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domingo, 6 de março de 2016

BRINCANDO DE ESPIÃO - O primeiro Natal do Muro de Berlim


POR ROBERTO MUGGIATI 

Berlim, inverno de 1961: o autor diante do Portão de Brandenburgo. Foto: Arquivo Pessoal


O jornalista no cenário da Guerra Fria. Ao fundo, a placa ACHTUNG! Sie verlassen jetzt WEST-BERLIN (ATENÇÃO! Você está deixando agora BERLIM OCIDENTAL). Foto: Arquivo Pessoal
E em uma ainda precária torre de vigilância (o Muro havia sido erguido apenas quatro meses antes) do lado ocidental do Portão, na Pariser Platz. Foto: Arquivo Pessoal

O filme de Spielberg Ponte dos Espiões me trouxe vivas lembranças da primeira visita a Berlim, em dezembro de 1961, quando o Muro tinha apenas quatro meses de idade. Eu diria – apelando para Shakespeare – que aquele foi o inverno do meu descontentamento. Terminara um curso de jornalismo em Paris, viajara o verão todo, vivera o sol da meia-noite na Finlândia e o sol do meio-dia na Itália e de repente, sem dinheiro, só me restava voltar para Curitiba.

"Ponte dos Espiões": Tom Hanks no papel de James Donovan,
o advogado que defende um espião soviético capturado
pelos americanos em plena Guerra Fria.
Como último recurso para ficar um pouco mais na Europa, lembrei o convite do governo alemão, feito ainda em Curitiba, antes de embarcar para a França. Reatei os contatos e, na noite de 10 de dezembro, um domingo, eu pegava um avião da BEA no aeroporto de Orly com destino à Alemanha. Depois de uma segunda-feira protocolar em Bonn, voei no começo da noite para Berlim. Aterrissei no aeroporto de Tempelhof vendo espiões por toda parte. A cidade me apavorava e ao mesmo tempo me fascinava. Imaginem uma megalópole partida ao meio: o lado ocidental, capitalista; o lado oriental, comunista. E essa metade capitalista estava incomodamente encravada em território comunista. Assim era a Berlim da época. Para tornar a divisão ainda mais concreta, os alemães orientais ergueram o Muro, na madrugada de 13 de agosto de 1961.
Madrugada de 13 de agosto de 1061:
começa a construção do Muro de Berlim.
Foto DP 
No dia anterior ao aniversário de quatro meses do Muro, fui levado por meus gentis anfitriões para posar diante do Portão de Brandenburgo. A série de fotos feita naquela terça-feira gélida, 12 de dezembro, foi distribuída para órgãos de imprensa de todo o Brasil. Uma delas mostrava o jornalista de 24 anos, representante da Gazeta do Povo, ao lado do sinistro cartaz: ACHTUNG! Sie verlassen jetzt WEST-BERLIN (ATENÇÃO! Você está deixando agora BERLIM OCIDENTAL). O Muro que eu vi de perto era uma muralha de blocos de concreto, cimentados uns sobre os outros, reforçada por cercas de arame farpado, além de 300 torres de observação, iluminação abundante, alarmes eletrônicos, centenas de cães de guarda, valas anticarro e antitanque e até arames de tropeço que disparam balas. Mais de 30.000 soldados orientais mantinham a vigilância ao longo dos 165,7 quilômetros totais — a soma do muro central (entre as duas Berlins) e das muralhas que separam Berlim Ocidental do território da Alemanha Oriental que a comprime – e oprime.
Em contraste com o frio das ruas, os alemães se mostraram muito calorosos. Além da tradição berlinense de hospitalidade, eles sabiam que sua própria sobrevivência dependia de um trabalho inteligente de relações públicas. Minha simpática personal interpreter, Ursula, levou-me um dia para almoçar num restaurante asiático. Atraiu-nos no cardápio um prato indonésio, Reistafel aos 48 temperos. O garçom disse era preciso encomendá-lo com 24 horas de antecedência. Encomendamos e voltamos lá no dia seguinte para saborear nosso sofisticado Reistafel. Às vezes eu me incorporava a um grupo de jornalistas brasileiros, também em visita oficial.
Montgomery Clift em "Julgamento em Nurembergue"

