segunda-feira, 26 de junho de 2017

Memórias da redação: no tempo em que "trolar" era "tirar sarro"...

(do livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou", edição on line)

Trolar é uma gíria da internet para zoar, tirar sarro, gozação. O termo é novo mas a prática é antiga.

Na Manchete, duas figuras eram mestres na arte de criar situações fazendo uso de falsos memorandos ou falsas cartas: Alberto Carvalho e Carlos Heitor Cony. A dupla tinha o requinte de guardar papeis timbrados que chegavam à redação e recortar logotipos e cabeçalhos para "oficializar " memorandos ou comunicados. Os textos recriados em tom oficial eram montados na xerox, onde ganhavam uma certa autenticidade. Forjavam assim cartas de cobrança de dívidas, de convite para viagens internacionais e até de intimação policial.

"Uma Noite no Mar Cáspio" enlouquece marqueteiro 

Houve uma época, lá pelo comecinho dos anos 1970, em que foi contratado um executivo cuja função era introduzir na revista modernas técnicas de marketing. Dizem que o sujeito era uma usina de ideias, mas nada do que ele apresentava nas reuniões ia pra frente. O próprio Adolpho Bloch não botava fé nas estratégias do especialista. Para o patrão, o marketing mais importante era a capa da revista que se resumia em duas categorias: "vendeu" ou "encalhou".

Apesar disso, os "projetos" não paravam de jorrar nas reuniões de pauta. Um dia, Cony resolveu sacanear o marqueteiro. Mandou um memorando endereçado para ele próprio, para os setores engenharia, de segurança, de bufê etc e para o expert em marketing, convocando uma grande reunião para discutir um evento chamado "Uma Noite no Mar Cáspio".

Segundo o comunicado, a festa aconteceria ao redor da piscina, no terceiro andar do prédio do Russell e celebraria as origens russas de Adolpho Bloch, ao mesmo tempo em que associava sua trajetória de sucesso à importância da marca Manchete. Seria um evento lítero-musical, como pedia o memorando "da presidência".  A reunião preparatória efetivamente ocorreu. Cony se engajou na própria farsa, compareceu ao local marcado e ouviu, a sério, as várias ideias que foram postas à mesa, enquanto o marqueteiro e coordenador do evento anotava tudo e discutia os comes e bebes, a contratação de um solista de violino, uma projeção de fotos, a lista de convidados etc. Antes de fazer uma saída triunfal da reunião, Cony embaralhou os trabalhos e enlouqueceu o "comitê organizador" ao despejar suas próprias sugestões, que iam de espetáculo pirotécnico à apresentação de um coral de funcionários. Só ao voltar à sua sala, o perplexo executivo, novo na casa, descobriu que "Uma Noite do Mar Cáspio" era tão autêntica quanto "Uma Noite nos Mares do Sul", o famoso baile de carnaval que a Manchete cobria todo ano.

Editor em crise de depressão  

Outra trolagem: Em 1970, o jornalista Raul Giudicelli assumiu a direção da Fatos & Fotos. Talvez para sair do trivial e deixar sua marca na revista partiu pro delírio total: vestiu uma fantasia do Fantasma e convenceu Chico Anysio a fazer uma entrevista com o personagem. A matéria surreal foi publicada na revista.  Cony desencavou nos Serviços Editoriais (o setor da Bloch que recebia material de agências e revistas estrangeiras) um papel timbrado da todo-poderosa King Features Syndicate, detentora dos direitos do Fantasma. Recortou a matéria da Fatos & Fotos e anexou uma carta dirigida ao "Editorial Director Mr. Raul Giudicelli" informando que os advogados da empresa entrariam com um processo por uso indevido de imagem do Fantasma. A causa, dizia o "documento", estava estipulada em 100 mil dólares. Cony só assumiu a brincadeira quando soube que o pobre do Raul Giudicelli estava em crise de depressão e não comparecia ao trabalho havia dois dias, sem saber como dar a Adolpho Bloch a notícia de que a empresa ia entubar um processo milionário.

Jornalista é convocado a comparecer ao Crematório Municipal

Essa foi do Alberto. Um colega redator que já havia ultrapassado a barreira dos 60 anos e era particularmente hipocondríaco (embora gozasse de saúde perfeita) recebeu um dia uma "carta" da Secretaria de Administração Civil do Rio de Janeiro, cujo teor era o seguinte:
DCP/RJ 19/09/
Controle de População
Lei 32.694 de 02/06/1946
Prezado senhor:
Conforme registro do nosso cadastro de controle, verificamos que V. Sª atingiu o limite de idade previsto por lei. Nossos estudos estatísticos indicam que a sua idade não oferece mais nenhuma vantagem para a sociedade. Muito pelo contrário, acarreta uma carga complementar às entidades assistenciais de sua comunidade, bem como o desagrado daqueles que o rodeiam.
Por este motivo, V. Sª deverá apresentar-se ao Crematório Municipal até 8 (oito) dias após o recebimento desta, a partir das 9h00 da manhã, diante do Forno Nº 5, Ala Norte, para que possamos proceder vossa incineração.
Na oportunidade, V. Sª deverá apresentar-se munido dos seguintes documentos e acessórios:
1. Carteira de identidade (original);
2. Protocolo do atestado de óbito em andamento;
3. Comprovante de pagamento da taxa de cremação (autenticada);
4. Comprovante de pagamento do IR dos últimos 5 (cinco) anos;
5. 1 (um) saco plástico (sem propaganda de supermercado) para as cinzas;
6. 2 (dois) metros cúbicos de lenha seca, ou dez litros de gasolina de alta octanagem.
Para evitar qualquer contratempo ou perigo de explosão, fica estipulado que até 48 (quarenta e oito) horas antes V.Sª não deverá ingerir qualquer bebida alcoólica ou mesmo comer batata doce ou repolho, pois provocam reações incontroláveis de alta periculosidade ao ecossistema.
Antecipadamente agradecemos vossa valiosa colaboração e.... ADEUS!!!
Atenciosamente (assinatura)
Subchefe Adjunto Substituto do Assessor do DCP- Departamento de Controle da População.

A redação inteira da Manchete ficou observando o hipocondríaco ler a carta, circunspecto. Ele coçou a cabeça antes de levantar a vista da carta sinistra, ouvir a explosão de gargalhadas na sala e tomar mais um Lexotan.  



4 comentários:

J.A.Barros disse...

Na verdade essas mentiras – pequenas fraude – tinham seu lado humorísticos apesar do susto que o fraudado levava no primeiro momento. A artimanha era feita com tanta perfeição que todos, na redação, se deixavam enganar.

Nilton Muniz disse...

Boa noite!

Em outra ocasião, se houver, contem a história inventada (mais uma) pelo Alberto sobre o "enterro" do Justino - porque este se ausentou da Revista 3 dias - dando origem a famosa lista para a compra da coroa de flores que ficou sob a responsabilidade da Mary "bundão", que correu todos os andares e respectivos departamentos. Hilária. Abração.

bqvManchete disse...

Boa lembrança para uma próxima memória da redação, Nilson, não que escrever?

Nilton Muniz disse...

Vou tentar reunir até onde vivenciei esta engraçada estória e a enviarei para análise deste BUREAU. Abrs.