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sábado, 18 de março de 2017

Memórias do império: a última sessão de cinema dos Bloch

Geraldo Mayrink, colaborador da Época, foi redator da revista Manchete. Ele esteve em Cannes em 1983 e testemunhou uma despedida: Justino Martins não sabia mas naquela noite de maio participava pela última vez 
do festival que tanto frequentou. 




por Geraldo Mayrink 

O filme havia acabado e, numa noite de maio de 1983, o jornalista Justino Martins apareceu para jantar. Ele chegou ao restaurante Le Martis, em Cannes, impecável em seu smoking, por volta de 11 da noite, e sentou-se sozinho a uma mesa. Foi reconhecido pelos brasileiros presentes, quase todos jornalistas. Logo arrumou companhia, brasileira. E parecia triste.

Justino, alto e moreno, gaúcho e vibrante, era uma referência histórica. Passara a vida como diretor da revista Manchete e sabia fazê-la como ninguém, quando ela era um sucesso. Passara parte da vida em Paris e, quase todo mês de maio, no Festival de Cannes. Passara também a vida passando em revista, em casa, em Cannes ou aonde quer que fosse, as mulheres mais belas que punha na capa da revista Manchete

Orgulhava-se disso, não escondia.

Mas Justino parecia triste naquela noite. O filme que vira, Furyo, de Nagisa Oshima, de modo algum o aborrecera. Aos 66 anos, aparentando menos, divagou sobre os fantasmas do festival – gente morta, amigos que não veria mais. Falou de hotéis, pousadas, coisas volatilizadas. Estava doente de um câncer agressivo e fatal, mas não sabia disso. Sua tristeza deveria ter outra causa, impossível de diagnosticar.

Aí lhe perguntaram sobre seu futuro e esse futuro se chamava Rede Manchete, prestes a ser inaugurada. Era para ser uma coisa do outro mundo, com equipamento fabuloso. Bebendo vinho e comendo lasanha, Justino ficou ainda mais triste. Disse: “Não vai dar certo. Equipamento não faz televisão. O que faz é cabeça. E eles não têm cabeça para isso”. Eles eram todos da família Bloch, que havia erguido um império nos moldes luxuosos da velha Hollywood, vendendo ilusões e fantasias na forma de papel colorido, impresso em revistas.

Como se estivesse na Metro-Goldwyn-Mayer, Justino fez da revista Manchete a maior do Brasil num período. Seus companheiros de mesa acharam que ele estava enciumado da televisão, que lhe roubaria o trono espetacular. Nesse momento aconteceu uma coisa de cinema. Foi quando anunciaram que estava chegando ao local o rei do futebol, Pelé, para quem arrumaram uma mesa enorme, apesar da aparição fora de hora. O restaurante, já quase fechando as portas, ressuscitou. Pelé chegou acompanhado de uma loura, mas não uma branquela qualquer. Era uma louraça com vestido curto, branco, mostrando pernas e coxas, jóias no pescoço e dedos. Exibia um sorriso capaz de paralisar a platéia e um nome estranho – Xuxa. Ninguém sabia quem era. A presença de Xuxa provocou uma fila no toalete das mulheres, cuja porta muitos cavalheiros rondavam. Pelé concedeu entrevistas burocráticas. A moça voltou à mesa, muda. Ela sorria, ele se comportava. Comeram e foram embora. Justino observou tudo em silêncio. Mas os jornalistas ainda andavam atrás de realismo e queriam saber por que estava tão pessimista quanto ao futuro da Bloch.

Caminhando pelas vielas de Cannes, de volta ao hotel que ele imaginava cheio de lembranças e de fantasmas, Justino disse que a futura Rede Manchete colocaria Xuxa diante das câmeras e faria referências caridosas a Pelé. Que faria referências encomiásticas a ele, Justino, e haveria outras pessoas mandando no pedaço. Não parecia ressentido. Mas achava que a nova rede de TV iria à falência e seria fechada, tragando a Manchete e todas as demais revistas do império Bloch, que seriam reduzidas a pó. Despediu-se. Seus companheiros de noite acharam aqueles comentários coisa de um grande profissional que apenas estava triste, numa noite de mau humor em Cannes.

