“Esperança” foi a palavra da virada de ano, proferida de boca cheia no discurso vazio de comunicadores e influencers. Pareciam todos uma reencarnação do Dr. Pangloss, o mestre de Cândido (1759), o Otimista, a novela filosófica de Voltaire que inspirou as distopias 1984 e Admirável mundo novo e os romances de Machado de Assis Memórias póstumas de Braz Cubas e Quincas Borba. Pangloss via o mundo com óculos de lentes cor-de-rosa e recitava a eterna ladainha “tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis”, contrariando a brutal evidência dos fatos. Recrutado à força pelas tropas búlgaras, Cândido testemunha o massacre da Guerra dos Sete Anos. Foge e reencontra Pangloss, envelhecido e sifilítico, que o informa da suposta morte da mulher de Cândido, Cunegundes, estuprada por soldados búlgaros.
Chegam a Lisboa no dia do terremoto e são vítimas de um auto de fé em que Pangloss é aparentemente enforcado. Cândido reencontra Cunegundes, amante de um Grande Inquisidor e de um judeu rico. Mata os dois homens e foge com a mulher. Depois de incontáveis atribulações que levam o casal aos lugares mais remotos – incluindo Buenos Aires e Paraguai – Cândido finalmente encontra uma paz relativa com a mulher, em ambiente bucólico. “Devemos cultivar o nosso jardim,” foi o lema ele encontrou em contraposição ao “melhor dos mundos” de Pangloss.
Para se ter uma ideia da universalidade da novela de Voltaire, ela teve uma adaptação para o cinema no Brasil, Candinho – dirigido e estrelado por Mazzaropi, com o sambista do Brás Adoniram Barbosa numa genial interpretação de Pangloss, o Dr. Pancrácio. O filme inspirou em 2016 a telenovela de Walcyr Carrasco Êta mundo bom.
Aproveito essa discussão para transmitir o recado que recebi de uma estudiosa das mulheres da beat generation (Larissa, sergipana. 25 anos). Vejam a mensagem do velho William Burroughs, que considero pontualíssima no momento que vivemos. Nessa altura do campeonato, só posso recomendar: “Guenta aí, parça!”
“Você vai ter de aprender a existir sem religião, sem país, sem aliados. Você vai ter de aprender a viver sozinho em silêncio.”