Vejam só, meu bom amigo, Sérgio Ricardo, grande violonista, compositor, escritor, artista plástico e gráfico, cineasta, 88 anos no próximo 18 de junho, passou por maus pedaços mas já está dando a volta por cima. Lembro-me do nosso último encontro, quando escrevi um perfil dele no “Gente e Histórias” da revista Contigo em dezembro de 2010, reproduzido aqui.
Sérgio Ricardo teve seu momento maior num protesto indignado contra a intolerância agressiva da plateia do Festival de MPB da Record de 1967 em São Paulo. O sucesso destes festivais – e todo o subproduto deles em fama e fortuna – criou um formato padrão de “música de festival” – cito alguns exemplos, Apareceu a Margarida, Arrastão, Ponteio, nada contra – mas Sérgio Ricardo queria transmitir um pouco mais de massa crítica nessa história, compôs uma música chamada Beto bom de bola, uma crítica à manipulação dos craques de futebol.
Impedido de dar o seu recado, pelo ruído das vaias, Sérgio Ricardo quebrou o violão contra uma caixa de som e o jogou à plateia. Isso aconteceu na noite da finalíssima, em 21 de outubro de 1967. Doze dias antes, na selva da Bolívia, morria Che Guevara. No dia seguinte à explosão de Sérgio Ricardo, o jornal Notícias Populares, mestre das manchetes de duplo sentido, estampava na primeira página em letras garrafais: VIOLADA EM PLENO AUDITÓRIO. Vejam o vídeo: https://musicaemprosa.wordpress.com/2019/01/16/beto-bom-de-bola-vaias-e-violao-quebrado-no-festival-da-record-1967/
Epílogo
O tempo, em desabalada carreira a partir daí, provou que Sérgio Ricardo tinha razão. O choque ideológico concentrou-se nos festivais em 1968, na tumultuada apresentação de Caetano Veloso em São Paulo com o polêmico E proibido proibir, seguido de vaias e discurso puxado a Fernando Pessoa e, logo depois, no duelo final no Maracanãzinho entre Sabiá e Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores), de Geraldo Vandré. Não foi o pronunciamento ingênuo do deputado Márcio Moreira Alves no Congresso Nacional em Brasília, concitando as moças de Agulhas Negras a não dançarem com os cadetes da Academia Militar no baile do Sete de Setembro, que causou a decretação do AI-5, mas sim a adesão popular à música de Vandré, que era uma clara conclamação à luta armada contra a ditadura militar: “Vem, vamos embora que esperar não é saber./Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
Vocês que nem eram nascidos na época vejam e julguem por estas imagens da apresentação de Vandré no Maracanãzinho
https://www.youtube.com/watch?v=wkEGNgib2Yw
Como disse então sabiamente Geraldo Vandré, “a vida não se resume em festivais.” Da Viola enluarada dos irmãos Valle e do violão quebrado de Sérgio Ricardo, se passaram 53 anos, iniciados pela guerra sangrenta dos Anos de Chumbo. Apesar da ilusória volta à democracia em 1985, o brasileiro – mesmo nesta hora em que se vê confrontado com a morte na trágica pandemia do coronavírus, continua intolerante. Por isso mesmo, invoco criaturas destemidas como Sérgio Ricardo para quebrarmos todos os violões do mundo contra a intransigência e para resistirmos à ignorância e seguirmos em frente, movidos pelas poucas certezas que uma vida ética e solidária sempre nos forneceu.
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