quinta-feira, 25 de julho de 2024

Memórias Pré-Manchete • O SENA É UMA FESTA: A temporada que vivi às margens nada plácidas do rio parisiense • Por Roberto Muggiati

           

Foto de Cartier-Bresson na capa do LP de Bill Evans  [Reprodução]

A escolha original e ousada de abrir as Olimpíadas fora de um estádio, em barcaças sobre as águas do Sena, me trouxe de volta as memórias do ano vibrante que vivi nas proximidades do célebre rio. Cheguei a Paris uma semana depois de completar vinte e três anos. Contraparodiando a frase célebre de Paul Nizan, “não deixarei ninguém dizer que não é a idade mais bela da vida”. Desembarquei às oito horas da manhã da sexta-feira 14 de outubro de 1960 na Gare d’Austerlitz depois de vinte horas no trem de Madri. Com minhas duas malas de Curitiba sentei-me no café de calçada da estação, debruçada sobre as águas do Sena. Devorei um croissant com uma tigela de café-com-leite folheando Le Figaro. Naquela tarde haveria um concerto com o trio do pianista Bud Powell e o quarteto do saxofonista Lucky Thompson em memória do contrabaixista Oscar Pettiford, morto recentemente. Peguei um táxi para a Casa do Brasil, na Cité Universitaire. Joguei as malas sobre a cama e me mandei para o Théâtre des Champs Élysées. Não quis arriscar o metrô, um táxi era mais seguro – comecei a desfolhar precocemente o talão de travelers cheques, mas valia a pena. O teatro, que em 1913 fora o palco da tumultuada estreia do modernismo (A Sagração da Primavera pelos Ballets Russes de Nijinsky e Diaghilev), estava metade cheio, ou metade vazio, o que garantia o silêncio necessário para fruir as delicadas filigranas do piano de Bud Powell, que eu veria outras vezes em sua “residência” no Blue Note.

Lembro bem as águas do Sena quando – estudando jornalismo com uma bolsa do governo francês – tive a sorte rara de morar no pequeno City Hôtel, na Île de la Cité, ou seja, no centro da foto perfeita de Henri Cartier-Bresson, o mestre do clic zen, daqueles flagrantes roubados em pleno movimento, numa pirueta visual de que só sua cabeça, seu olho e seus dedos eram capazes. Em 1951, excepcionalmente, ele fez uma foto em que o ser humano era completamente anulado pela paisagem: uma vista da Île de la Cité, tomada do Pont des Arts, uma passarela para pedestres, de notoriedade recente –ficou ameaçada de cair por causa do peso dos cadeados de namorados atrelados em suas muretas. A foto é uma obra-prima da composição, céu e rio cortados horizontalmente pelo Pont Neuf e, no centro exato, a ponta da ilha se projeta como a proa de um navio. A riqueza de tonalidades cinzentas é fabulosa. Cartier-Bresson fez cópias da imagem como se fossem tiragens de uma gravura, emoldurando-as com um fio e assinando cada uma. Segundo ele, as cópias foram feitas em “couleur de Loire”, um tom que foi rebatizado “cinza Cartier-Bresson”. Concentrando-se na paisagem e omitindo daquele universo seus costumeiros personagens vivos e saltitantes, Bresson reduz o ser humano a pequenos pontos negros perdidos naquela massa geométrica cinzenta, um comentário sutil sobre a total inutilidade do indivíduo. A foto ilustrou a capa de um álbum do pianista Bill Evans gravado em Paris, a capital mundial afetiva do jazz.

Amarrando o sapato debaixo do chorão na ponta da ilha,
o Pont Neuf ao fundo [Arquivo pessoal]

