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sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Em 2012, a família Boghici posou para a Contigo em tempos felizes. Dez anos depois, o colecionador Jean Boghici, que morreu em 2015, é poupado de um drama cruel. Segundo a polícia, sua viúva foi vítima de roubo milionário planejado pela própria filha.

Uma das fotos da matéria da Contigo: Geneviève, Jean Boghici e Sabine Boghici.
 A foto é de Márcio Nunes, reproduzida da edição  de 20 de setembro de 2012.


por José Esmeraldo Gonçalves 

No começo dos anos 2000, a Contigo passou por uma reforma editorial que qualificou a revista como uma publicação que, além da cobertura de TV, seu campo de ação original, abria espaço para celebridades de todas as áreas: escritores, atletas, compositores, músicos, figuras da sociedade etc. Por volta de 2009, foi criada na revista uma rubrica chamada Gente & História destinada a entrevistas com personalidades selecionadas, era um espécie de espaço premium da Contigo. Como entrevistadores, a revista convidava, geralmente, escritores conhecidos.


A abertura da entrevista de Jean Boghici a Roberto Muggiati 
reproduzida da Contigo.
.

Nesse trecho, a matéria cita Sabine Boghici


Em 2012, como editor de redação na sucursal do Rio de Janeiro, chamei o jornalista e escritor Roberto Muggiati para colaborar na seção Gente & História. Uma das várias entrevistas que ele fez foi com o Jean Boghici, que foi fotografado por Márcio Nunes. 

Colecionador e marchand, um dos maiores do Brasil, ele estava em evidência por um motivo acidental. No dia 13 de agosto, seu apartamento, uma cobertura na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, sofrera um incêndio que consumiu parte do imóvel. Ninguém se feriu, mas algumas obras de arte se perderam, entre as mais importantes, as telas Samba, de Di Cavalcanti, e Floresta Tropical, de Guignard. O colecionador ficou desolado. Mas a dor maior, como ele confessou à Contigo, foi a morte da Pretinha, sua gata de estimação. 

Um dos quadros recuperados: O Sol Poente, de Tarsila do Amaral. 

Dez anos depois daquele incêndio, o sobrenome Boghici volta ao noticiário em um rumorosa caso policial. A Operação Sol Poeta da Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa da Terceira Idade investiga um golpe milionário que teria sido comandado pela filha de Boghici, Sabine Boghici, e executado por ela e  comparsas contra a viúva do colecionador, Geneviève Boghici, de 82 anos. Estima-se que o roubo somou mais de R$ 700 milhões. 

O golpe começou em 2020. A viúva era mantida no apartamento, em cárcere privado, enquanto era ameaçada e extorquida pela quadrilha, que vendia as valiosas obras de arte e a obrigava a transferências milionárias. Foram roubados 16 quadros, joias e R$ 9 milhões em dinheiro. A polícia prendeu Sabine Borghici e os cumplíces Rosa Stanesco, a “Mãe Valéria de Oxóssi”, Gabriel Nicolau Traslaviña Hafliger, filho de Rosa, Jacqueline Stanesco, prima de Rosa e Diana; permaneciam foragidos Slavko Vuletic, pai de Diana e padrasto da Rosa, e Diana Rosa Stanesco Vuletic, meia-irmã de Rosa. 

O golpe planejado por Sabine, segundo as investigações, começou quando, em ação combinada, a mãe dela foi abordada por uma mulher (que seria, segundo a polícia, Diana Stanesco), que se apresentou como vidente e lhe disse que Sabine estaria doente e não demoraria a morrer. Só escaparia caso fosse realizado um urgente "tratamento espiritual". Sabine convenceu a mãe a pagar pelo tratamento e, em apenas 13 dias, Geneviève tranferiu aos criminosos mais de 5 milhões de reais. Quando desconficou do golpe, a mãe de Sabine foi isolada - a quarentena determinada em função da pandemia de Covid ajudou a disfarçar o crime - e os funcionários da casa foram dispensados. Abriu-se, então, a oportunidade de roubo progressivo do patrimônio da idosa. 

Do total de 16 quadros roubados, até agora apenas três foram recuperados, em São Paulo, e outros dois localizados em Buenos Aires. 

Segundo a polícia, Rosa Stanesco Nicolau, a “Mãe Valéria de Oxóssi”, chegou a  mandar Sabine Boghici, que seria sua namorada, a matar a mãe. Ainda de acordo com as investigações, os golpistas levavam os quadro sob a alegação de que precisavam ser "rezados". 

Jean Boghici, que morreu em 2015, aos 87 anos, foi poupado do terrível e cruel drama familiar.

 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Bibi Ferreira (1922-2019) - Quando a Contigo! celebrou o talento da grande dama do teatro

Revista Contigo!/Foto de Renata Xavier/Reprodução

por José Esmeraldo Gonçalves

Em 2011, a Contigo! homenageou Bibi Ferreira no Teatro Poeira, em Botafogo. A noite era do 5° Prêmio Contigo de Teatro, mas se transformou em uma celebração do talento e da trajetória de Bibi.

A reverência da classe artística, no momento em que a eterna dama do teatro subiu ao palco, deu à fotógrafa Renata Xavier a oportunidade de registrar a imagem mais sugestiva e emocionante, aquela que abriu a edição especial da revista. Aos 89 anos, Bibi permanecia ativa com atriz e cantora, seduzindo todas as gerações. No palco, quando os aplausos cessaram, ela falou sobre a carreira, os momentos marcantes, os obstáculos e a força para superá-los.

