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terça-feira, 26 de abril de 2022

Meus 35 anos de Manchete: improvisando soluções na ‘melhor da galáxia’ • Por Roberto Muggiati

 

A edição número 1 da Manchete foi para as bancas comn data de 26 de abril de 1952,
há exatos 70 anos..

Primeiro, uma explicação: a “melhor da galáxia” era a revista Manchete, megassuperlativo que ganhou do Presidente Juscelino Kubitschek num almoço-homenagem a Justino Martins em 1975. JK tomou a palavra e, empolgado, viajou, num recado particular ao amigo Adolpho: “És um homem feliz, Bloch. Tens a melhor revista do Brasil. Indisputavelmente da América Latina; tens a melhor revista do mundo – quiçá da galáxia!”, proclamou o Presidente Bossa Nova (nem tanto, a julgar pela oratória...)  

No dia seguinte, aguardávamos na redação os exemplares da Manchete que tinha ido às bancas naquela manhã. Com sua verve típica, Alberto de Carvalho perguntou: “Já chegou a melhor da galáxia?” E assim a revista passou a ser alcunhada, na base da gozação.

Essa história me concerne particularmente. Depois de lançar a Manchete em 1952, Adolpho Bloch penou anos para encontrar um editor digno desse nome. Os cronistas Henrique Pongetti e Otto Lara Resende não sacavam nada de jornalismo. O primeiro editor que deu certo foi Hélio Fernandes. Botou a semanal ilustrada nos eixos e começou a vender revista. Seu único defeito: queria ser independente. Proibiu a entrada dos irmãos Karamabloch na redação. Eram três, então, Arnaldo, Boris e Adolpho. Não só estavam em superioridade numérica, mas também eram os donos. Hélio Fernandes dançou. De repente, como num passe de mágica, Arnaldo e Boris morreram e o caçula Adolpho passou a reinar absoluto em 1959. Apostou no correspondente da Manchete em Paris, o gaúcho Justino Martins, e o chamou para dirigir a revista no Rio. Tarimbado, com cacife de revisteiro, Justino deu conta do recado e a Manchete deslanchou. Aí Freud explica. Por um daqueles estranhos mecanismos do inconsciente, Adolpho não conseguia engolir o sucesso do Justino. Consolidada a hegemonia da Manchete no mercado, tentou tirar da direção da revista o “Índio” (assim menosprezava seu desafeto). Uma primeira tentativa, em 1968, com o chefe de redação Zevi Ghivelder, cria da casa, não vingou. Em 1971, Justino voltou triunfalmente, com um bônus. Uma trama urdida com a estilista e perfumista Madame Grès, ua ex-amante – ela alegou que queria contratar Justino como seu RP em Paris – lhe valeu um adicional de mil dólares mensais, pagos por Adolpho em dinheiro vivo à vista de toda a redação.

É aí que eu entro em cena. Jornalista desde 1954 na Gazeta do Povo de Curitiba, com dois anos de estudos no Centre de Formation des Journalistes de Paris, depois três anos em Londres no Serviço Brasileiro da BBC, voltei ao Rio e comecei como repórter especial na Manchete em 1965. Em 1968-69, fiz parte em São Paulo da equipe inicial da Veja, como editor de Artes e Espetáculos. De volta ao Rio, fui editor da Fatos&Fotos em 1969, depois chefe de redação do EleEla em 1971. Em 1972, Justino me chamou para ser o seu “segundo” na Manchete. Cinéfilo, viajava todo ano para o Festival de Cannes (ganhou até o apelido de “Cidadão Cannes”). Na sua ausência, eu editava a revista. Adolpho sentiu firmeza no meu trabalho e em 1975 e me colocou no lugar do Justino. Cinicamente comunicou ao “Índio” que ele fora promovido e iria editar uma nova revista... de jardinagem. E organizou uma feijoada de quatrocentos talheres em sua homenagem. A partir daí, merecer uma feijoada na Bloch equivaleria a uma forma sutil de defenestração. (Outro código blochiano: quando queria se livrar de um visitante importuno, Adolpho ordenava ao "escravo" mais próximo: “Traga para ele o melhor carro da casa...”)

Entre idas e vindas, na minha participação em 73% da existência da Manchete, acabei me tornando o editor que durou mais tempo no cargo. Justino voltou em 1981 para sua morte de um câncer fulminante dois anos depois, uma morte simbólica coincidindo com o lançamento da Rede Manchete de Televisão, o novo brinquedo que deixaria as revistas da Bloch à deriva. Voltei a ser editor da revista em 1984, doze anos depois fui trocado por uma troika paulistana, que durou pouco mais de um ano. Voltei à chefia em 1997, no Dia das Bruxas, para sair definitivamente em maio de 1999. Bloch Editores já caminhava então inexoravelmente para a falência, em 1º de agosto de 2000.

O trabalho numa revista semanal não era tão frustrante como aquele num jornal diário. Quando chegava às bancas já estava desatualizado e seu destino era embrulhar peixe. Esse dilema aumentou com a TV e com a internet. Já o hebdomadário criava seu próprio tempo. Namorava a notícia, é claro, mas fazia um jornalismo mais interpretativo e aprofundado. A Manchete tinha basicamente dois fechamentos: do “miolo”, às quintas-feiras; e da atualidade, às segundas. Nossa estratégia consistia em colocar no “miolo” matérias frias, culturais, entrevistas com pessoas que não corressem o risco de morrer antes do fechamento da edição na segunda (só faltava exigir atestado médico). Já na sexta adiantávamos a outra metade da revista, a parte traseira, deixando a metade dianteira do caderno para os acontecimentos do fim de semana e até da própria segunda. E havia ainda aquela margem de risco entre o fechamento na redação na segunda e o início da impressão na gráfica na terça. No golpe militar do Chile que assassinou Salvador Allende – em 11 de setembro de 1973 – tivemos de reabrir a revista. Já no assassinato de John Lennon numa noite de segunda-feira em Nova York, em 1980, optamos por não mexer na revista e anexar um caderno especial dedicado ao Beatle.