Lembro as águas do Sena quando atravessava toda noite o Pont Neuf para me refugiar no aconchego do hotelzinho na Place Dauphine, de formato triangular, que um jornalista irreverente chamou de “a Vagina de Paris”. Na Place de La Concorde, “o Umbigo de Paris”, os aristocratas eram guilhotinados pela Revolução Francesa. E o romancista Émile Zola batizou “o Ventre de Paris” o mercado de Les Halles. De fevereiro a julho de 1961 eu deixava toda noite o 29 place Dauphine e caminhava até o 29 rue du Louvre – onde ficava o Centre de Formation des Journalistes – atravessando a imensidão dos Halles, com seus pavilhões de ferro abarrotados de frutas, legumes, hortaliças, carnes e peixes, orgia visual de uma cornucópia gargantuesca. Uma noite passava pela alameda das carcaças de bois sanguinolentas que pendiam de ganchos; outra, flanava pelos jardins de alfaces de todas as formas e cores; na seguinte me esgueirava pelos quiosques acres e úmidos de frutos do mar, peixes de todas as texturas, buquês de polvos com suas ventosas, ostras, mexilhões e vieiras aninhados em suas conchas. E ali se servia também nas madrugadas a melhor sopa de cebola do mundo, a do Pied de Cochon.


Trecho do romance Nadja que fala do City Hôtel e foto da praça [Reprodução]

O hotel ficava no gargalo da praça, que desembocava no Pont Neuf, na ponta da ilha, onde as águas do rio se bifurcavam. Só anos depois, ao ler Nadja, o romance revolucionário de 1928 do surrealista André Breton – que entremeia páginas de texto com páginas de fotos – fiquei sabendo da ligação de Breton com o City Hôtel:

“Esta Place Dauphine é um dos lugares mais profundamente retirados que conheço, um dos piores terrenos baldios que existem em Paris. Toda vez que estive lá, senti abandonar-me pouco a pouco o desejo de ir para outro lugar, precisei argumentar comigo mesmo para me livrar de certas amarras muito doces, agradáveis, insistentes e, no fundo, destruidoras. Além do mais, morei algum tempo num hotel nesta praça, “City Hôtel”, onde as idas e vindas a toda hora, para quem não se satisfaz com soluções simplistas, são suspeitas.”

Mon cher André, ficar sabendo que, 33 anos depois, morei no quartinho da mansarda do City Hôtel, com vista para o Louvre, dormindo as poucas horas que dormia no mesmo colchão em que você dormiu, me traz uma sensação muito forte de pertencer, de uma forma física, ao que de melhor a cultura do século 20 ofereceu. Só me resta arrematar com a frase final e definitiva de Nadja:

La beauté sera CONVULSIVE ou ne sera pas. (A beleza será CONVULSIVA ou não será nada.)

Lembro as águas do Sena – antes sequer de sonhar em morar na ilha – em minha primeira incursão, com amigos da Cité Universitaire, numa noite fria de janeiro na calçada que margeia o rio – Gene Kelly dançou ali com Leslie Caron em Sinfonia de Paris – e de repente uma cena bizarra nos arranca do nosso enlevo: uma mulher com vestido da belle époque se atira no rio do alto da ponte ao lado da catedral de Notre Dame. Só um ano depois, num cinema de São Paulo, fiquei sabendo que era uma dublê de Jeanne Moreau na filmagem de Jules e Jim.


Com Helena Costa nos buquinistas do Sena [Arquivo pessoal]

Lembro do Sena nos primeiros dias de fevereiro, morando já no City Hôtel, flanando pelos cais e vasculhando os buquinistas com Helena Costa, minha colega da Maison du Brésil, “máquina de morar” projetada por seu pai, Lúcio Costa, em parceria com Le Corbusier – Helena elegante e severa com sua capa de grife cinzenta. Parecia que o Brasil tinha se mudado para Paris, eu via sempre as meninas Kubitschek, Márcia e Maria Estela, nos concertos de jazz do Olympia. O país já desgovernado a partir de Brasília, depois do tresloucado gesto de Jânio, marcharia inexoravelmente para o desastre.

No início de fevereiro, de temperaturas historicamente amenas, parisienses acorriam para nadar nas águas do rio.

Lembro do Sena no início da primavera lambendo os galhos dos salgueiros chorões no Square du Vert-Galant, onde eu sentava num banco de madeira para ler os novos lançamentos dos autores beat da City Lights Bookshop de San Francisco, comprados ali perto, também às margens do Sena, diante da majestosa rosácea da Notre Dame, na livraria Le Mistral , hoje Shakespeare and Company . (É no Vert Galant que se passa o conto de Júlio Cortázar Las babas del diablo, inspiração do filme Blow-Up, que Antonioni ambientou na Swinging London. Bolsista em Paris em 1951, Cortázar rompeu com a ditadura argentina e ficou na França até morrer, em 1984.)

