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terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Pré-memórias da redação: Fazendo cinema na Curitiba de 1962 • Por Roberto Muggiati

Tive uma participação curiosa na filmagem de As moradas no primeiro semestre de 1962. Jornalista curitibano desde 1954 na Gazeta do Povo, passei uma temporada em Paris entre outubro de 1960 e fevereiro de 1962 como bolsista do governo francês estudando no Centre de Formation des Journalistes. De volta a Curitiba, trabalhei na Secretaria (ou Departamento) de Cultura do governo Ney Braga, sob a direção de Ênio Marques Ferreira, até o início de agosto de 1962, quando parti para uma temporada de três anos em Londres (até junho de 1965) contratado para trabalhar como Programme Assistant no Serviço Brasileiro da rádio BBC. Conheci Sylvio Back por volta de 1956-57, éramos colegas de imprensa, ele trabalhava no Diário do Paraná, onde editava um suplemento cultural chamado “Letras & Artes”, do qual eu era assíduo colaborador. O cinema era um tema importante, eu diria até dominante no suplemento. De volta a Curitiba em 1962, reatei minha amizade com o Sylvio. Encontrei-o em seu primeiro casamento e trabalhando na redação local da Última Hora, um arrojado projeto de Samuel Wainer com a edição produzida em Curitiba, impressa em São Paulo e distribuída diariamente em tempo hábil nas bancas de Curitiba. (O editor da UH paranaense era o paulista Ary de Carvalho, que elevou a venda do jornal de 6000 para 23000 exemplares diários. Depois ele fundou o jornal Zero Hora em Porto Alegre e se tornaria proprietário de O Dia do Rio de Janeiro.) 

Solteiro, eu morava em casa de meus pais, à Rua Carlos de Carvalho esquina com Francisco Rocha, e rodava toda noite pela Curitiba boêmia no carro da família, um DKW, carro popular fabricado no Brasil entre 1958 e 1967 sob licença da fábrica alemã do mesmo nome.

Senti uma diferença notável entre a Curitiba que deixei em outubro de 1960 e aquela que reencontrei em fevereiro de 1962, com a radicalização política do confronto entre direita e esquerda, que acabaria levando ao golpe militar de 1964. Sylvio Back – mesmo ganhando a vida como jornalista – começava a dedicar mais horas do seu tempo ao sonho que faria dele um dos cineastas mais profícuos e polêmicos do país. Naqueles primeiros meses de 1962 iniciou a filmagem, com uma câmera na mão e muitas ideias na cabeça, do documentário As moradas, focalizando as primeiras favelas que apareciam na periferia da cidade. À falta de equipamento adequado para efetuar travelings, encontramos uma utilidade para o DKW de meus pais.

Eu ao volante e o Sylvio empunhando a câmera debruçado perigosamente sobre a janela traseira, fazíamos pequenos takes  de filmagem, percorrendo distâncias de cinco a dez metros. Orgulho-me muito dessa participação – ainda que tosca e improvisada – no filme inaugural da bela carreira do amigo Sylvio Back.

Infelizmente, passados 62 anos, ainda não vi o produto final. Não tive acesso a um DVD de As moradas e – por inadequação técnica ou humana – nunca consegui abrir um link que me permitisse ver o filme. Mas espero um dia vê-lo e resgatar através de suas imagens o ar fresco das manhãs outonais daquela Curitiba perdida.

Escrevi o texto acima em resposta a um e-mail de Rosane Kaminski, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná, especializada na obra cinematográfica de Sylvio Back. Ela já publicou dois livros sobre os longas-metragens que ele fez quando ainda morava no Paraná e escreve atualmente sobre o primeiro filme dele, As moradas, lançado em 1964. No final da tarde quente do primeiro domingo de dezembro, abri mão não do lazer – o descanso do escritor é escrever e estou mergulhado numa matéria interminável para a revista Piauí – e concentrei minha memória naqueles seis meses ensanduichados entre dois anos de Paris e três anos de Londres – um período perdido, ma non troppo, em Curitiba, que na minha autobiografia intitulei Seis meses num DKW. Pouco antes da meia-noite, Rosane me respondeu, “exultante” com o depoimento, e presenteou-me uma cópia de As moradas digitalizada pela Cinemateca Brasileira.  Viajei no tempo ao longo daqueles dez minutos de imagens desbotadas, sentindo-me às vezes ao volante do DKW. A trilha minimalista, com os estudos para violão de Villa-Lobos tocados por Turíbio Santos – lembrando incrivelmente a cítara do húngaro Anton Karas em O terceiro homem – conferem dramaticidade ao texto despojado, isento de qualquer ilusão (“Hoje só há liberdade para morrer. Os homens nem mais soltam grunhidos perturbadores.   Toda essa longa viagem, no entanto, promete uma chegada, pois os homens se revezam e não desistem”.)

http://www.bcc.org.br/filmes/880756