Mortes trágicas de celebridades sempre exigiram uma cobertura especial. Meu batismo de fogo foi o avião da Varig cheio de famosos que pegou fogo e caiu num campo de cebolas em Paris poucos minutos antes de pousar no aeroporto de Orly. Na véspera do embarque, Justino recebeu a visita da belíssima Regina Rozemburgo Léclery, acompanhada do ator Dominique Ruhle, ambos morreriam no acidente. Na noite de sexta-feira 13 de julho de 1973 aguardávamos as fotos, que vieram em malote especial da Varig, para antecipar o fechamento da edição. O pouso forçado sobre um campo de cebolas não teria causado um arranhão sequer nos passageiros. Eles morreram asfixiados pela fumaça a bordo e, atrelados a seus assentos, tiveram os corpos carbonizados quando o incêndio se alastrou tão forte que consumiu parte do teto. As imagens resultantes eram muito fortes. Justino se deixou levar por seu instinto animal de editor de fotos e publicou tudo. A reação da Varig foi imediata: cortou toda a publicidade nas publicações da Bloch e também o serviço de malotes.

Algo parecido me aconteceu na cobertura da morte dos Mamonas Assassinas quando seu jatinho caiu na Serra da Cantareira, nos arredores de São Paulo, pouco antes da meia-noite de 2 de março de 1996. No dia seguinte, domingo à noite, antecipávamos o fechamento daquela edição. A mata densa, de difícil acesso, prejudicou a cobertura fotográfica. Em compensação, graças a nosso ótimo relacionamento com a divulgadora da EMI-Odeon, Marília Van Boekel Cheola (nobre como seu nome), tínhamos fotos fabulosas do grupo, que adorava posar com roupas coloridas e histriônicas. Pela primeira vez usamos telefotos em cor de jornais paulistas. O que recebíamos na redação eram quatro imagens nas versões ciano, magenta, amarelo e preto, que seriam combinadas na gráfica para compor uma foto em cores. Pelas chapas individuais, não podíamos visualizar a foto final. Os técnicos da gráfica simplesmente fizeram o seu trabalho, com tal esmero que a imagem saiu com uma qualidade rara para uma telefoto. Mostrava os corpos mutilados de alguns dos Mamonas. Os milhares de fãs não nos perdoaram e saímos com a fama de sensacionalistas inescrupulosos.

Vivíamos tempos estranhos em 1976. Em abril, morreu num acidente de automóvel suspeito a estilista Zuzu Angel, opositora tenaz da ditadura (teve um filho torturado e morto). Em agosto, correu um alerta falso da morte de JK num desastre de automóvel. Quinze dias depois, me liga o chefe de reportagem, João Luiz de Albuquerque, com a notícia da morte de JK quando seu carro se chocou com um ônibus na Via Dutra. Agora era para valer. Meia-noite de domingo pego um táxi e corro para a redação. Editor da revista, ocupo minha cadeira diante da mesa em L. A revista já estava com 80% de suas páginas fechadas, o “miolo” impresso. Retiramos todas as matérias que não fossem essenciais e ficamos com uns 40% daquele número para ser dedicado a JK. Recebo uma procissão de colaboradores, redatores e repórteres para refazer a pauta. Adolpho Bloch, Carlos Lacerda, David Nasser e Josué Montello escrevem artigos especiais. Eu só podia sair para ir ao banheiro quando a necessidade estivesse já no limite. Vagamente soube do velório de JK e do seu motorista Geraldo oito andares abaixo, no saguão de entrada do prédio. Vi pelas janelas quando o cortejo partiu para o aeroporto levando JK para ser enterrado em Brasília. Anoiteceu, de vez em quando me traziam um sanduíche com refrigerante para matar a fome. E muito cafezinho para turbinar a adrenalina. Adolpho e Cony voltaram de Brasília com as fotos do funeral, ainda a serem reveladas. A edição, fechada às três da manhã de terça-feira, foi uma maratona de 27 horas, durante as quais só me afastei da redação poucas vezes para ir ao banheiro. A última imagem que guardo do episódio foi a do Cony, de terno azul marinho, dormindo em posição fetal no banco de jacarandá maciço no hall dos elevadores. 

Na célebre foto de Gervásio Baptista na edição que registrou a inauguração de Brasília, em 1960, JK virou canhoto. Não por culpa do fotógrafo, mas do diretor de Arte que preferiu inverter a imagem em nome de uma suposta composição gráfica mais equilibrada.    


O erro foi corrigido 16 anos depois na capa da edição especial sobre a morte de JK.

Além do feito, digno do Livro Guinness, orgulho-me de ter corrigido um erro histórico e colocar na capa JK acenando a cartola com a mão direita na inauguração de Brasília. A foto de Gervásio Baptista publicada na capa da revista em abril de 1960, por uma destas regras idiotas de diagramação, foi invertida e um JK “canhoto” acenou a cartola com a mão esquerda.

Outro agosto, dois anos antes. Estamos saindo para o fim de semana quando Richard Nixon renuncia ao vivo pela TV, no rastro do escândalo de Watergate. Justino, com a bolsa da Air France a tiracolo, já estava mirando na sua piscina na Joatinga. Zevi Ghivelder chega e me diz: “Adolpho deu o OK, vamos fazer uma edição extra sobre o Nixon.” Dito e feito. Eu morava em Copacabana, dias antes cruzara na rua com o Heron Domingues, o icônico Repórter Esso. No Jornal Internacional da TV Globo, Heron pediu o adiamento das férias para noticiar a queda de Nixon. Um emocional. Morreu no dia seguinte de enfarto fulminante. 

Domingo, 1º de maio de 1994, nove da manhã, me refestelo (é le mot juste) num sofá do térreo, a família toda dormindo no andar de cima, para ver o GP de San Marino de Fórmula 1. Quando Ayrton Senna bateu na curva do Tamburello, me dei conta: acabou o domingo para mim, acabou a Fórmula 1, também. Segui para a redação, à tarde a correspondente em Roma Ivy Fernandes confirmava no hospital de Bolonha a morte do piloto. Antecipamos o fechamento naquela noite, a revista chegou às bancas na terça. Acordei cedo para ver o desembarque do corpo em São Paulo às seis da manhã de quarta-feira. Senti a comoção brutal que tomara conta do país. Propus uma edição extra, que fechamos depois do funeral na quinta.

