segundo prêmio, uma viagem marítima pelas linhas OSK de Santos a Buenos Aires. Dei a passagem a meu pai, que fez com minha mãe sua primeira viagem internacional e se tornou assíduo no eixo Curitiba-Buenos Aires, naqueles tempos de moeda argentina desvalorizada.
Ganhasse o primeiro prêmio – passagem e estadia de um ano no Japão – eu me empenharia na minha busca zen, talvez até me tornasse mestre, feito só alcançado por um ocidental. Jornalista, redator de publicidade e colecionador de arte, John Toller serviu no exército americano em 1954 no Japão e ficou por lá fazendo traduções. Em 1973, aos 42 anos, raspou a cabeça e entrou para um mosteiro em Kyoto. Alternava meditação e diálogos com tarefas como cortar lenha, cultivar legumes e limpar o chão do templo. Com outros discípulos, embarcou em viagens de mendicância, caminhando no rigor do inverno pela neve com sandálias de palha, esfregando os pés com óleo para prevenir rachaduras e sangramento. Vejam só as delícias de que o destino meu poupou.
• Uma última vez sofri a Síndrome do Remorso do Dilema Binário. Eu fazia traduções para o serviço de divulgação A Voz da Rússia e, crítico de jazz com vários livros publicados, me convidaram para o Odessa JazzFest, mas, por obra e graça da dupla diabólica Putin-Medevdev, a viagem foi abortada. Lamentei amargamente perder a oportunidade de visitar a monumental e lendária Escadaria de Odessa, onde foi filmada a mais importante cena do cinema: o fuzilamento pelos cossacos do Tzar de populares que iam acolher os marujos do Encouraçado Potemkim. Aquele turbilhão de imagens na fantástica montagem de Serguei Eisenstein, inspirada – como assinalei em meu trabalho sobre a cultura japonesa – no ideograma chinês e na estrutura do haicai.
A idade me ensinou a não chorar pelo leite derramado. Quanto à ideia de reescrever o meu destino, cheguei à conclusão de que a vida de uma pessoa é a combinação daquilo que cai ao acaso no seu caminho com aquilo por que ela mesma corre trás. Como diz o Bardo, “Bem está o que bem acaba.”