Lembro as águas do Sena, os beats estavam em Paris, num hotel decrépito na viela medieval Gît-le-Coeur, a poucos passos do rio. A viúva Rachou não tinha sequer um nome para sua espelunca, que virou Beat Hotel, sugestão do poeta Gregory Corso. William Burroughs ficava no quarto, afagando o gato e se drogando. Allen Ginsberg morava com o companheiro Peter Orlovsky, eu o abordei um dia – todo de preto, a gola da camiseta branca sobressalente lhe dava um ar de clérigo – esquivou-se e sumiu correndo.

Bombom Campos Malle no seu apartamento em Paris, anos 70 [Arquivo pessoal]

Lembro as águas do Sena naquele abril, eu tinha ouvido Thelonious Monk no Olympia com Bombom, Maria de Lourdes Campos. Lenda viva da côterie brasileira em Paris, Bombom é retratada por Danuza Leão na sua autobiografia Quase tudo: “Muito inteligente, Bombom entendeu logo que, sendo brasileira e baiana, para ser chique em Paris devia se vestir como uma inglesa e assim fez, até o fim da vida. E tinha os seios lindos, tão lindos que volta e meia, num restaurante, numa loja ou numa boate, sempre tinha alguém que dizia: ‘Bombom, mostra os peitos’. Com a maior tranquilidade ela levantava o suéter, mostrava, e a conversa continuava como se nada tivesse havido. Nesse período ela já namorava Bernard Malle, irmão de Louis. O namoro não ia nem para a frente nem para trás e uma noite eles brigaram feio. Bombom pegou todos os livros de Bernard – que era colecionador de livros antigos – jogou na rua e fez uma fogueira (e dizem que dançou nua em volta dela, em pleno inverno). No dia seguinte marcaram a data do casamento e ficaram juntos por mais de trinta anos.” 

A verdade do affaire Bombom-Bernard eu conheci bem mais de perto, na carne: Bombom decidiu ter um caso comigo só para enciumar o amante. Podres de rico, os Malle eram fornecedores de açúcar de beterraba do Imperador desde os tempos de Napoleão. Bombom deu o cheque-mate numa noitada comigo no New Jimmy’s, a discoteca da Régine. Bebemos o melhor champanhe e Bombom pendurou a despesa na conta de Bernard. Nunca mexa com o bolso de um francês. O plano de Bombom deu certo e ela já estava de casamento marcado com Bernard naquela tarde em que ouvimos de mãos dadas Monk tocar ao piano April in Paris, um solo genial de um minuto e quinze segundos, cada nota e cada silêncio perfeitos, a gravação sempre me reconduz àquele momento mágico. Bombom me abandonou como um traste velho sem deixar um traço, nem mesmo um pentimento do seu Chanel N° 5, e partiu para a Índia, onde o irmão trabalhava na embaixada do Brasil. Viciado naquela doce vida de sexo, vinho e jazz, vi meu mundo desabar. Bebi o dia inteiro e naquela noite caminhei até o Sena no local onde existia a Torre de Nesle, do alto da qual as devassas princesas de Borgonha – as irmãs Blanche, Marguerite e Jeanne de Navarra – mandavam jogar seus jovens amantes depois de uma noite de orgia. Desci os degraus até o rio e fiquei a mirar o reflexo do meu rosto nas águas poluídas. Fui arrancado do meu torpor pelo som de um saxofone acariciando a mais bela melodia do jazz, Round Midnight. Era Barney Wilen, meu vizinho, com as janelas abertas na noite abafada. Hipnotizado pela canção, dei meia-volta, marchei rumo ao boulevard Saint-Germain e fui repensar a vida. Sentei-me num restaurante de calçada diante de uma travessa de ostras frescas e uma taça de vinho branco gelado. O francês é sábio: não há chagrin d’amour que resista ao instinto do bon goûter e da joie de vivre. Meu projeto de suicídio foi adiado sine die com relativo sucesso. 