Ainda 1994, manhã de quinta-feira 8 de dezembro. O divulgador de Tom Jobim, Marquinhos – eu o chamava de “Mosquitinho elétrico” – aparece na redação, o maestro teve um probleminha de saúde em Nova York, uma obstrução de artéria que requer “um simples Roto Rooter, ele vai tirar de letra”. Depois do almoço Marquinhos me comunica a morte do Tom. Abrimos imediatamente uma edição extra em homenagem ao compositor do século, Villa-Lobos no clássico, Jobim no popular. Editei comovido aquela homenagem, mas não posso omitir que  o Tom guardou muito tempo uma bronca comigo. Cobrindo a Noite Brasileira em Montreux-86, que se resumiu a uma briga de foice entre João Gilberto e Tom Jobim, cometi um pecadilho. Aderi à torcida pelo João, sozinho com seu banquinho e violão – e voz, é claro – contra a Banda Nova do Jobim, dez figuras, incluindo as dinastias Jobim (Tom, Paulo, Ana Lontra e Beth), Caymmi (Danilo e Simone) e Morelenbaum (Jacques e Paula) e não resisti a adjetivar o grupo de “nepotista”. Às vezes as palavras ferem mais do que agressões físicas. Mas Tom era um doce de pessoa e o tempo apagou qualquer ressentimento.

Outro fechamento histórico foi o de domingo, 4 de setembro de 1977. Como as bancas fechavam por causa do feriado na quarta, tínhamos de antecipar o lançamento da revista para a terça-feira. O assunto do momento era a morte da jovem Cláudia Lessin Rodrigues. O repórter Tarlis Baptista se considerava, com justiça, o dono da matéria. Dois meses antes, voltando de uma reportagem na Barra com o fotógrafo Adir Mera, viu uma aglomeração de bombeiros e policiais nas pedras da Avenida Niemeyer. Era o resgate do corpo de Cláudia, Manchete fez fotos exclusivas da morta, totalmente nua sobre as rochas beijadas pelas ondas. Adolpho, Jaquito e Oscar foram brincar de jornalista na redação. O fechamento se arrastou, naquele domingo quente, Tarlis telefonou dizendo que tinha um furo. Voltou às nove da noite de um encontro numa churrascaria do Meier com o detetive Jamil Warwar, encarregado do caso. Trazia um dossiê completo, incriminando o jovem Michel Frank e o cabeleireiro Georges Kour pela morte de Cláudia e pela tentativa de ocultação do corpo. O pai de Michel, Egon Frank,  era dono dos relógios Mondaine, grande anunciante da Bloch. Entendi a presença do Oscar no fechamento e ele confirmou minhas suspeitas ao ligar do meu telefone, na minha cara: “Meu caro Egon, o detetive nos deu com exclusividade o resultado da investigação. Fique tranquilo, não vamos publicar nada.” O Tarlis só faltou se jogar do oitavo andar. Frustração geral. Na semana seguinte, Valério Meinel da Veja publicou o dossiê Warwar e ganhou o Prêmio Esso de Reportagem daquele ano. Tempos depois, o David Klajmic, da publicidade, se aproximou solerte de mim e disse: “Muggiati, tem aqui um presentinho pra você.” Era um estojo contendo um autêntico Mondaine, recompensa por ter compactuado com a censura do Oscar. Em 2015, quando morreu o David, consignei em ata nesse Panis um dos grandes vexames por que passei como editor da Manchete: “Meu caro David, muito obrigado pelo reloginho Mondaine que, como todo relógio popular se esfacelou em poucos meses. Obrigado, mais do que tudo, pela lição de jornalismo – e de vida.” 

Prosseguindo com o anedotário: em 1982, Myrian Rios, casada com Roberto Carlos, encenou e estrelou O sonho de Alice, baseado na obra de Lewis Carroll. Dei matéria na Manchete e caprichei no título. Jô Soares tinha um quadro em Viva o Gordo com o bordão “Eu vou dar uma de Alice!” Intitulei a matéria A FAVORITA DO REI DÁ UMA DE ALICE. Sai a revista, o telefone toca na redação. Era Myrian Rios de São Paulo (o Salomão Schvartzman me entregou) contestando o título: “Olha aqui, Sr. Roberto Muggiati, sou a esposa legítima do Sr. Roberto Carlos, nenhuma favorita de harém, e não estou dando uma de Alice, e sua mãe ****” e por aí vai...

Mas a pior roubada aconteceu quando uma repórter mau-caráter, para conseguir emplacar uma notinha na seção “Gente”, que se resumia a uma foto e dez linhas, fez a Beatriz Segall trazer para o estúdio do Rio seu genro e filha – que faziam uma peça em São Paulo, enquanto ela começava uma novela no Rio – tudo por conta da Beatriz, prometendo que a foto seria capa da Manchete! Quando saiu a revista, recebi um telefonema, elegante, mas severo, da Beatriz, transmitindo-me sua indignação, bastante compreensível. Tentei explicar o jogo sujo da repórter e que na nossa pauta se tratava de uma matéria para a seção “Gente”, mas não havia como remediar tamanha injustiça. Coincidiu que Beatriz Segal estrelava na novela Vale Tudo, que passou meses girando em torno do enigma “Quem matou Odete Roitman?” Odete Roitman era ela. A mídia vivia à sua caça. Recebia a todos cordialmente, menos aos veículos da Bloch. Quantas capas Manchete e Amiga perderam por causa da desonestidade de uma repórter?

Justino Martins dizia: “Escrever é fácil, ou impossível.” Ele mesmo ilustrava sua máxima tentando escrever no dia do fechamento as 15 linhas da “Conversa com o leitor”, aquele textículo da página 3 em que o editor fazia uma síntese da edição. Pouca gente se dá conta do papel do telefone no trabalho de um editor de revistas. É uma ferramenta tão importante como a máquina de escrever ou a câmara fotográfica. E o editor não pode deixar de atender. Oitenta por cento das chamadas são chatices, pedidos de matéria, papo ocioso, mas uma das ligações pode ser uma informação preciosa de uma fonte confiável. Em meio à paginação das últimas matérias na segunda-feira, à leitura e correção do texto e das legendas dos leiautes a serem liberados para a gráfica, Justino sentava-se à máquina para escrever, datilografava duas ou três palavras e era interrompido por uma ligação. E assim ao longo de todo o fechamento.

