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sábado, 9 de dezembro de 2017

Sylvio Silveira versus Severino Dias - A GUERRA DOS CHEFS ou DUELO NO OSCAR CORRAL



Por Roberto Muggiati

A festa se perde na distância do tempo e a memória turva mal consegue atravessar os vapores etílicos daquela noitada… Pudera: um grupo seleto de jornalistas e executivos da Bloch – homens e mulheres – esperava o jantar havia horas – três, quatro, não exagero – servido por garçons solícitos do que desejasse: champanhe, vinho, uísque, caipirinha e o que mais se pudesse esperar de uma adega bem sortida.
Era no apartamento de Oscar Bloch Sigelmann, no nono andar do edifício Machado de Assis, na Avenida Atlântica, onde Adolpho e Lucy Bloch tinham sua morada no segundo andar. Adolpho não estava presente, Oscar reinava supremo com esta oportunidade rara de mostrar que era um “jolly good fellow”... A atração da noite seria um pato, menos prosaicamente um canard à l’orange preparado pelo diretor da sucursal da Manchete em Paris Sylvio Silveira, que viajara especialmente para a ocasião.
Sylvio Silveira. 
A Bloch sempre atraiu personagens de todos os matizes que, embora representando uma engrenagem a mais na máquina, tinham sua história pessoal muito rica. O gaúcho Sylvio Silveira fugiu um dia da mulher com a roupa do corpo e foi parar em Paris no início dos anos 1950. Ninguém saberia explicar – muito menos ele, que nem músico era – como de repente se viu liderando a melhor orquestra de dança da França. Infelizmente, Sylvio não soube administrar o seu sucesso e perdeu o lugar para Eddie Barclay, que virou um magnata da música e dos discos na França e, milionário, passou a trocar de carro e de loura todo ano. Barclay e o gaúcho eram trogloditas em matéria de música, mas Sylvio dizia que ao band-leader bastava "benzer" o público com uma maraca, a rapaziada da orquestra fazia o resto. De volta à rua da amargura, Sylvio acabou sendo descoberto por Adolpho Bloch e virou seu factotum em Paris. Em pouco tempo, Monsieur Silveirá se tornava a eminence grise da sucursal da Manchete em Paris, plantada num prédio da Avenue Montaigne, uma das ruas mais chiques da cidade: na cobertura morava Marlene Dietrich, que costumava tomar banho de sol nua; outro morador ilustre era o cineasta Roman Polanski.
PARIS, janeiro de 1977 – Entre a anfitriã Sophie Bleustein-Blanchet e Roberto Muggiati, Sylvio Silveira é servido em almoço na cobertura do Studio Publicis, uma das maiores agências de publicidade da França, defronte ao Arco do Triunfo (No andar térreo, a pleno vapor, funcionava desde 1957 a Drugstore Publicis, primeira do gênero em Paris, fundada pelo presidente do Grupo, Marcel Bleustein-Blanchet.) Foi neste encontro com Bleustein-Blanchet que Adolpho Bloch decidiu criar no Rio uma versão brasileira da Fondation de la Vocacion – a Fundação da Vocação – entidade destinada a promover a educação através da concessão de Bolsas.

Sylvio não era jornalista, mas, como homem de confiança de Adolpho, cuidava de tudo. (Os Bloch, perversamente, diziam sempre: “Ninguém sabe fazer uma mala como ele”, aludindo, é claro às mil muambas que Sylvio era obrigado a colocar entre roupas e sapatos, bugigangas que incluíam de perfumes e bijuterias a queijos, patés e vinhos.) No auge da ditadura militar, os Bloch ofereceram um jantar ao todo-poderoso Ministro da Economia Delfim Neto, em visita a Paris, e Sylvio botou os jornalistas da sucursal (quase todos comunas e exilados) na cozinha a descascar batatas e cebolas para o regabofe do Delfim.
Depois de décadas de Paris, Sylvio tornou-se exímio nas artes da gastronomia. Mas esta sua performance no Rio acabaria em verdadeiro desastre.  Sylvio iria preparar no apartamento do Oscar na Avenida Atlântica um canard à l'orange que era sua especialidade. Inadvertidamente, por não ter escolha ou até por sacanagem, Oscar deixou a infraestrutura a cargo de Severino Ananias Dias, o maître de Adolpho, que via no Sylvio uma ameaça à sua hegemonia.
Severino, Adolpho e Marechal. 

Como bom nordestino, Severino tinha ambições políticas. Nas festas da Manchete, por pura gozação, Cony sempre pedia que ele discursasse “em nome da redação da Manchete.” Severino sentia-se lisonjeado e soltava o verbo. Foi assim que, num aniversário do chefe, ele criou até um neologismo, ao se referir a “esta figura inevolúvel de Adolfo Blóqui...” Severino se candidatou a deputado, mas não emplacou. Tempos depois, casou com uma jovem do clã Avellino, detentor do poder em Vassouras, RJ. Elegeu-se prefeito de Vassouras, importante município fluminense que completou 160 anos em setembro e tem como lema Mihi maxime debetur Brasiliae incrementum (A mim, mormente, é devido o progresso do Brasil). Terminado o mandato, nos anos 1990, enquanto procurava novos rumos políticos, ainda em Vassouras, Severino morreu metralhado ao volante de seu carro, com a mulher ao lado, que nada sofreu. Acabou dando seu nome à Escola Municipal Prefeito Severino Ananias Dias. Seu filho, Severino Ananias Dias Filho, 33 anos, é o atual prefeito de Vassouras, até 2020.
Dezenas de editores e altos funcionários da Bloch — tinham de acordar cedo no dia seguinte — mas ficaram horas tomando coquetéis aguardando que os patos fornecidos pelo Severino descongelassem. Na espera, começaram até a rolar piadas, típicas de jornalista. Havia na França um conhecido jornal satírico chamado Le Canard Enchaîné (O pato acorrentado); canard, na verdade, é gíria para “jornal”. O pato do Sylvio foi batizado de Le Canard Déchaîné, o pato desvairado.
Severino fez os palmípedes chegarem às mãos de Sylvio duros como blocos de gelo. Desesperado, Sylvio tentou até apressar o descongelamento dos bichinhos com o secador de cabelos da anfitriã, Inês. Finalmente, pouco antes das badaladas da meia-noite, os canards vieram à mesa, com uma bela e apetitosa aparência. Mas os patos não haviam resistido ao supercongelamento: sua carne ficou fibrosa e insossa. Com um sorriso nos lábios, o elegante Monsieur Silveirá tentou dar o máximo do seu talento culinário, mas o boicote ostensivo do Severino foi fatal e o pobre Sylvio acabou pagando o pato.
Cabe aqui outro bordão da Manchete: o francês fake “chose de loque” (coisa de louco), que nós transformamos em “chose de Bloch”.