Lembro as águas do Sena na noite de 24 de abril, os generais de direita da Argélia articulavam um putsch para invadir Paris e tomar o poder. Voltando do lançamento do livro American Express, de Gregory Corso, encontrei todas as pontes que levavam à Île de la Cité bloqueadas por fileiras de ônibus, sucata dos anos pré-guerra, e centenas de gendarmes – com suas casquettes e pélerines antiquadas – fazendo a triagem de cada passante: “Vos papiers, s’il vous plaît?” Felizmente, naqueles tempos conturbados, eu andava sempre com o passaporte e a Carte de Séjour de bolsista, e pude dormir o sono dos justos no meu quartinho do City Hôtel.

Na noite de autógrafos do Gregory Corso conheci uma francesa de vinte anos, Jacqueline. No dia 1º de maio, passeávamos de mãos dadas pelos Champs Elysées, o feriado era conhecido também como o dia do Muguet de Mai. Era costume a namorada colocar na lapela do seu jules um buquezinho de muguet (lírio-do-vale). Jaqueline comprou um num dos quiosques que se alinhavam pela avenida e espetou na lapela da jaqueta de camurça do meu figurino existencialista. Com feromônios e testosterona a mil, seguimos em direção do palacete do embaixador Paulo Carneiro, que tinha as portas literalmente sempre abertas. Logo Jacqueline e eu nos pusemos à vontade e deitamos e rolamos nos sofás do salão rococó. 

A mulher de Paulo não quis morar em Paris quando ele foi nomeado embaixador do Brasil junto à Unesco. Vivendo assim em confortável solteirice, Paulo sabia muito bem os usos galantes que sua entourage fazia de sua casa, por isso – um perfeito gentleman – costumava chegar sempre assobiando alto para alertar os eventuais transgressores. Jacqueline e eu nos recompusemos a tempo e saudamos o dono da casa, que apenas sorriu de leve. 

Maria Lúcia Dahl [Arquivo pessoal]

Marília Carneiro [Arquivo pessoal]

Na Páscoa, os saraus du côté de chez Carneiro foram abrilhantados pela chegada das irmãs Pinto, Maria Lúcia (depois Dahl) e Marília (depois Carneiro), 20 e 23 anos. Maria Lúcia era a garota mais bonita do Rio de Janeiro e me apaixonei de cara por ela. Tinha um concorrente sério, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Um trunfo a meu favor era convidar Maria Lúcia para concertos de jazz, graças a meu mágico talão de travelers. Depois de um show de Cannonbal Adderley no Olympia, Maria Lúcia e eu nos juntamos a uma turma dos saraus do embaixador no Harry’s New York Paris Bar, entre elas a Neusa Azambuja, que trabalhava na Unesco. Depois de muitas doses, tramamos uma travessura de repercussão internacional: sequestrar o monumento mais famoso de Bruxelas, o Manneken Piss, aquele anjinho que urina numa fonte. Entre umas e outras, discutíamos a estratégia da operação e as ferramentas necessárias. Neusa Azambuja tinha um carro, de Paris a Bruxelas eram três horas de estrada. Já raiava o dia quando o grupo se desfez depois que Neusa disse: “Mas eu não falei que meu carro estava na oficina?”

Caminhamos de mãos dadas às primeiras luzes daquele dia de primavera pelo Jardin des Tuileries, Joaquim Pedro e Maria Lúcia, eu e Marília, que casaria em breve com o filho do embaixador, Mário Carneiro, mas se sentia desculpada pelo noivo no outro hemisfério. 

Os três amigos no boulevard Saint-Germain: Olli Heikkinen,
Peter Jay Solomon e Roberto Muggiati [Arquivo pessoal]