Distanciado, como seu “segundo”, sem a trabalheira do chefe de redação, que era o Maurício Gomes Leite, eu ia aprendendo com as vicissitudes do Justino. Quando assumi o seu posto, procurei ser um pouco mais organizado. Tendo cursado até o quarto ano da faculdade de engenharia da Universidade Federal do Paraná – onde fui colega do Jaime Lerner – embora trabalhasse como jornalista desde os dezesseis anos, eu me iludia com a ideia de que talvez não tivesse perdido de todo uma “visão científica” das coisas. Talvez tivesse ficado algum resíduo na minha cabeça das aulas de cálculo infinitesimal ou de cálculo vetorial... Com relação à “Conversa com o Leitor”, minimizei o  estorvo dos telefonemas das segundas-feiras escrevendo-a no fim de semana, com geralmente de 70 a 80% da revista já definida.  Em casa, acordando cedo no dia do fechamento, podia ainda acrescentar três ou quatro linhas em função dos acontecimentos do sábado e do domingo. Aprendi também que a apresentação da revista não precisava necessariamente ser uma espécie de sumário, podia migrar para a crônica ou assumir um viés filosófico. Um bom exemplo é esta de 2 de junho de 1973.

"Conversa com o Leitor". Clique na imagem para ampliar

Libriano de 6 de outubro – num ninho de librianos que incluía Adolpho (8), Jaquito (10), Murilo Melo Filho (14), Vera Gertel (7), George Gurjan (4), Layrton Cabral (5), Jader Neves (13) – sempre procurei unir os opostos e criar com Adolpho e companhia estratégias para aumentar a venda da revista. De uma edição de Carnaval que vivia só dos três dias, criamos a edição pré-Carnaval, com destaque para o baile do Iate Clube “Uma Noite no Havaí” (produção exclusiva da Manchete, vamos abrir o jogo, com as melhores periguetes da praça), e a edição pós-Carnaval, com a capa produzida em nosso estúdio reunindo os destaques da folia. 

Roberto Muggiati entrega edição da Manchete com destaque para a Suíça ao embaixador Giovanni Enrico Bucher em 1967. Seria o terceiro embaixador sequestrado no Rio nos Anos de Chumbo e trocado, em janeiro de 1971, por 70 presos políticos.

As edições em língua estrangeira também faziam sucesso e traziam imenso prestígio. O grande hit foi a edição em russo, que o Presidente José Sarney entregou a Mikhail Gorbachev no Kremlin em 1986. 

É muita coisa para contar, vou fechar o meu relato com dois feitos da Manchete que humilhavam os jornais diários pela velocidade da cobertura e, ainda mais, pela pujança das cores.

• Para sair nas bancas na quarta-feira com uma cobertura completa da premiação do Oscar, que acontecia nas noites de segunda para a madrugada de terça, paginávamos na abertura da revista as fotos dos cinco principais indicados, os filmes na primeira página dupla, os atores principais e coadjuvantes numa segunda página dupla, e os prêmios de direção, música, etcetera numa terceira página dupla, com mais espaço para o texto. Todo esse material fotográfico era adiantado para a impressão. O texto era sempre mais fácil de processar, podia ficar para o final. À meia-noite da segunda-feira eu seguia para a redação com um redator especializado – primeiro Wilson Cunha, depois, quando ele foi para a TV, Celso Arnaldo vinha de São Paulo, eram ambos feras. Às seis da manhã, com os textos finalizados, íamos para casa dormir o sono dos justos.

• A eleição presidencial nos Estados Unidos era sempre na primeira terça-feira de novembro, data ingrata para a Manchete. O resultado só saía na madrugada de quarta-feira. Como explicar que Manchete, nas primeiras horas da manhã, chegava às bancas com o vencedor na capa e na matéria de abertura? Um segredo muito simples – que nunca revelamos – deixando a concorrência atônita. Tratava-se de uma escolha binária. Por exemplo, em 1992, a confrontação foi entre George Bush, pai, que tentava a reeleição, e Bill Clinton. A redação aprontou duas capas, a matéria de abertura de seis páginas com o perfil do vencedor. Os cilindros foram gravados na gráfica e ficaram prontos para rodar. Opção A, Clinton. Opção B, Bush. Confirmado o resultado, nosso correspondente Sérgio Alberto da Cunha ligou diretamente de Nova York para a gráfica em Parada de Lucas e mandou rodar a opção A, Clinton. Os cilindros do derrotado iriam para o lixo, mas valia o investimento, do ponto de vista jornalístico. (Tenho uma prova impressa preciosa da capa e da matéria do Bush, o vencido, posando como Presidente, o dia que encontrar mostro no Panis). Os coleguinhas dos jornais não podiam acreditar como eles iam às bancas sem o resultado da eleição, enquanto a Manchete ostentava vitoriosa o Bil Clinton na capa. Quanto aos leitores, muitos deviam suspeitar de alguma operação mediúnica – uma revista com a velocidade instantânea da televisão...

Na minha visão pessoal e afetiva, a Manchete acabou na hora certa. Não me vejo fazendo uma edição sobre a tragédia das Torres Gêmeas e de todas as desgraças deste novo século infeliz. Hoje eu me sinto à vontade escrevendo sobre o que quero, à hora que quero, ou não escrevendo nada.

A vida é tão rica que ninguém jamais conseguirá aprisiona-la numa página rabiscada de meras palavras.

