Por Roberto Muggiati
A festa se perde na distância do tempo e a memória turva mal consegue
atravessar os vapores etílicos daquela noitada… Pudera: um grupo seleto de
jornalistas e executivos da Bloch – homens e mulheres – esperava o jantar havia
horas – três, quatro, não exagero – servido por garçons solícitos do que desejasse:
champanhe, vinho, uísque, caipirinha e o que mais se pudesse esperar de uma
adega bem sortida.
Era no apartamento de Oscar Bloch Sigelmann, no nono andar do edifício
Machado de Assis, na Avenida Atlântica, onde Adolpho e Lucy Bloch tinham sua
morada no segundo andar. Adolpho não estava presente, Oscar reinava supremo com
esta oportunidade rara de mostrar que era um “jolly good fellow”... A atração da noite seria um pato, menos
prosaicamente um canard à l’orange
preparado pelo diretor da sucursal da Manchete em Paris Sylvio Silveira, que
viajara especialmente para a ocasião.
Sylvio Silveira. |
A Bloch sempre atraiu personagens de todos os matizes que, embora
representando uma engrenagem a mais na máquina, tinham sua história pessoal
muito rica. O gaúcho Sylvio Silveira fugiu um dia da mulher com a roupa do
corpo e foi parar em Paris no início dos anos 1950. Ninguém saberia explicar –
muito menos ele, que nem músico era – como de repente se viu liderando a melhor
orquestra de dança da França. Infelizmente, Sylvio não soube administrar o seu sucesso
e perdeu o lugar para Eddie Barclay, que virou um magnata da música e dos
discos na França e, milionário, passou a trocar de carro e de loura todo ano.
Barclay e o gaúcho eram trogloditas em matéria de música, mas Sylvio dizia que
ao band-leader bastava "benzer" o público com uma maraca, a rapaziada
da orquestra fazia o resto. De volta à rua da amargura, Sylvio acabou sendo
descoberto por Adolpho Bloch e virou seu factotum em Paris. Em pouco
tempo, Monsieur Silveirá se tornava a eminence grise da sucursal da Manchete
em Paris, plantada num prédio da Avenue Montaigne, uma das ruas mais chiques da
cidade: na cobertura morava Marlene Dietrich, que costumava tomar banho de sol
nua; outro morador ilustre era o cineasta Roman Polanski.
Sylvio não era jornalista, mas, como homem de confiança de Adolpho,
cuidava de tudo. (Os Bloch, perversamente, diziam sempre: “Ninguém sabe fazer
uma mala como ele”, aludindo, é claro às mil muambas que Sylvio era obrigado a
colocar entre roupas e sapatos, bugigangas que incluíam de perfumes e
bijuterias a queijos, patés e vinhos.) No auge da ditadura militar, os Bloch
ofereceram um jantar ao todo-poderoso Ministro da Economia Delfim Neto, em
visita a Paris, e Sylvio botou os jornalistas da sucursal (quase todos comunas
e exilados) na cozinha a descascar batatas e cebolas para o regabofe do Delfim.
Depois de décadas de Paris, Sylvio tornou-se exímio nas artes da
gastronomia. Mas esta sua performance no Rio acabaria em verdadeiro
desastre. Sylvio iria preparar no
apartamento do Oscar na Avenida Atlântica um canard à l'orange que era
sua especialidade. Inadvertidamente, por não ter escolha ou até por sacanagem,
Oscar deixou a infraestrutura a cargo de Severino Ananias Dias, o maître
de Adolpho, que via no Sylvio uma ameaça à sua hegemonia.
Severino, Adolpho e Marechal. |
Como bom nordestino,
Severino tinha ambições políticas. Nas festas da Manchete, por pura gozação,
Cony sempre pedia que ele discursasse “em nome da redação da Manchete.”
Severino sentia-se lisonjeado e soltava o verbo. Foi assim que, num aniversário
do chefe, ele criou até um neologismo, ao se referir a “esta figura inevolúvel de Adolfo Blóqui...” Severino
se candidatou a deputado, mas não emplacou. Tempos depois, casou com uma jovem
do clã Avellino, detentor do poder em Vassouras, RJ. Elegeu-se prefeito de
Vassouras, importante município fluminense que completou 160 anos em setembro e
tem como lema Mihi
maxime debetur Brasiliae incrementum (A mim, mormente, é devido o progresso do
Brasil). Terminado o mandato, nos anos 1990, enquanto
procurava novos rumos políticos, ainda em Vassouras, Severino morreu metralhado
ao volante de seu carro, com a mulher ao lado, que nada sofreu. Acabou dando
seu nome à Escola Municipal Prefeito Severino Ananias Dias. Seu filho, Severino
Ananias Dias Filho, 33 anos, é o atual prefeito de Vassouras, até 2020.
Dezenas de editores e altos funcionários da Bloch — tinham de acordar
cedo no dia seguinte — mas ficaram horas tomando coquetéis aguardando que os
patos fornecidos pelo Severino descongelassem. Na espera, começaram até a rolar
piadas, típicas de jornalista. Havia na França um conhecido jornal satírico
chamado Le Canard Enchaîné (O pato acorrentado); canard, na verdade, é gíria para “jornal”.
O pato do Sylvio foi batizado de Le
Canard Déchaîné, o pato desvairado.
Severino fez os palmípedes chegarem às mãos de Sylvio duros como blocos
de gelo. Desesperado, Sylvio
tentou até apressar o descongelamento dos bichinhos com o secador de cabelos da
anfitriã, Inês. Finalmente, pouco antes das badaladas da meia-noite, os canards vieram à mesa, com uma bela e
apetitosa aparência. Mas os patos não haviam resistido ao supercongelamento:
sua carne ficou fibrosa e insossa. Com um sorriso nos lábios, o elegante
Monsieur Silveirá tentou dar o máximo do seu talento culinário, mas o boicote
ostensivo do Severino foi fatal e o pobre Sylvio acabou pagando o pato.
Cabe aqui outro bordão da Manchete: o francês fake “chose de loque” (coisa de louco), que nós transformamos em “chose de Bloch”.
Cabe aqui outro bordão da Manchete: o francês fake “chose de loque” (coisa de louco), que nós transformamos em “chose de Bloch”.