Lembro as águas do Sena quando atravessava a ponte com meus amigos do City Hôtel, o finlandês e o nova-iorquino. Olli Heikkinen era filho de um operário numa fábrica de vidros nas lonjuras do Golfo da Finlândia, perto da fronteira soviética. Foi tentar a vida em Paris, mas não deu em nada, apenas esporádicas e suadas noites como carregador nos Halles. Era sustentado por uma mulher mais velha que morava no City, me levaram uma noite para ouvir o saxofonista Jackie McLean na boate Au Chat-Qui-Pêche. Peter Jay Solomon pertencia à notória família de banqueiros de Manhattan e estagiava num banco americano em Paris. Havia ainda uma Milady agregada a estes improváveis Três Mosqueteiros, uma sueca robusta e coxuda que tinha sido dançarina do Folies Bergères, Inger Margaretha Wegge. Lembro de uma tarde no hipódromo de Longchamps, deitados na grama, minha cabeça fazendo a barriga generosa da Inger de travesseiro. E uma noite memorável no estádio do Parc des Princes vendo o Santos de Pelé arrebatar o Torneio de Paris diante de 40 mil pessoas ao vencer o Racing por 5x4.

Foto com o jornal sobre a morte de Hemingway [Arquivo pessoal]

Lembro as águas tépidas do Sena naquele domingo de verão, 2 de julho. Sentado na amurada de pedra ao lado do Pont Neuf eu fumava uma erva tibetana com Ruth Fleming, ex-amante de Olli, que tinha voltado para a Finlândia. Na casa dos trinta, negra, professora primária em Nova York, cultora dos beats, Ruth era abusada. Não hesitou em abordar o ator Farley Granger no intervalo de uma peça e assim conversei com um de meus atores favoritos, o mocinho do Pacto Sinistro de Hitchcock. Só Ruth para descolar um baseado ungido por um lama do Tibet. Com a mente esvaziada, tudo zen, contemplávamos o sol que mergulhava em câmera lenta no rio. Só muito tempo depois nos demos conta de que estávamos imersos na mais absoluta escuridão. Compartilhamos sonhos tibetanos no hotel de Ruth, o Scandinavia, com sua temática medieval de elmos, armaduras, paredes caiadas e vigas expostas. De manhã, ao pisar na calçada, fui agredido pelas manchetes dos jornais: HEMINGWAY DEAD. Enquanto fumávamos nosso cigarro exótico às margens do Sena, na distante Ketchum, em Idaho, estourava os miolos com uma espingarda de cano duplo o escritor que mais amara e cantara a cidade de Paris. Busquei de alguma forma registrar o momento. Com um exemplar do Daily Mail improvisei uma pré-selfie na cabine automática de fotos de identidade.  As imagens mostram exatamente o que eu sentia naquela manhã da primeira segunda-feira de julho de 1961. 

Em meus seis meses de City Hôtel, por contingências monetárias, ocupei vários quartos. O melhor foi uma mansarda no quinto andar com vista para o Sena e o Museu do Louvre. Na última etapa, acabei relegado a um cubículo de 4×4 metros, sem janelas, com um piso de lajotas de argila hexagonais. (Ironicamente, a França é conhecida como Hexágono, pela forma do seu mapa.) Numa tarde de verão, dublê de cinéfilo e jazzófilo, decidi ir a um cineminha do Boul’Mich’ assistir ao filme do fotógrafo da revista Life Bert Stern, Jazz on a Summer’s Day, a mãe de todos os rockumentários sobre os festivais do final dos anos 60, como Monterey Pop, Woodstock e Altamont. Filmado durante o Festival de Jazz de Newport de 1958, entrelaçava as apresentações musicais com detalhes pitorescos da plateia e cenas do cotidiano da pacata ilha, que protagonizava nos dias do grande evento. Antes de sair do quarto, dei os últimos repasses na pia, onde lavava meias e cuecas com sabão em pó – uma operação de rotina que batizei de “a espuma dos dias” – mil perdões, Boris Vian, pelo uso tão banal do título de seu belo romance.

Apesar de sua sordidez, o City Hôtel mantinha no térreo um simpático Salon de Thé Le Rigaudon, no lugar do que deveria ser a portaria. Era cuidado por três vieilles dames, assistidas por Monsieur Marcel, seu pau-para-toda-obra, em todos os sentidos.  Acolheram-me com chacotas. Tinha acontecido o pior: eu deixara a torneira da pia aberta. O chão do meu pequeno bunker alagou e a água infiltrou para o quarto inferior, caindo nas malas de uma turista sobre um armário. O estrago só não foi pior porque a inquilina estava no quarto.