PS • A memória é um animal curioso. Das 2519 edições semanais publicadas da Manchete, devo ter feito umas 1500. Feito no sentido físico, um trabalho de ourivesaria, artesanal, como aquele descrito por Benvenuto Cellini em sua autobiografia Vita – embora seja pretencioso comparar algo descartável como uma revista com as joias que Cellini fazia para os papas e aristocratas. Se tivesse agora diante de mim uma coleção completa das revistas, eu seria capaz de evocar – como Proust com a sua madeleine – o que acontecia em minha vida no momento em que cada Manchete estava nas bancas. Até mesmo aqueles primeiros exemplares a partir de 1952, comprados em Curitiba por meu pai, que eu guardava em meu quarto na casa do alto da Alameda Carlos de Carvalho, aos catorze anos. Nas páginas sobre a morte de John Lennon vejo o nascimento iminente de meu primeiro filho, em final de dezembro de 1980. Na revista de 8 de maio de 1985 – os primeiros tempos da infausta presidência Sarney, depois de 21 anos de ditadura militar, deveria – lembro a manhã silenciosa da sexta-feira anterior em que chego cedo, o Alberto pouco depois – a redação na penumbra, poucas luzes acesas – e ele me diz “Nasceu e morreu.” Em momentos de comoção falava para dentro. Ou eu não quis ouvir. “Pô, Alberto! Quem nasceu e morreu?” Então ele fala clara e pausadamente: “Muggiati, o Narceu morreu.” Narceu de Almeida, 52 anos, um santo homem, companheiro de noites de jazz na Swinging London, foi ele quem me fez entrar para a Manchete. A revista de julho de 1984 com Michael Jackson na capa. Lena tinha perdido as gêmeas, e eu, reconduzido à direção da revista, ganhei um presente de grego do Jaquito, uma “viagem-piscina” (expressão justiniana, vai, bate a mão na outra borda e volta), um voo na sexta à noite para Miami, conexão sob ameaça de tufão para Jacksonville, no extremo  norte da Flórida, o megashow da turnê Victory (o Michael Jackson triunfal de Thriller dando uma mãozinha para os irmãos), um domingo inteiro apascentando no aeroporto de Miami, a volta num voo noturno para o Rio e o fechamento de segunda, fazendo as vezes de editor e repórter. 

Enfim, pequenos dramas familiares, a perda dos pais, o nascimento da filha, aporrinhações com o fisco e, como dizia o Bardo, “dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita”, estão grudados às páginas da revista como em papel pega-mosca.

Fechando tudo, de volta ao Bardo, via Aldous Huxley:

 “But thought's the slave of life, and life time's fool; And time, that takes survey of all the world, Must have a stop”.

“Mas o pensamento é escravo da vida e a vida é a tola do tempo; E o tempo, que cobre o mundo inteiro, Tem de parar”.


sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Cabelos curtos para um ano longo • Por Roberto Muggiati

Uma coisa puxa a outra. Fiz um dos meus “haicais safados” para um amigo astrólogo diagnosticado com Alzheimer.  Alois é o primeiro nome do médico que nomeou a doença.

Alois vero

o astrágalo

do astrólogo:

Alzheimer


O jeu de mots recuperou a palavra “astrágalo”, enfurnada numa gaveta do meu primeiro casamento, já nas vascas da agonia, quando líamos os últimos lançamentos franceses e apareceu a margarida, Albertine Sarrazin com seus romances La Cavale e L’Astragale. Astrágalo (ou tálus) é o ossinho que articula o pé com os ossos da perna (tíbia e fíbula), formando o tornozelo. (Com o formato de um cubo, era muito usado em jogos de azar na Antiguidade, como precursor dos dados modernos, principalmente na Grécia e Mesopotâmia). Albertine quebrou o seu astrágalo ao pular de um muro de dez metros de altura fugindo da penitenciária. Abandonada pelos pais ao nascer, ela foi estuprada por um tio aos dez anos, mandada para um reformatório pelos pais adotivos; prostituta e ladra, passou a maior parte da vida na prisão. Nossos caminhos quase se cruzaram no sul da França. Ela nasceu em 1937, vinte dias mais velha que eu; morreu aos 29 anos, de um erro médico durante a anestesia para uma operação dos rins, em Montpellier, em 1967. Bolsista de jornalismo em Paris, fiz um estágio no jornal Midi Libre, de Montpellier, na época a Sarrazin já morava por lá. A roqueira Patti Smith escreveu sobre ela: “Encontrar uma foto de Albertine sentada num café de Paris depois de ter cortado suas longas tranças foi uma revelação. Colei a foto com uma fita adesiva na minha parede ao lado de Falconetti, Edie Sedgwick e Jean Seberg – garotas de cabelos curtos, as garotas do meu tempo”.


Vou perfilar brevemente estas garotas de close-cropped hair, como Patti as define, incluindo outras do meu elenco pessoal. A francesa Falconetti foi descoberta na Comédie Française pelo cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer, que a escolheu para estrelar seu ambicioso filme O Martírio de Joanna D’arc. Todo o martírio seria de Falconetti, que deixou a Comédie, ficando desempregada um ano e meio até que as turbulentas filmagens começassem, só em 1928. O cinema sonoro fora lançado no ano anterior, mas Dreyer, com a verba curta, teve de rodar um filme mudo, recorrendo ainda às legendas. O obsessivo diretor filmava a mesma cena inúmeras vezes. Foi tão exigente numa tomada em que Falconetti tinha de cair ao chão que a atriz só atingiu o realismo que exigiam dela quando quebrou a perna. Seguiu trabalhando de perna quebrada, a dor e as lágrimas na tela se tornaram reais. Teve também os cabelos cortados brutalmente. Na cena da fogueira foi obrigada a ficar de joelhos sobre pedras pontiagudas, sob a luz de refletores tão fortes que lhe queimavam o rosto.

Em 1940, depois de uma volta bem sucedida ao palco, Falconetti tinha seu próprio teatro, L’Avenue, nos Champs-Elysées. Quando as botas nazistas pisotearam a sacrossanta avenida, o teatro foi fechado. Ela fugiu para a Suíça, para proteger o filho de dez anos, nascido do seu relacionamento com o judeu Henri Goldstück. Por sugestão do cineasta Alberto Cavalcanti – que a protegeu de Dreyer durante as filmagens de Joanna D'Arc – Falconetti e o filho vieram para o Brasil em 1942. Tentou fazer teatro no Rio, não conseguiu, mudou-se para Petrópolis, onde dava aulas de francês e de canto para sobreviver. Problemas com o visto a fizeram mudar-se para Buenos Aires, onde continuou dando aulas. Com o fim da guerra, pensou em retomar sua carreira de atriz na França. Como estava acima do peso, iniciou uma dieta tão radical que acabou causando sua morte, ainda na Argentina, aos 54 anos.


Americana do Kansas, Louise Brooks fez em 1929 na Alemanha, aos 23 anos, dois filmes que a tornaram figura cult instantânea, ambos dirigidos por G.W. Pabst, A caixa de Pandora e Diário de uma garota perdida. O penteado que escolheu, autêntica marca registrada, lhe valeu o apelido “a garota do capacete”.