Justino Martins, alma da Manchete, carro-chefe dos Bloch, morreu três meses depois, sem tempo – e também sem o desgosto – de ver como estavam certas suas previsões mais sombrias, miradas num abismo onde não vislumbrava nada parecido com um happy end.


sábado, 21 de maio de 2016

As "surpresas" do Brasil em Cannes e a falta de espaço na mídia para a cultura alternativa

Cena de "Cinema Novo", documentário brasileiro premiado no Festival de Cannes 2016. Foto:Divulgação

por José Esmeraldo Gonçalves
Especulando: se o Cinema Novo começasse hoje, no Brasil, provavelmente só seria percebido cerca de dez  anos depois quando ganhasse um prêmio no Festival de Cannes. Talvez a mídia, na época, fosse mais generosa com a Cultura, especialmente com os projetos alternativos ou ideológicos. 

Quando Glauber ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 1969, o Cinema Novo recebia, havia muito tempo, ampla cobertura das revistas e dos cadernos culturais dos jornais. Não apenas o Cinema, como a Música, as Artes Plásticas, a Literatura, a Arquitetura, o Design, o Teatro. 

E não apenas projetos de potencial comercial, como a Jovem Guarda e os Festivais da Canção, mas iniciativas quase artesanais que, a partir da ação ainda visionária de pequenos grupos, fariam o Brasil entrar na era da arte engajada e, paralelamente, em seu primeiro modelo de cultura de massa. 

Ruth de Souza, atriz egressa do Teatro Experimental do Negro, foi entrevistada em 1953.
Foi a primeira negra, e por muito tempo a única, a ilustrar a capa de um revista brasileira,
fato raríssimo ao longo da história da própria Manchete. 

A "História do Cinema Brasileiro", segundo Manchete, nos anos 50. 

Em 1961, Luiza Maranhão na capa de O Cruzeiro. O assunto?
As filmagens de "Barravento", de Glauber, diretor ainda desconhecido
para o grande público.
Em 1953, a Manchete cobria regularmente em reportagens e colunas especializadas, cinema, teatro e artes plásticas. Com pouco mais de uma ano de existência, publicou uma História do Cinema Brasileiro assinada pelo crítico e pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva.

Justino Martins, que assumiu a direção da Manchete em 1958, vindo de Paris, onde vivera a efervescência cultural da cidade, abriu amplo espaço na revista para movimentos que nasceram na virada para a década de 1960 e revelaram um Brasil que, se dependesse da comunidade cultural conservadora, permaneceria confortavelmente oculto naqueles dias em que a urbanização "modernizava" o país e o consumo, na forma de automóveis, eletrodomésticos, vestuário, utensílios, acessórios importados e um varejo anabolizado pelo crediário seduzia a classe média. 

Justino frequentou Cannes durante décadas e foi jurado do Festival. Tinha um grande interesse por cinema, especialmente a Nouvelle Vague e o Neorrealismo, mas as coleções da Manchete e seu fabuloso arquivo fotográfico hoje dado como desaparecido registram passo a passo cada um daqueles movimentos de todas as artes. 

Entrevistas, bastidores de filmagens, estreias de filmes, peças e espetáculos musicais, perfis de diretores, escritores, cantores, compositores artistas plásticos, na maioria das vezes fotografados na intimidade dos seus redutos de criação, fossem estúdios, ateliês ou casas eram pautas presentes nas edições de Manchete na década que Rubem Gershman nomeou de "utopia absoluta".  

No Brasil, a vida nunca foi fácil para os criadores e promotores culturais fora do main stream. Hoje, parece ainda mais complicada. Divulgar ou obter financiamento para um filme que não tenha um nome nacionalmente conhecido, um ídolo, geralmente formado pela TV, é missão difícil.


O atual Festival de Cannes já ofereceu duas "surpresas" aos brasileiros: a indicação para a Palma de Ouro, com repercussão positiva e elogios da crítica para o filme "Aquarius", do pernambucano Kleber Mendonça Filho, e o Prêmio Olho de Ouro, na Mostra Cannes Classic, evento oficial fora da competição, para o documentário "Cinema Novo", de Eryk Rocha, que faz uma jornada no tempo rumo à cena épica de realizadores como Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues e Glauber Rocha, pai de Eryk. 

