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quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Com Chaplin, confinamento sem crise • Por Roberto Muggiati


No apagão do som, a genialidade de Chaplin em Em busca do ouro.

Nossa dependência da tecnologia é terrível, lembrem o recente apagão do Whatsapp. Meu caso é mais modesto, mas para mim assume dimensões gigantescas. Nos últimos dias, meu computador ficou mudo, por mais que eu tentasse não consegui reinstalar o som em músicas, filmes e tudo mais. 

Estou à espera de uma alma caridosa que me socorra e faça ouvir de novo. Ou de um técnico que aceite um cheque pré-datado para o próximo 5º dia útil de novembro.

Desde que a Manchete faliu, continuei trabalhando em casa, fazendo colaborações para a imprensa e traduções. Com o trabalho escasso, conheci a liberdade ilimitada de escrever de graça – o fato é que há 67 anos, desde que comecei a trabalhar na Gazeta do Povo de Curitiba, em 15 de março de 1954, não me afastei um dia sequer do teclado. Meu sonho é bater o recorde do Henrique Nicolini, um redator esportivo de São Paulo: ao morrer, aos 91 anos em 2017, ele detinha o Recorde Guinness de jornalista mais longevo na profissão no mundo, com 70 anos de batente. Para isso, basta eu viver mais uns quatro anos – minha primeira matéria assinada é de 1955, uma entrevista exclusiva com Portinari quando ele esboçava no seu ateliê do Leme o mural Guerra e Paz para o edifício da ONU em Nova York.

A imagem original em P&B

E a mesma cena colorizada


Voltemos ao ponto: ao fim de cada jornada de trabalho, eu refresco a cabeça vendo um filme no computador (meu toca-DVDs e TV ainda estão num guarda-móveis com a TV desde a diáspora de Botafogo para Laranjeiras há mais de um ano.) Vejo muita coisa boa pelo YouTube. Sem som fiquei ao léu. Mas, como dizia o grande filósofo greco-carcamano Frank Platão Zappa, “a necessidade é a mãe da invenção” e lembrei de repente que existem filmes fabulosos sem som. (Certos críticos radicais defendem que o único cinema válido é o mudo.) Charles Chaplin, por exemplo. Ao escrever estas linhas, estou revendo o maravilhoso A corrida do ouro, de 1925. Por mais vezes que tenha visto esse clássico, sempre topo com a novidade de um detalhe ou outro. O filme é disponibilizado ainda na versão colorizada, dei uma espiada para conferir (comparem as versões da mesma cena em preto-e-branco e colorizada). A tentativa de colorir clássicos em p&b não deu em nada – aliás, a fotografia é uma arte que se afirma no preto e branco, com a sua linguagem própria, sem a menor pretensão de “imitar” a realidade. 

Em busca do ouro: o happy end.


Só Chaplin para fazer da fome um tema cômico. E o happy end selado por um beijo, a mocinha e o milionário travestido em vagabundo. No filme seguinte, Luzes da cidade, o final é o oposto: a mocinha que volta a enxergar descobre que o seu sonhado milionário dos tempos de cegueira é um vagabundo. O gênio de Chaplin termina o filme em aberto.


 Clouzot descobriu o Danúbio Azul 15 anos antes de Kubrick


 
Em 2001, a coreografia da nave no ritmo da trilha sonora que O salário do medo usou.
Depois que Stanley Kubrick mostrou o acoplamento de uma nave espacial com uma estação orbital ao som do Danúbio azul em 2001: uma odisseia no espaço, nunca ninguém ouviu mais a velha valsa de Strauss da mesma maneira. Essa é a marca do gênio.



A dança de Vera Amado Clouzot

E o bilhete do metrô de Paris


Mas a coisa não é bem assim: outro cineasta já tinha dançado esta valsa quinze antes do Kubrick: Henri-Georges Clouzot, em O salário do medo, de 1953. O filme se passa num buraco da Venezuela, onde reina a miséria e um punhado de europeus desgarrados passa fome sonhando com o dinheiro da passagem de avião para Paris. Uma catástrofe traz a oportunidade para quatro eleitos numa missão suicida. Duas duplas têm de dirigir seu caminhão carregado de nitroglicerina até o local do incêndio de um lençol petrolífero ao longo de estradas de terra batida que atravessam a selva. A dupla que vai à frente explode, a dupla que segue atrás atola no lago de petróleo que vaza dos oleodutos no local da explosão. Um dos pilotos tem a perna esmigalhada na tentativa de desencalhar o caminhão. O sobrevivente, Yves Montand, chega ao destino abraçado na boleia ao companheiro moribundo e  é recebido como herói com sua preciosa carga de nitroglicerina. Mais spoilers: grana no bolso, eufórico ao volante do caminhão vazio, Montand volta à cidade onde deixou a namorada (a brasileira Vera Amado Clouzot). 

Em shots alternados, Clouzot mostra Vera valsando na taverna e Yves valsando com o caminhão nas curvas da montanha. De repente, a mocinha cai desmaiada e o chofer se projeta no abismo. Na imagem final (veja no link), em meio ao caminhão em chamas, um detalhe de Montand morto: um bilhete do metrô de Paris que guardava como fetiche da cidade amada. Tudo isso ao som de... Danúbio Azul...

https://www.youtube.com/watch?v=ZkhKRT8tc-o