Americana de Iowa, Jean Seberg estreou no cinema aos 19 anos, no filme Santa Joana, do prestigiado Otto Preminger, baseado na peça de George Bernard Shaw, com roteiro do romancista Graham Greene. Teve de cortar os cabelos curtos para o papel e incorporou o penteado à sua persona. Sua atuação de cabelos curtinhos no Acossado de Godard a imortalizou. Uma campanha difamatória do FBI a matou: suicidou-se em Paris, aos 40 anos. O filme Seberg contra todos (2019) foi uma tentativa de resgatar a sua dignidade.


Nascida em Santa Barbara, Califórnia, Edie Sedgwick foi apelidada de "It Girl" pela mídia mundana e de "Youthquake" (terremoto juvenil) pela revista Vogue. De rica e tradicional família americana, foi a primeira jovem socialite a escandalizar os Estados Unidos, descrevendo como gastou toda a sua herança em apenas seis meses em sexo, drogas, roupas e rock & roll. Participou dos filmes experimentais de Andy Warhol – ignorados pelo grande público – e embarcou numa viagem sem fim de anfetaminas, barbitúricos, álcool e fumo, morrendo em 1971 aos 28 anos – um ano a menos e teria pegado o bonde do Clube 27.




Tem ainda a cabecinha redonda perfeita da Twiggy, a manequim chaveirinho da Swinging London. E não podia esquecer Mia Farrow , filha do diretor de cinema John Farrow e da atriz Maurren o''Sullivan (a Jane dos filmes de Tarzan com Jonhnny Weissmüller. É de cabelos curtinhos que Mia - em O Bebê de Rosemary dirigido pelo malsinado  Roman Polanski -  vai parir o filho do diabo num apartamento sinistro  no Edifício Dakota em Nova York, onde John Lennon seria assassinado depois. Foi no próprio set de filmagem que Mia recebeu de um oficial de justiça o pedido de divórcio de Frank Sinatra, com quem havia casado um ano e meio antes – ela com 21, ele com 50 anos. 


Encerro esta galeria com minha mulher e fotógrafa favorita Lena Muggiati. Desobedecendo o Diktat do rabugento Raul Giudiccelli – “editor não escreve, não reporta, editor edita!” – eu me dava a liberdade de, pelo menos uma vez ao ano, deixar a prisão da mesa de edição e sair por aí cobrindo festivais de jazz como o de Montreux e fazendo matérias culturais, como A Suíça de Heminegway, A Londres de Sherlock Holmes e A Alemanha do Jovem Werther (de Goethe). E escapando de morrer de fraque e cartola, ao lado da Rainha, no casamento do Príncipe Andrew, quando a Abadia de Westminster por pouco não foi explodida pelos guerrilheiros do Ira. Em 1985, nossa primeira vez em Montreux, eu ainda podia me dar ao luxo de ter cheveux aux vents e Lena estreava um modelito curtinho exemplar. Valeu correr o mundo pela Manchete, enquanto durou...

Brasil em "pixie"






Dina Sfat, Anecy Rocha, Elis, Maria Della Costa, Tarsila do Amaral em auto retrato,
Tonia Carrero e Ana Cristina César. . Fotos Divulgação e Reproduções

Antecipando-me ao companheiro J.A. Barros, sempre alerta em apontar omissões nos meus textos, lembro aqui algumas brasileiras que saíram bem na foto em sua fase “pixie”: Dina Sfat, Ana Cristina César, Anecy Rocha, Clarice Lispector, Elis Regina, Maria Della Costa, Tarsila do Amaral, Tonia Carrero e a poeta Ana Cristina César.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Há 50 anos Jim Morrison morria em Paris • Por Roberto Muggiati

Jim Morrison, 1967. A famosa foto de Joel-Brodsky. Reprodução San Francisco Art Exchange (link)


O túmulo no Cemitério Père Lachaise. Reprodução Facebook



E afluência dos fãs no 50ª aniversário da morte do artista. Reprodução You Tube

No curto período de dez meses e meio, o mundo do rock – o mundo, enfim – foi abalado pela morte da Santíssima Trindade dos Js: Jimi Hendrix, sufocado no próprio vômito, em Londres, 18 de setembro de 1970; Janis Joplin, overdose de heroína em Los Angeles, 4 de outubro; e Jim Morrison, de parada cardíaca, em Paris, 3 de julho de 1971. Entraram todos para o Clube 27, a confraria dos músicos mortos com aquela idade.

(Veja matéria recente no Panis:

https://paniscumovum.blogspot.com/search?q=CLUBE+27+ROBERTO+MUGGIATI)

Em meados dos anos 70, o editor de Manchete, Justino Martins – embora próximo dos sessenta anos, portanto duplamente “careta”, segundo a máxima da contracultura “não confie em ninguém acima dos trinta” – se mostrou particularmente sensível ao “poder jovem” e pediu-me que escrevesse uma série na revista, Os jovens que sacudiram o coreto. A série acabou virando livro, pela L&PM, em 1984, Rock: do sonho ao pesadelo. 

Eram 15 perfis, o de Jim Morrison, o vocalista-poeta de The Doors, intitulado Arrombando as portas da percepção. Cito aqui a parte relativa ao seu estranho fim:

“Cansado do rock, das gravações e dos concertos, esgotado e desiludido após uma série de processos – no principal deles acusado de obscenidade durante um concerto em Miami – ele embarcou para Paris com Pamela no começo de março de 1971. No dia 3 de julho foi encontrado morto na banheira do seu apartamento, perto da Place des Vosges. Sua morte continua um mistério até hoje. Não foi feita nenhuma autópsia, não se encontrou o médico que assinou o atestado de óbito. O empresário de The Doors, Bill Siddons, foi chamado de Los Angeles e, ao chegar em Paris, encontrou um caixão lacrado e o atestado de óbito. Só seis dias após a morte do cantor, Siddons divulgou uma notícia à imprensa:

“Jim foi enterrado numa cerimônia simples, na presença de poucos amigos íntimos. Guardamos silêncio em torno do acontecimento porque aqueles que o conheciam e amavam queriam evitar a badalação e a atmosfera circense que cercaram as mortes de outras personalidades do rock como Janis Joplin e Jimi Hendrix. Jim morreu serenamente de causas naturais – ele estava em Paris desde março, com sua mulher, Pamela. Tinha consultado um médico em Paris para tratar de um problema respiratório no sábado – o dia de sua morte.”

