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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Irene Ferraz: ensinando cinema

Reprodução/Contigo

Reprodução/Contigo
por José Esmeraldo Gonçalves (para a revista Contigo)
 “Pensando e Fazendo Cinema no Brasil”.  A frase na parede de um dos estúdios da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Centro do Rio de Janeiro, diz mais do que parece. Em letras pretas sobre fundo branco, como se fosse uma tela, está escrito o recado simples e direto que além de revelar o espírito da instituição, traduz muito do jeito de Irene Ferraz, 55, ver a vida. Fundadora e diretora da escola e não por acaso autora do lema, responsável pela produção de longas como “Leila Diniz” e “Exu-Piá, coração de Macunaíma” e de documentários institucionais dirigidos por Sílvio Tendler (64) e Nelson Pereira dos Santos (85), entre outros, Irene dedica-se há 13 anos à escola. Nesse período, foram formados cerca de 6 mil profissionais entre brasileiros e estrangeiros, que já realizaram cerca de 400 filmes. Quando revela esses números, Irene se entusiasma. “Aqui o importante é o aluno, o trabalho dele, sua trajetória. Tenho uma grande alegria de falar que em todo o país há produtores, diretores, fotógrafos já no mercado. Muito lindo”, orgulha-se ela, que se prepara para lançar um núcleo de criação para a TV.
Irene Ferrraz se envolve com energia nas escolhas pessoais e profissionais. Veste a camisa. Curiosamente, a escola da qual fala com tanta vibração é resultado de paixões assim intensas. E em dobro. O gosto pelo cinema somou-se ao amor pelo parceiro que a ajudou a idealizá-la: o antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, com quem viveu por pouco mais de dez anos até a sua morte, vítima de câncer, em 1997, aos 75 anos. “Foi muito bonito esse encontro com o Darcy. Era uma pessoa muito singular e a gente viveu isso com muita alegria. Eu era muito nova, mas era uma jovem que já tinha uma produtora de cinema e havia realizado muita coisa. Quando eu o conheci, em 1986, estava lendo um dos seus livros com o meu namorado. Os dois admirávamos Darcy pelo romancista que era, pela personalidade. Eu o encontrei em uma livraria. Achei muito simbólico, a literatura nos aproximou. Meu então namorado queria mostrar um filme ao Oscar Niemeyer e ao próprio Darcy. Conversamos, trocamos telefones. A gente se entusiasmou já naquele momento. Darcy era cativante”, conta Irene. Cativante e rápido. Menos de dois meses depois, o antropólogo ligou para a produtora. Conversaram, riram e, a certa altura, Darcy indagou se ela não poderia encontrá-lo. O primeiro encontro acabou acontecendo na casa dele. Com uma particularidade típica dos apaixonados: durou exatos três dias. Ela foi recebida em uma sexta-feira e saiu na segunda-feira. Como Darcy escreveu em “Confissões”, lançado pouco antes da sua morte, “amor sem desejo é confluência é fervor, bem querer, ou o que se queira. Mas amor não é”. No caso, amor e desejo uniram, a partir daquele fim de semana prolongado, Irene, então, com 27 anos, e Darcy, aos 64. Durante um ano, os dois mantiveram um relacionamento discreto, como Irene é, até hoje, ao revelar um pouco da sua história com o antropólogo. “Darcy trouxe muita alegria na minha vida e eu levei muita alegria à vida dele”.  E foi por esse amor que Irene sofreu para tomar, no começo dos anos 90, uma decisão que seria importantíssima para seu futuro profissional. O cinema brasileiro vivia a crise provocada pelo corte de incentivos durante o governo Collor, quando o diretor Luiz Carlos Lacerda, 69, a indicou para um curso na famosa Escuela Internacional de Cine y Television de Santo Antonio de Los Baños, em Cuba. Irene relutou, passaria dois anos fora. “Foi um conflito, claro, eu estava apaixonada, mas era tentador, a escola reunia gente do mundo inteiro”, justifica. Topou e o sacrifício foi compensado. Durante o curso, Irene assumiu a direção de projetos especiais e a coordenação de produção da escola. Uma experiência profissional que a levaria, em 1998, à criação do Instituto Brasileiro de Audiovisual, instituição sem fins lucrativos que seria mantenedora da Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Já doente, Darcy incentivou e apoiou Irene nos primeiros contatos para viabilizar a escola. Mas não viveu para ver o projeto realizado. Os últimos anos ao lado de Darcy podem ter sido difíceis para Irene, mas não tristes. Desalento era coisa que não vencia o mineiro de Montes Claros. Ele surpreendeu ao ocupar o tempo que lhe restava tornando-se poeta. Darcy escreveu “Eros e Tanatos”. “Erótico demais”, como ele mesmo definia, irônico. De fato, as poesias são uma celebração ao sexo. “Quero um amor alucinado, depravado, tarado/Amor inteiro, de corpo-a-corpo, enlaçados/Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante/Quero você assim, abrasada, pedindo gozo (...). Muitos desses poemas teriam sido dedicados a Irene. “Eu fiz várias poesias para ele”, lembra, embora evite confirmar que foi a musa preferencial do livro. Para ela, ultrapassar a porta da escola batizada com o nome de Darcy equivale a reencontrar parte desse passado de lembranças, ao mesmo tempo em que vive um presente de intensa dedicação à instituição, onde passa muitas horas por dia. “Antigamente, eu ficava aqui de manhã, tarde e noite”, ri. “Estava quase trazendo um colchonete. Mas agora resolvi diminuir um pouco o ritmo. Tento aproveitar as manhãs, caminho na praia, faço pilates, introduzi a musculação na minha vida, me dei esse tempo. Estou adorando”. Provocada, Irene conta que até encontrou tempo para namorar. Mas não revela o nome. “Gosto de ler, ter amigos, pessoas que posso acessar quando preciso. Acho que tenho uma vida simples, e a vida simples é muito sofisticada”, completa, rindo.
Se a carga horária diminuiu, o comprometimento com a escola continua para quem parece funcionar à base de metas e já elegeu um novo objetivo. Com o impacto da Lei do Conteúdo Nacional, que expande o mercador do setor audiovisual, a escola está lançando um núcleo de produção para a TV. “Tínhamos um gargalo, que era o da exibição. Mas precisamos de formação de qualidade para que o conteúdo seja de qualidade. Já existem incentivos à produção, estamos aguardando a liberação de um fundo setorial para a formação audiovisual, que está para sair. Manoel Rangel, presidente da Ancine, prometeu liberar esse fundo importantíssimo. Com esse investimento poderemos devolver à sociedade profissionais qualificados”, entusiasma-se. A carioca que se tornou executiva da área cultural começou a se formar ainda na adolescência. “Meu pai (João Ferraz) era um empreendedor, muito ativo, tinha um bar, granja, foi proprietário de uma empresa de ônibus. Em casa, éramos oito filhos e mais um, adotivo. Fui criada em um sítio na Avenida Brasil, lá tínhamos plantações, fazíamos sabão. Meu pai e minha mãe (Maria José) sempre cobraram um comprometimento com o fazer. Aprendi a pensar nas contas, quem paga, como é que paga. E se seles erraram em alguma coisa, foi no excesso. Aprendi muito trabalhar, só não aprendi a brincar. Talvez por isso eu tenha sido uma workaholic. Mas agora estou me curando”, avisa.