Alors, mon jeune homme, on fabrique du papier mâché dans sa chambre? – perguntou uma das garces num tom de deboche. A alusão era à pilha de jornais entulhados num canto do quartinho e que ficaram totalmente encharcados. Explico: meu pai, apesar do orgulho de ter um filho bolsista em Paris, receava que eu perdesse as “raízes” curitibanas, e me abastecia regularmente pelo correio com exemplares da Gazeta do Povo, o jornal onde eu trabalhara durante seis anos, antes de embarcar para Paris. Aqueles tentáculos bairristas me perseguiriam nos dois anos de residência na França e nos três anos seguintes em que trabalhei no Serviço Brasileiro da BBC de Londres.

Esqueci rápido meu vexame, cooptando a frase majestática de Luís 15, “Après moi le déluge!” (“Depois de mim o dilúvio!”). Eu tinha pela frente as férias de verão, o Grand Tour nórdico, Holanda, Escandinávia e Finlândia do sol-da-meia-noite (onde vivi um domingo inesquecível na ilha de Kaunisaari) e o Grand Tour mediterrâneo, o sul da França e a Itália de cabo a rabo, incluindo a Sicília. 

Grafito numa ponte do Sena: “Aqui afogamos os argelinos” [Reprodução]

Lembro das águas do Sena ensanguentadas pelo Massacre de 17 de Outubro de 1961, quando mais de 200 operários argelinos morreram afogados. Desarmados, eles marchavam da periferia para o centro de Paris em protesto contra o toque de recolher que só atingia “franceses muçulmanos da Argélia”. Os policiais surraram os manifestantes e os jogaram agonizantes nas águas gélidas do rio. Numa das pontes os assassinos rabiscaram acintosamente ICI ON NOIE LES ALGÉRIENS. Naquele dia eu estava a quase mil quilômetros de Paris, namorando uma italianinha na saída de um curso de inglês diante do túmulo de Dante Alighieri em Ravena, o poeta morreu e foi enterrado no exílio. Só fiquei sabendo da chacina dos argelinos quando voltei a Paris em novembro. O terrorismo de direita prosseguia com violência, mas não conseguiu impedir a independência da Argélia, proclamada em 5 de julho de 1962. 

Meu último momento mágico em Paris foi em 19 de novembro de 1961, um sábado, quando assisti ao quarteto de John Coltrane, acrescido do saxofonista, clarinetista e flautista Eric Dolphy, na sua primeira turnê europeia. Era a nova fase de Coltrane, experimentando a sonoridade diferente do sax soprano e improvisando por mais de meia hora sobre o tema My Favorite Things, do musical da Broadway The Sound of Music. 

Tive a sorte naquela noite de presenciar um espetáculo extramusical no intervalo dos shows. Numa épicerie ao lado do Olympia, num smoking bem cortado, Coltrane exercitava os dedos e os dentes num ovo duro. Do lado de fora, uma pequena multidão se comprimia para assistir ao espetáculo – os fãs mais açodados com o nariz colado à vitrina. Flagrar o ídolo numa atividade banal é um privilégio raro. Guardo com carinho a lembrança daquela noite, principalmente porque os dois gênios se foram cedo: Dolphy em 1964, aos 36 anos; Coltrane em 1967, aos 40.

Ao voltar, encontrei o horizonte brasileiro sobrecarregado com as nuvens do golpe militar iminente. Ainda guardava, intensas em mim, as memórias de Paris e daqueles tempos tumultuados, mas felizes, em que as águas do Sena assistiam a tudo impassíveis e soberanas. Ninguém descreveu o rio lendário melhor do que o poeta Jacques Prévert, nascido em Neuilly-sur-Seine: “La Seine n’a pas de soucis/Elle se la coule douce/Le jour comme la nuit/Et s’en va vers le Havre/Et s’en va vers la mer/En passant comme un rêve/Au milieu des mystères/Des misères de Paris". Em tradução literal: “O Sena não tem apreensões/ Ele corre docemente/De dia e de noite/E segue rumo ao Havre/E segue rumo ao mar/Passando como um sonho/Em meio aos mistérios/Às misérias de Paris.”


Um comentário:

Renata disse...

Uma crônica a altura de Paris, a mais bela e culta cidade do mundo