Pamela, a única testemunha da morte de Jim, nada esclareceu. E acabou morrendo de uma overdose de heroína em maio de 1974. Jim foi enterrado no cemitério do Père Lachaise, em Paris, o mesmo que abriga os corpos de músicos e escritores famosos como Edith Piaf, Chopin, Bizet, Balzac, Oscar Wilde e outros. Seu túmulo, sempre coberto de graffiti, é até hoje o centro de uma peregrinação interminável de jovens. Outros preferem acreditar que tudo não passou de uma farsa, que Jim Morrison ainda vive numa fazenda qualquer do Texas ou num buraco gelado do Alasca.”

Neste ano do cinquentenário – 3 de julho caiu num sábado – por conta da pandemia apenas cem fãs foram autorizados a visitar o túmulo, atrás de barreiras e vigiados por dois policiais.  Vindos de todos os cantos do mundo, alguns deles têm a certeza de que o túmulo está vazio. Vieram apenas para homenagear o ídolo que, no vigor dos 77 anos, apascenta suas cabras e ovelhas em algum lugar remoto da terra, ou nem isso: dedica-se simplesmente a cultivar a nobre arte do dolce far niente...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Tragédia carioca. Um jovem guitarrista de Madureira entra para o Clube dos 27. • Por Roberto Muggiati

Embora só aceite defuntos entre seus membros, o Clube dos 27 não deixa de ostentar um toque de sofisticação e refinamento. Fundado nos anos 60, reúne popstars famosos como o rolling stone Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse, todos mortos com essa idade (Torquato Neto suicidou-se um dia depois de ter completado 28 anos, fiel à máxima de Groucho Marx: “Eu jamais entraria para um clube que me aceitasse como sócio.”). 

Nessa quarta-feira, 13 de janeiro, um modesto carioca ingressou no Clube dos 27 ao ser assassinado com um tiro na cabeça por assaltantes em Madureira. O cabo da Marinha Israel Aarão Marcelo da Silva Correa (até que tinha um nome vistoso) tornou-se mais uma na lista diária de vítimas da violência que assola a cidade. Israel tinha acabado de deixar o Centro de Instrução da Marinha na Penha, onde fazia o curso de sargento. Bom filho, rapaz de bem, também tocava guitarra, nos cultos da igreja evangélica que costumava frequentar. Parafraseio letras do nosso inocente cancioneiro: “Madureira chorou”... Mas a mais cabível seria: “Quero chorar, não tenho lágrimas...”

segunda-feira, 23 de março de 2020

Esqueceram a Doença do Amor! • Por Roberto Muggiati


Cartaz de A Montanha Mágica, de Thomas Mann
No festival de literatura pestilencial que assola a mídia, senti uma grave omissão, a da tuberculose – a Musa Branca ou o Mal du Siècle – que dizimou a burguesia e a classe média do século 19 à metade do século 20. Meu avô paterno, Diogo Muggiati, morreu de tuberculose aos 34 anos num hospital de Pavia, Itália, onde fora se tratar em 1911. Meu avô materno Eugênio Machado da Luz, e seu filho Geninho, também a contraíram, nos anos 1940. Batizada em 1839 pelo patologista alemão Johann Lukas Schoenlein, a tuberculose – originada a partir do gado domesticado – já ocorria na Grécia antiga. Ao longo da história, vários escritores contraíram a doença: os ingleses John Milton, Lord Byron, Shelley, Jane Austen; os alemães Goethe, Schiller, Kant; os russos Tchecov, Dostoievski, Gorki, os franceses Descartes, Musset, Balzac,  Camus; o suíço Jean-Jacques Rousseau; os americanos Walt Whitman, Ralph Waldo Emerson, Edgar Allan Poe.

Jeanne Moreau em Diário de uma camareira.
Na adolescência, invadindo a biblioteca do meu pai, lia furtivamente Segredos de Alcova/Journal d’une femme de chambre, romance de Octave Mirbeau, que foi filmado três vezes – em 1964 por Luis Buñuel, com Jeanne Moreau – o livro mostrava o furor sexual que assola os doentes (a incontrolável TT = tesão de tísico).

Robert Taylor e Greta Garbo em A dama das camélias

Mimi, a heroína da ópera de Puccini, La Bohème, sofre de tuberculose; e também Violeta, em La Traviata de Verdi – A dama das camélias do romance de Alexandre Dumas Filho que inspirou a ópera. A literatura e a música imortalizaram a tuberculose como “A doença do amor”.

Thomas Mann acompanhou a mulher doente em sua internação num sanatório de Davos Platz, na Suíça. A experiência o levou a escrever A montanha mágica, um dos maiores romances do século 20.  Em outra estação de sanatórios suíça, Clavadel, a russa Elena Ivanovna Diakonova, mais conhecida como Gala (depois Dali), conheceu o poeta Paul Éluard e acabaram se casando.

No Brasil, sem ir muito longe, temos uma verdadeira Sociedade dos Poetas Mortos (de Tuberculose): Castro Alves, aos 24 anos; Casemiro de Abreu, aos 23; Álvares de Azevedo, aos 21. Entre golfadas de sangue e poesia, todos cantaram a doença, Álvares de Azevedo, por exemplo:

Descansem o meu leito solitário 
Na floresta dos homens esquecida 
À sombra de uma cruz e escrevam nela: 
Foi poeta, sonhou e amou a vida.


Manuel Bandeira também peregrinou pelos sanatórios de Clavadel, de 1913 a 1914, onde travou amizade com Paul Éluard. A Primeira Guerra Mundial o forçou a voltar ao Brasil. A tuberculose inspirou-lhe um poema notável, Pneumotórax:

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Nelson Rodrigues: esquete
cômico criado na cama
Quem visita a região petropolitana ainda pode ver, na praça central de Nogueira, a antiga estação ferroviária. Os trens da Leopoldina viajavam lotados de pacientes que acorriam aos sanatórios da Serra. O grande Nelson Rodrigues também frequentou a rota serrana, sua primeira internação foi aos 23 anos em Campos do Jordão, São Paulo, em 1935. Conta Ruy Castro em sua biografia de Nélson, O anjo pornográfico, que, instado pelos pacientes do Sanatorinho Popular, Nelson escreveu um esquete cômico sobre eles mesmos. O sucesso quase virou tragédia: levados a gargalhadas irresistíveis, os doentes sofreram violentos acessos de tosse que por pouco não se transformaram em jatos de sangue.

