sábado, 18 de maio de 2019

Plantão Etimológico do Panis: governo corrompe palavras

Uma das definições do verbete Palavra no Houaiss é, no mínimo, curiosa. Trata-se da "unidade da língua escrita, situada entre dois espaços em branco, ou entre espaço em branco e sinal de pontuação".

Os caracteres colocados "entre dois espaços em branco", como diz o Houaiss, são uma arma com porte liberado para todos: os mocinhos e os bandidos.

O blog cria hoje o PEP (Plantão Etimológico do Panis). Por um motivo: um país em crise e tangenciando o abismo também afeta a língua e pode corromper seus verbos, substantivos, adjetivos e até frases inteiras.

* Veja o caso da palavra Contingenciamento. De repente, passou a ser foco de discussão na padaria, no boteco, no governo, na oposição, na igreja e no bunker da milícia. Afinal, o governo cortou ou contingenciou verbas da Educação? Bolsonaro garante que contingenciar não é corte. Já o site do ministério da Economia do mesmo governo diz que contingenciamento é a "inexecução" da despesa. Quer mais corte do que isso? A palavra que virou polêmica vem do latim contingentia. Para as universidades, essa discussão é estéril: contingenciada ou cortada o fato é que parte da verba não vai pingar na tesouraria. E não há palavra que negue isso.

Maria Baderna, a periguete que
deu origem ao termo.
* Bolsonaro classificou os recentes protestos estudantis como Baderna. Em algumas regiões da Itália, o termo se aplica a um cabo trançado de linho ou palha. Em português é desordem, confusão, bagunça, como sabemos. Nos últimos dias, a mídia foi atrás da etimologia da palavra. Na verdade, baderna é um tremendo elogio à beleza de uma mulher. Em 1849, a bailarina italiana Marietta Baderna, 21 aninhos, fez uma temporada no Rio e lotou o antigo Teatro São Pedro, que era o maior do Brasil e acomodava mais de mil pessoas. Marietta, que o pessoal aqui logo passou a chamar de Maria Baderna, era sensual e liberada. Carregava um amante francês pelos becos do Rio. Fora do palco, segundo Silvério Corvisieri, autor da sua biografia, ficou encantada pelo batuque africano, sem duplo sentido, e gostava de dançar o rebolativo lundum. No teatro, Baderna deixava a platéia masculina em alto grau de excitação. O entusiasmo era tamanho que uma multidão de rapazes esperava a artista na saída aos gritos e pulos. A euforia se espalhava pela ruas do centro do Rio. Foi esse primeiro fã-clube da era colonial que era chamado de "os baderneiros" e deu origem à palavra que virou xingamento na grande baderna que é cada fala de Jair Bolsonaro.

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, acusa as universidades de promoverem Balbúrdia.
Essa uma palavra que gera controvérsia até na origem e divide etimologistas. Há quem diga que vem do latim balbus (gago) e sugere a confusão que é um grupo deles discutindo. Outros relacionam ao suposto vocábulo balbord do inglês arcáico ou celta equivalente a desordem. O Houaiss limita-se a registra a origem "obscura" da palavra. A melhor resposta foi dos alunos da Universidade federal do Rio Grande do Sul que organizaram um balbúrdia acadêmica (veja o cartaz).

* Já foi mais fácil discutir futebol entre um chope e outro. Alguns treinadores e a nova geração de jornalistas esportivos formada na Champions estão complicando o papo. Tite, o técnico da seleção, por exemplo, cismou de usar a palavra Performar para tudo. O verbo titeano parece se encaixar em qualquer resposta que ele dá nas coletivas. Tem origem inglesa, no substantivo performance, que significa realização, desempenho. Como verbo, não existe em inglês nem em português. Vamos esperar que Tite e sua seleção se performem bem na Copa América que vem aí.

* Onix Lorenzoni, chefe da Casa Civil, criou uma expressão para vender o confisco da Previdência. "A nova Previdência é o Portal da Prosperidade", dito assim, com ênfase maiúscula como de um pastor no púlpito. Soa místico. Era algo que Jim Jones prometia aos seus fiéis antes de ministrar o  suicídio coletivo. Um dos significados de portal é, aliás, "entrada ornamentada de uma igreja". Prosperidade é abundância, riqueza, acúmulo de bens materiais. Como Sílvio Santos e sua Porta da Esperança, Onix promete fortuna aos brasileiros. E nem fica ruborizado.

* Uma militante pelos direitos das pessoas com deficiência viu um frequentador de um shopping sofisticado do Rio de Janeiro estacionar em vaga reservada e foi "xingada" de "marxista cultural safada". Marxismo Cultural chegou ao Brasil com intensidade agora, mas é expressão que surgiu nos anos 1990 na direita radical norte-americana para rotular uma suposta conspiração comunista global planejada na Escola de Frankfurt. A expressão agora difundida pelas redes sociais é, no Brasil, usada para qualquer situação. Protestar contra racismo, recorrer á Lei Maria da Penha, perguntar quem mandou matar Marielle, ouvir Chico Buarque, ler Veríssimo, tudo virou marxismo cultural. Na Alemanha nazista, as autoridades denunciavam algo semelhante: o bolchevismo cultural. Destruir valores tradicionais é o objetivo da "conspiração", segundo o neofascismo brasileiro.

Um comentário:

Karla disse...

Gosto da historia das palavras. Gosto do Professor Pasquale e achei interessante. Toda hora aparece palavra que começa a ser dita por um monte de gente.