Reprodução/Contigo |
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“Pensando e Fazendo
Cinema no Brasil”. A frase na parede de
um dos estúdios da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Centro do Rio de Janeiro,
diz mais do que parece. Em letras pretas sobre fundo branco, como se fosse uma
tela, está escrito o recado simples e direto que além de revelar o espírito da
instituição, traduz muito do jeito de Irene Ferraz, 55, ver a vida. Fundadora e
diretora da escola e não por acaso autora do lema, responsável pela produção de
longas como “Leila Diniz” e “Exu-Piá, coração de Macunaíma” e de documentários institucionais
dirigidos por Sílvio Tendler (64) e Nelson Pereira dos Santos (85), entre
outros, Irene dedica-se há 13 anos à escola. Nesse período, foram formados
cerca de 6 mil profissionais entre brasileiros e estrangeiros, que já
realizaram cerca de 400 filmes. Quando revela esses números, Irene se
entusiasma. “Aqui o importante é o aluno, o trabalho dele, sua trajetória.
Tenho uma grande alegria de falar que em todo o país há produtores, diretores,
fotógrafos já no mercado. Muito lindo”, orgulha-se ela, que se prepara para
lançar um núcleo de criação para a TV.
Irene Ferrraz se envolve com energia nas escolhas pessoais e
profissionais. Veste a camisa. Curiosamente, a escola da qual fala com tanta
vibração é resultado de paixões assim intensas. E em dobro. O gosto pelo cinema
somou-se ao amor pelo parceiro que a ajudou a idealizá-la: o antropólogo e
escritor Darcy Ribeiro, com quem viveu por pouco mais de dez anos até a sua morte,
vítima de câncer, em 1997, aos 75 anos. “Foi muito bonito esse encontro com o
Darcy. Era uma pessoa muito singular e a gente viveu isso com muita alegria. Eu
era muito nova, mas era uma jovem que já tinha uma produtora de cinema e havia
realizado muita coisa. Quando eu o conheci, em 1986, estava lendo um dos seus
livros com o meu namorado. Os dois admirávamos Darcy pelo romancista que era,
pela personalidade. Eu o encontrei em uma livraria. Achei muito simbólico, a
literatura nos aproximou. Meu então namorado queria mostrar um filme ao Oscar
Niemeyer e ao próprio Darcy. Conversamos, trocamos telefones. A gente se
entusiasmou já naquele momento. Darcy era cativante”, conta Irene. Cativante e
rápido. Menos de dois meses depois, o antropólogo ligou para a produtora.
Conversaram, riram e, a certa altura, Darcy indagou se ela não poderia encontrá-lo.
O primeiro encontro acabou acontecendo na casa dele. Com uma particularidade
típica dos apaixonados: durou exatos três dias. Ela foi recebida em uma
sexta-feira e saiu na segunda-feira. Como Darcy escreveu em “Confissões”,
lançado pouco antes da sua morte, “amor sem desejo é confluência é fervor, bem
querer, ou o que se queira. Mas amor não é”. No caso, amor e desejo uniram, a
partir daquele fim de semana prolongado, Irene, então, com 27 anos, e Darcy,
aos 64. Durante um ano, os dois mantiveram um relacionamento discreto, como
Irene é, até hoje, ao revelar um pouco da sua história com o antropólogo. “Darcy
trouxe muita alegria na minha vida e eu levei muita alegria à vida dele”. E foi por esse amor que Irene sofreu para
tomar, no começo dos anos 90, uma decisão que seria importantíssima para seu
futuro profissional. O cinema brasileiro vivia a crise provocada pelo corte de
incentivos durante o governo Collor, quando o diretor Luiz Carlos Lacerda, 69,
a indicou para um curso na famosa Escuela Internacional de Cine y Television de
Santo Antonio de Los Baños, em Cuba. Irene relutou, passaria dois anos fora.
“Foi um conflito, claro, eu estava apaixonada, mas era tentador, a escola
reunia gente do mundo inteiro”, justifica. Topou e o sacrifício foi compensado.
Durante o curso, Irene assumiu a direção de projetos especiais e a coordenação
de produção da escola. Uma experiência profissional que a levaria, em 1998, à
criação do Instituto Brasileiro de Audiovisual, instituição sem fins lucrativos
que seria mantenedora da Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Já doente, Darcy
incentivou e apoiou Irene nos primeiros contatos para viabilizar a escola. Mas
não viveu para ver o projeto realizado. Os últimos anos ao lado de Darcy podem
ter sido difíceis para Irene, mas não tristes. Desalento era coisa que não
vencia o mineiro de Montes Claros. Ele surpreendeu ao ocupar o tempo que lhe
restava tornando-se poeta. Darcy escreveu “Eros e Tanatos”. “Erótico demais”,
como ele mesmo definia, irônico. De fato, as poesias são uma celebração ao
sexo. “Quero um amor alucinado, depravado, tarado/Amor inteiro, de
corpo-a-corpo, enlaçados/Amor sem reserva, que a tudo se entrega,
lancinante/Quero você assim, abrasada, pedindo gozo (...). Muitos desses poemas
teriam sido dedicados a Irene. “Eu fiz várias poesias para ele”, lembra, embora
evite confirmar que foi a musa preferencial do livro. Para ela, ultrapassar a
porta da escola batizada com o nome de Darcy equivale a reencontrar parte desse
passado de lembranças, ao mesmo tempo em que vive um presente de intensa
dedicação à instituição, onde passa muitas horas por dia. “Antigamente, eu
ficava aqui de manhã, tarde e noite”, ri. “Estava quase trazendo um colchonete.
Mas agora resolvi diminuir um pouco o ritmo. Tento aproveitar as manhãs, caminho
na praia, faço pilates, introduzi a musculação na minha vida, me dei esse
tempo. Estou adorando”. Provocada, Irene conta que até encontrou tempo para namorar.
Mas não revela o nome. “Gosto de ler, ter amigos, pessoas que posso acessar
quando preciso. Acho que tenho uma vida simples, e a vida simples é muito
sofisticada”, completa, rindo.
Se a carga horária diminuiu, o comprometimento com a escola
continua para quem parece funcionar à base de metas e já elegeu um novo
objetivo. Com o impacto da Lei do Conteúdo Nacional, que expande o mercador do
setor audiovisual, a escola está lançando um núcleo de produção para a TV.
“Tínhamos um gargalo, que era o da exibição. Mas precisamos de formação de
qualidade para que o conteúdo seja de qualidade. Já existem incentivos à
produção, estamos aguardando a liberação de um fundo setorial para a formação
audiovisual, que está para sair. Manoel Rangel, presidente da Ancine, prometeu
liberar esse fundo importantíssimo. Com esse investimento poderemos devolver à
sociedade profissionais qualificados”, entusiasma-se. A carioca que se tornou
executiva da área cultural começou a se formar ainda na adolescência. “Meu pai
(João Ferraz) era um empreendedor, muito ativo, tinha um bar, granja, foi
proprietário de uma empresa de ônibus. Em casa, éramos oito filhos e mais um,
adotivo. Fui criada em um sítio na Avenida Brasil, lá tínhamos plantações,
fazíamos sabão. Meu pai e minha mãe (Maria José) sempre cobraram um
comprometimento com o fazer. Aprendi a pensar nas contas, quem paga, como é que
paga. E se seles erraram em alguma coisa, foi no excesso. Aprendi muito trabalhar,
só não aprendi a brincar. Talvez por isso eu tenha sido uma workaholic. Mas agora estou me curando”,
avisa.