Lembro ainda, no começo da adolescência, uma cena de filme que causou frisson nas plateias da época. Em À noite sonhamos/A Song to Remember, uma biografia romanceada de Chopin, interpretado pelo galã Cornel Wilde, o fim prematuro do pianista polonês, que morreu de tuberculose aos 39 anos, se anuncia em tecnicolor quando gotas vermelhas de sangue caem sobre as teclas brancas do piano.

Jimmie Rodgers
Os cantores de blues e de Country & Western, uma raça itinerante, foram os músicos mais atingidos pela tuberculose na primeira metade do século 20 e exorcizaram as dores da doença em suas canções. Uma das mais conhecidas é T B Blues, de Jimmie Rodgers:

‘Cause my body rattles
Like a train on that old S.P.
I’ve got the T.B. blues.
Porque meu coração chacoalha
Como um trem naquela velha Southern Pacific
Eu tenho o blues da tuberculose.
(Ouçam AQUI)


O jazz na virada do bebop, perdeu três grandes promessas: o baixista Jimmy Blanton, aos 23 anos; o guitarrista Charlie Christian, aos 25; e o trompetista Fats Navarro, aos 26. Os sambistas brasileiros também sofreram pesadas baixas, como os escritores, atores e jornalistas mais chegados à vida boêmia. O exemplo mais notório é o genial Noel Rosa, que morreu de tuberculose em 1937, aos 26 anos (por pouco não entra para o célebre Clube 27...)

Além da tuberculose, outros surtos de doença forneceram rico material para a literatura. A Peste Negra da Idade Média levou o contemporâneo Boccaccio a escrever o Decamerão. Edgar Allan Poe inspirou-se em outra peste para escrever o conto A máscara da Morte Vermelha. Pedro Nava e Nelson Rodrigues descreveram a passagem da Gripe Espanhola pelo Brasil no pós-guerra de 1918. O cólera rendeu duas obra-primas: O amor nos tempos do cólera, de García Marquez, e Morte em Veneza, de Thomas Mann.

Este inusitado coronavírus que caiu de repente sobre nós, já deu inspiração de sobra. Eu mesmo comecei a escrever um Diário do Coronavírus. Só estou torcendo agora, como todos nós, para que esta praga vá embora o mais rápido possível.

PS – Se querem saber bem mais, consultem o link
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pessoas_que_sofreram_de_tuberculose


quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Leila Diniz: bem-vinda ao Clube 27 • Por Roberto Muggiati

Leila Diniz a capa da Manchete, aos 27 anos, em 1972,
ano em que morreu em acidente de aviação.

Robert Johnson

por Roberto Muggiati 

Uma coisa puxa a outra. Walterson Sardenberg Sobrinho, que trabalhou muito tempo na Manchete de São Paulo e atualmente edita a revista The President, me pediu um texto sobre os 80 anos da morte do cantor e compositor de blues Robert Johnson.

Johnson – que influenciou nove entre dez roqueiros dos anos 60 – morreu aos 27 anos, inaugurando uma estranha confraria, a dos músicos e artistas mortos com esta idade.

Brian Jones

Jimi Hendrix

Janis Joplin na Manchete, em 1970, aos 27 anos, oito meses antes de morrer. 

Jim Morrison

Kurt Cobain

Amy Winehouse. Fotos Divulgação
A fila começou a andar e, muito rapidamente, a partir de 1968 com a morte misteriosa em sua piscina do ex-guitarrista dos Rolling Stones, Brian Jones, em julho de 1969. Em rápida sucessão, partiram, em 1970, Alan “Blind Owl” Wilson, guitarrista do Canned Heat (3 de setembro, overdose de barbitúricos, possível suicídio); Jimi Hendrix (18 de setembro, asfixia no próprio vômito, em Londres); Janis Joplin (4 de outubro, overdose de heroína num motel de LA); Jim Morrison , do The Doors (parada cardíaca em 3 de julho de 1971, como Marat, numa banheira, em Paris); Ron “Pigpen” McKernan, do Grateful Dead (8 de março de 1973, de hemorragia gastrointestinal); o artista plástico Jean-Michel Basquiat, exaltado atualmente  por uma megaexposição no CCBB do Rio (12 de agosto de 1988, de overdose de Speedball); o líder do Nirvana, Kurt Cobain (5 de abril de 1994, suicídio com espingarda); Amy Winehouse (23 de julho de 2011, envenenamento alcoólico.)

Nunca soube de algum brasileiro neste seleto clube, mas desconfiei de dois, e errei por pouco: Noel Rosa, apressado, morreu a sete meses de completar 27 anos; e Torquato Neto, -  pasmem! – suicidou-se um dia depois de completar 28 anos.

Uma discussão recente sobre o nome Janaína, que só passou a existir no Brasil depois que Leila Diniz assim batizou sua filha, gerou outra discussão sobre a morte de Leila, se aconteceu na Índia, se no Japão. Na verdade, ela voltava em 1972 de um festival de cinema na Austrália, onde ganhou o prêmio de melhor atriz pelo filme Mãos vazias, quando o voo 471 da Japan Air Lines caiu em Nova Delhi no dia 14 de junho num  desastre sem sobreviventes. Leila Diniz morreu com 27 anos.

Que eu saiba, ninguém até hoje fez essa associação. Bem-vinda – de uma maneira bem gauche - Leila Diniz, ao Clube 27!

Maria Bonita. Reprodução

Em tempo: graças à dica do fotógrafo e amigo Ricardo Beliel, incorporo à lista a baiana Maria Gomes de Oliveira – a Maria Bonita companheira de Lampião – morta em 28 de julho de 1938, quando o bando de dez cangaceiros foi atacado de surpresa e exterminado na Grota de Angicos, em Poço Redondo (Sergipe), pela polícia armada oficial, conhecida como "volante". Ela foi degolada por 'Sebastião do Facão' ainda viva, depois de baleada no abdome. Maria Bonita tinha 27 anos e antecedeu Robert Johnson no Clube.