Os dois filmes viajaram para a França praticamente em silêncio. Nas redes sociais, houve quem se surpreendesse com a "volta" de Sonia Braga, que está no elenco de "Aquarius". Para muitos, ela estava aposentada e recolhida a um apartamento em Niterói. 

Quanto ao filme de Eryk Rocha, basta dar um google agora para ver que ganhou visibilidade apenas a partir da premiação divulgada há poucas horas. 

A Cultura vem perdendo nos últimos anos mais do que verbas e ministério. A maioria dos jornais cancelou, reduziu ou fundiu seus cadernos culturais. Com menos espaço na mídia, produto que não arrasa quarteirão só vira notícia quando é referendado por  "resultados". Antes disso, só se trouxer um ex-BBB no elenco. 

Sem divulgação, os patrocinadores não aparecem. Faz falta, talvez, um "occupy internet" por parte dos realizadores para divulgar seus projetos e tudo o que acontece com os seus produtos durante a maturação, depois de prontos etc. Se não, quase tudo será "surpresa": um filme brasileiro estar entre os concorrentes à Palma de Ouro, um desenho brasileiro ("O menino e o mundo") concorrer a um Oscar de Melhor Animação, um documentário brasileiro ser premiado em Cannes...  

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Sônia Braga: cinema de resistência e opiniões idem...

(por Vasco Câmara, para o Público)
Há quem tenha vindo por causa da memória dela em Dona Flor e seus dois Maridos (Bruno Barreto, 1976). Mas para ela, evocar uma era do passado não é apenas um trabalho de pura nostalgia, o tempo de um set e o que eles juntos faziam lá  - com Jorge Amado e com Zélia Gattai, com José Wilker… - é  pura alegria. “Não é nostalgia, é  uma coisa feliz. Um filme transmite felicidade a muitas pessoas e é isso que queremos, dar-lhes uma consciência, mas principalmente diverti-las”. Eis Sônia Braga, 66 anos, a intérprete de uma esplendorosa personagem, Clara, de um esplêndido filme, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, durante a conferência de imprensa em Cannes. “Filme foda!”, gritou um jornalista brasileiro.

Sônia vive entre Niterói e Nova Iorque. Há muito que não faz telenovelas, mas sublinha imediatamente: “A televisão é muito importante no Brasil. As pessoas não têm tempo nem dinheiro para ir ao cinema e ao teatro.” Logo a seguir a filha de uma costureira que criou sete filhos, a rapariga que deixou a escola aos 13 anos e que se tornou nos anos 70 e 80 num ícone do cinema e da televisão brasileiros, faz uma declaração essencial: isso não pode servir para menosprezar a “inteligência e a sofisticação dos pobres” no Brasil.

“O problema é com os ricos. Querem tirar a todos tudo o que eles têm e querem fazer as cidades feias”. Sônia, cuja linha de pensamento seria continuada por um colega actor, Humberto Carrão (ao falar na “falta de educação dos ricos”), referia-se ao contexto da personagem no filme, uma sexagenária, a única habitante de um edifício do Recife dos anos 40, que, não querendo abandonar as suas memórias, torna-se um foco de resistência para os projectos de uma imobiliária e da sua ferocidade.

“Viemos todos de sítios diferentes, mas estamos aqui. Temos de estar juntos, não importando de onde viemos, para fazermos todos juntos a democracia”. Sônia está então a falar de várias coisas que esta ficção absorveu, e que é o tempo que o Brasil vive hoje. Na terça-feira, ao subirem à red carpet para a gala de Aquarius, Sônia e a equipa, Kleber e os restantes actores, viraram-se para as câmaras e empunharam cartazes a denunciar o “golpe” - o processo de destituição da Presidente brasileira Dilma Rousseff - que entendem estar a ocorrer no Brasil. “Ocorreu um golpe de Estado no Brasil”, lia-se num dos cartazes. Outro: “O mundo não pode aceitar este Governo ilegítimo”. “Chauvinistas, racistas e golpistas como ministros”. “54.501.118 votos incinerados”.
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