quarta-feira, 29 de julho de 2020

Agosto, 2000 - E a Manchete faliu - 20 anos depois, um relato de quem esteve no olho do furacão

por Jussara Razzé (*)
Às vésperas da falência da Bloch, o Departamento Jurídico era, por motivos óbvios, o centro nervoso da empresa. Tensão, decepção, preocupação quanto ao futuro de todos e de cada um eram as sensações que nos acompanhavam de dia e nos tiravam o sono à noite.

Em 1993, eu já vivera de perto uma prévia desse drama. Era, então, secretária de Adolpho Bloch durante o período de retomada da Rede Manchete após uma das vendas fracassadas. Naquela ocasião, o futuro da empresa parecia comprometido, mas nada se comparava com aqueles últimos meses de sobrevida, às vésperas de agosto de 2000. Era como se um trem, sem freio, descesse uma montanha para um descarrilamento anunciado. Cobranças se sucediam, rolavam centenas de ações na Justiça, dívidas que se acumulavam, processos trabalhistas, impostos e tributos em
atraso crônico.

Seria exagero dizer que oficiais de Justiça faziam fila na porta do Russell, mas que eram figurinhas fáceis, cotidianas e insistentes na recepção do prédio lá isso eram. Conhecíamos todos eles pelo nome, tal a freqüência das visitas. No centro do furacão, eu e meus colegas do departamento, que sabíamos da gravidade da situação muito mais do que a grande maioria dos funcionários, precisávamos de um jogo de cintura extra. Fora das salas do jurídico, todos, claro, tinham noção de que a vaca estava indo para o brejo. O que sequer imaginavam é que o brejo estava logo ali.

Quem trabalhava naquela “sala da crise”, tal como o cinema conta que existe na Casa Branca, vivia uma situação desagradável. Era natural que mantivéssemos sigilo em torno de uma rotina que envolvia procedimentos legais, mas ao mesmo tempo ficávamos embaraçados diante das perguntas dos colegas. No meu caso, se já estava aflita com a perspectiva próxima de perder o emprego e de já saber que teria que lutar anos na justiça para receber indenizações,salários atrasados, FGTS etc, a angústia aumentava ao ver nos olhos dos funcionários que pediam informações certo desejo de ouvir uma notícia boa em meio àquele caos. Algo que lhes desse um mínimo de esperança. No fundo, eu sabia que não era esperança o que almejavam, e sim um milagre.

Quando o desastre já parecia mais próximo, até o bate-papo depois do expediente no bar do seu Manoel, que anos antes ganhou o apelido de Color Bar - em alusão às barras cromáticas que orientam ajustes de cores no início das transmissões de TV- mesmo regado a chope, já não era tão animado quanto antes. Lá, normalmente, jogava-se conversa fora. Na reta final, cada um de nós, em função dos problemas dos últimos meses quando fora instituído o precário pagamento através de vales, já com aperto financeiro, começava a fazer planos e contatos para dar a partida na difícil tarefa de tentar procurar emprego em um mercado a cada dia mais restrito.

Nas últimas semanas, quando cruzava os corredores da Bloch ainda movimentados e com a agitação característica das revistas, como se fosse um Titanic onde a orquestra tocava a poucos metros do iceberg, eu não podia deixar de pensar que a qualquer momento luzes se apagariam, elevadores seriam desligados, mesas e corações esvaziados. Ao solicitar a autofalência, a empresa alegou textualmente em correspondência enviada à Justiça que as dificuldades surgiram no início dos anos 1990 “quando começaram a repercutir no meio empresarial brasileiro os graves problemas advindos de cinco planos econômicos, cinco moedas diferentes e de uma inflação que chegou a 89% mensais”. (...) “Com o alto custo das operações, o universo empresarial brasileiro precisou recorrer ao sistema bancário, uns mais outros menos, dentro da normalidade tradicional do mercado. Assim, em 1991, a Rede Manchete de Televisão Ltda. obtivera um empréstimo de 3 milhões de dólares no Banco do
Brasil. Por exigência da diretoria do banco, a transação teve Bloch Editores S.A. como avalista” (...). “Foi o início do perverso processo que levaria a empresa a enfrentar a situação em que agora se encontra. Não se tratava de uma dificuldade de Bloch Editores S.A., mas da TV Manchete Ltda., o que levou Adolpho Bloch a vendê-la no ano seguinte”, sugere o documento, que aponta, mais adiante, outras dificuldades extremas como conseqüência de uma das tentativas de venda da Rede Manchete, transação que acabou cancelada pela justiça levando a TV a ser devolvida à Bloch com novas dívidas e compromissos não cumpridos, e da explosão dos juros sobre os empréstimos e dívidas como mais um subproduto das mal-sucedidas operações de transferência dos ativos e passivos da TV. A tempestade que atingiu a TV finalmente arrastou a Bloch. A carta enviada à Justiça referia-se, ainda, às duas mil famílias vinculadas à editora. De resto, as grandes vítimas de todo esse imbróglio.