Judy Garland no mesmo filme

O Berlin Hilton em cartão postal dos anos 1960.  Então recém construído, o hotel era um centro nervoso
da Guerra Fria. Do terraço, era possível avistar os lados ocidental e oriental de Berlim.  
Uma noite fomos a um coquetel no terraço do Berlin Hilton, celebrava-se a estreia mundial do filme Julgamento em Nurembergue. Vi de perto meus ídolos Montgomery Clift e Spencer Tracy, e a musa do meu primeiro filme (O mágico de Oz), Judy Garland, uma ocasião rara: os três morreriam respectivamente cinco, seis e oito anos depois.
Curiosamente, o advogado interpretado por Tom Hanks em Ponte dos Espiões, James Donovan, foi o assistente do promotor dos EUA nos Julgamentos de Nurembergue, e o encarregado de apresentar as provas visuais. Por pouco não cruzei com James Donovan em Berlim: ele chegaria à cidade um mês depois, em fevereiro de 1962, para promover a lendária troca de espiões.
Na ilustração, o Ballhaus Resi, onde a Berlim do pós-guerra tentava recuperar o clima vintage da era dos cabarés.
A noitada mais divertida em Berlim foi no Ballhaus Resi, antigo salão de baile transformado em restaurante. O espetáculo no palco não era de humanos, mas de águas dançantes, “die schönsten Wasserspiele der Welt” — as mais bonitas do mundo. O salão imenso era todo tomado por mesas numeradas. Cada mesa era equipada com um telefone e um sistema de mensagens enviadas por “pneumáticos”: você via uma garota do seu agrado, escrevia um bilhete com o número das mesas (a sua e a dela), colocava o bilhete dentro de um cilindro e enfiava o cilindro na tubulação de ar comprimido que levava a mensagem à destinatária. (Era o autêntico “torpedo”, a expressão deve ter surgido daí...) Não só mandei, como recebi alguns torpedos: as garotas alemãs do pós-guerra já eram bastante salientes.
Era esse o clima da cidade sitiada que tentava recuperar o brilho da Berlim da década de 1920, os Anos do Cabaré. Mas o fantasma da Guerra Fria lançava uma sombra sobre tudo e sobre todos. Passados alguns dias, pedi para visitar Berlim Oriental, o “outro lado”. Não era uma descortesia, ao contrário, era tudo o que meus anfitriões queriam.
Enquanto a Berlim Ocidental – alimentada por verbas do mundo inteiro – era uma vitrine expondo as mais ricas benesses do capitalismo, Berlim Oriental era uma cidade pobre, escura e triste. Colocaram-me num ônibus de turismo que rodou uma tarde toda por Ostberlin. Foi uma visita insossa, coroada pela visita ao cemitério dos heróis soviéticos tombados na guerra contra o nazismo. Um imenso bloco de granito, que Hitler destinava ao Arco do Triunfo celebrando a vitória do Terceiro Reich, foi transformado num monumento aos gloriosos soldados vermelhos. Mostrei-me insatisfeito com a visita burocrática e meus obsequiosos anfitriões providenciaram no dia seguinte um táxi com um chofer autorizado a circular pelo lado oriental. Assim que atravessamos o famoso Checkpoint Charlie (ponto de travessia controlado pelos americanos), o chofer confraternizou demagogicamente com seus colegas orientais, oferecendo-lhes maços de cigarros. Apontava para a paisagem cinzenta e dizia: “Unterschiede! Unterschiede!” (“Veja só a diferença, o contraste!”) Após algumas voltas pela cidade, o táxi foi parar de novo no cemitério dos heróis soviéticos. (Ironicamente, 18 anos depois, visitando Berlim a convite, como editor da Manchete, repeti o mesmo roteiro com o infalível gran finale: a romaria ao cemitério dos soldados soviéticos.)
Houve ainda uma situação kafkiana em Berlim Ocidental: num centro de refugiados, entronizaram-me como uma espécie de juiz para ouvir e interrogar, com a mediação de intérpretes, um punhado de felizardos que haviam escapado do “inferno soviético.” Eram relatos cheios de horror, mas por vezes me pareciam ensaiados. Até que ponto eu podia confiar na sua sinceridade? Não passariam eles, como o chofer de táxi, de hábeis atores encenando uma farsa? No fundo, na sórdida guerra de propaganda da época, entre mortos e feridos não se salvou ninguém.
O mundo mudou, o Muro caiu, mas jamais esquecerei aqueles dias de desesperança da Guerra Fria, do tenebroso conflito entre duas ideologias que racharam o planeta ao meio, uma guerra travada no campo psicológico à sombra do terror nuclear. (Roberto Muggiati)