No Departamento Fotográfico,
os sinais do naufrágio da Bloch. 
No último dia, caminhando em direção ao elevador, pela derradeira vez, em meio a colegas que se apressavam em retirar objetos pessoais antes que o lacre da lei nas portas tornasse a falência uma cruel realidade, pensei na vida que passei lá dentro. Foram dezesseis anos na editora, em vários setores. Meu primeiro contato com a Bloch Editores deu-se em 1983, quando trabalhava no Departamento Pessoal do Ilha Porchat Club, em São Vicente, São Paulo. O clube era um dos vários locais no país que, em parceria com uma das publicações da editora, a revista Carinho, promovia todo ano o Concurso Garota Carinho, destinado a escolher jovens aspirantes a modelo, interessadas em sair na capa da revista que já tinha lançado para a fama ninguém menos do que Xuxa.

Além desse evento, o clube realizava, entre outros, um baile pré-carnavalesco, chamado Uma Noite Nos Mares do Sul, que recebia das revistas Manchete e Fatos&Fotos uma ampla cobertura. Por conta dessa parceria tradicional o presidente do clube, Odárcio Ducci tinha ótima relação com alguns diretores da Bloch, entre os quais o jornalista José Rodolpho Câmara. Quando pedi demissão e informei que iria morar no Rio, Odárcio imediatamente me recomendou, por meio de uma caprichadíssima carta de referência, à diretora da revista Carinho, Marília Campos. Assim teve início, em maio de 1984, minha relação com a empresa onde trabalhei durante dezesseis anos: até o seu final, com a decretação da falência em agosto de 2000, e mais dois anos trabalhando para a massa falida, junto com um grupo de jornalistas que conseguiu, com autorização judicial, continuar editando algumas das revistas do grupo, como Manchete, Pais&Filhos, Ele&Ela e outras.

Curiosamente, ao lado de colegas que trabalharam na extinta editora, ainda mantive um vínculo com a revista Manchete. Em 2002, o empresário Marcos Dvoskin arrematou em leilão vários títulos de revistas da Bloch, entre os quais o da Manchete. Dvoskin resolveu lançar uma edição especial com a cobertura do carnaval, apostando em um público que durante anos se acostumou a ver na revista uma excepcional cobertura da folia. Para isso, por meio do editor Lincoln Martins, arregimentou um grupo de ex-funcionários da Bloch, entre repórteres, fotógrafos e coordenadores acostumados àquele trabalho. Entre 2002 e 2006, botamos o bloco da Manchete na avenida, tal como nos velhos tempos. Uma das compensações pelo árduo trabalho foi descobrir que a revista permanecia na memória afetiva de muita gente. Não eram poucos os que nos cumprimentavam e incentivavam. E aquelas edições especiais eram as primeiras a chegar às bancas, sempre na Quarta-Feira de Cinzas.

Uma vez por ano, Manchete voltava a brilhar, como uma alegoria do passado, em um campo onde já fora imbatível: sob o ritmo e as luzes do Sambódromo carioca.




(*) Relato publicado no livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" (Desiderata) lançado em 2008. 
Vinte anos depois da falência, a maioria dos ex-funcionários da Bloch ainda luta junto à Massa Falida da Bloch Editores para receber a correção monetária devida nas suas indenizações, enquanto outros ainda aguardam a conclusão dos seus processos. 

3 comentários:

J.A.Barros disse...

Jussara Razzé, foi a testemunha presente nessa triste história do fim de uma Editora criada por um empresário, gráfico, que ousado e sem medo lançou em 1952 a revista Manchete. Tudo que a Jussara Razzé está contando, é a pura verdade do que aconteceu de tão dramático que foi o fim daquela Editora, que fez uma revolução gráfica no lançamento da revista Manchete. Imagino, os momentos de tristeza e dor da Jussara Razzé em ver desmoronar toda aquela empresa e ter de participar dessa queda daquele "império" gráfico.

J.A.Barros disse...

Esse Empresário gráfico, que editou a revista Manchete era Adolpho Bloch. Um imigrante que viera da Ucrânia, Kiev, com toda a sua família. Aqui no Rio, criou uma pequena gráfica, que depois de muito trabalho conseguiu se firmar no mercado. Conta Wilson Passos, o antigo Chefe de Arte da Gráfica, que após fundar e lançar a Manchete no mercado editorial, Adolpho Bloch, tinha determinado que se a revista não conseguisse anúncio, já na sua terceira tiragem ele iria fecha–la. Pois bem, na sua terceira edição, entrou um anúncio de meia página, dando início assim a continuidade e o sucesso da revista Manchete. Wilson Passos, engenheiro aeronáutico, atendendo a um anúncio de emprego no jornal, da Editora Bloch, se apresentou e admitido passou a ser um dos funcionários mais antigos da Editora. Mais antigo do que a própria revista, porque foi um dos seus fundadores.

Administrador disse...


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Resumindo, a Jussara falou tudo, a luta foi e é grande. Uma luta de Davi e Golias.
José Carlos