Tribuna da Imprensa - 1973 - Reprodução

Enquanto Bibi ecoava em cada frase seu amor pelo teatro, rebobinei algumas lembranças dos encontros que, como repórter, tive com ela. Em 1974, cobri para a Tribuna da Imprensa, os ensaios do espetáculo "Brasileiro, Profissão Esperança", no Canecão, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, que Bibi dirigiu. Com muita firmeza, mas sem perder a serenidade, ela às vezes interrompia a cantora e o ator. Não lhes dizia didaticamente o que fazer. Mais parecia atrair Clara e Gracindo para a sua proposta cênica sem lhes tirar o espaço próprio de criação. Lembro que havia uma preocupação no ar: como dar ao espetáculo o clima intimista que as canções e o roteiro pediam em espaços tão vastos como o palco e a platéia do Canecão? (*). Durante os ensaios, Bibi observava constantemente a iluminação. Ali estava precisamente um dos seus segredos. A luz que incidia em Paulo Gracindo e Clara Nunes, projetada sobre um fundo de palco negro e vazio, dava ao público a sensação de "viajar" a uma pequena boate de Copacabana dos anos 1950, ouvindo "Ninguém me ama", "A noite do meu bem", "Fim de caso" e outras canções que se alternavam com o texto de Paulo Pontes. Acho que aquele "Brasileiro Profissão Esperança, sob a direção de Bibi, poderia ser levado até ao Maracanã que não perderia o clima.

Em 1975, no Teatro Tereza Rachel, dessa vez como espectador, reencontrei Bibi como a Joana, amante de Jasão, o casal que pontificava a tragédia urbana ambientada na favela carioca. Era "Gota d'água", escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes. Sob ameaça da censura em plena ditadura, a peça só estreou porque os autores negociaram alguns cortes. A "tesoura" não teve o poder de conter o impacto da montagem. Ao fim, o público deixava o teatro ainda sob choque.

No ano seguinte, 1976, fui entrevistá-la para a Fatos & Fotos, em Copacabana, em um apartamento na Barata Ribeiro, se não me engano, onde Bibi morava com Paulo Pontes e vivia um momento delicado. O dramaturgo lutava contra um câncer. Após uma breve separação, a atriz havia voltado para o companheiro a quem apoiou até o fim. Paulo Pontes morreu no fim de dezembro daquele mesmo ano. Ali era a Bibi vivendo seu drama da vida real.

Prêmio Contigo! de Teatro homenageia Bibi Ferreira. Na foto de Dario Zalis, Danielle Winits,
José Mayer, Sophie Charlotte, José  Esmeraldo (então chefe de redação da revista) e Lília Cabral 

Reprodução/Contigo!

Ao final daquele Prêmio Contigo, enquanto os fotógrafos se preparavam para fazer a foto de capa, Sergio Zalis, diretor da revista, literalmente me levou a subir ao palco, onde me vi junto a Bibi Ferreira, Danielle Winits, José Mayer, Sophie Charlotte e Lilia Cabral. Eu não sabia, mas Sergio queria aquela foto para ilustrar o editorial que ele escrevia para a seção Carta, a "conversa com o leitor" da Contigo!. Dario Zalis fotografou.

Na hora foi um surpresa. Hoje, junto às pequenas lembranças da grande Bibi Ferreira, tenho  a imagem do grupo onde só eu destoo como um desses privilégios que a profissão proporcionou.

(*) Bibi Ferreira dirigiu também no Canecão "Brasileiro, Profissão Esperança" , com Ítalo Rossi e Maria Bethânia. Existe um DVD gravado ao vivo em Porto Alegre, com a atriz fazendo dupla com Gracindo Jr. no mesmo espetáculo.

domingo, 23 de dezembro de 2018

Editora Caras encerra versão impressa da Contigo! Revista permanecerá on line

2018 respira por aparelhos e, quase no fim, anuncia que a Editora Caras, atual dona do título “Contigo!”, vai encerrar a partir de janeiro de 2019 a versão impressa da revista de celebridades que herdou da Abril.

A Contigo! viveu uma fase de brilho nos anos 2000, com extraordinário crescimento em circulação e número de páginas de anúncios, após reformulação e reposicionamento que a levaram a conquistar um público de maior poder aquisitivo.

Nesse período, passou a disputar espaço com a Caras e incomodou a concorrente. Em 2004, a Contigo! ganhou Prêmio Caboré na categoria Veículo de Comunicação Mídia Impressa. Foi o reconhecimento do mercado à requalificação da revista. Sobre a importância do Caboré, basta dizer que em 2003 a Veja foi premiada e, em 2004, foi a vez do Estadão, em 2001, da Folha de São Paulo.

A força da Contigo! estava nas matérias exclusivas. A revista não se limitava a reproduzir assuntos que já circulavam na internet e nas concorrentes e oferecia aos leitores conteúdo único. Mostrou que jornalismo de entretenimento não deve abrir mão das ferramentas básicas do jornalismo. Contigo! levou ao segmento de celebridades um rigor editorial ancorado em qualidade, notícias, apuração correta, checagem, texto preciso e fotos reveladoras.

A crise da Abril, que se intensificou a partir de 2013 junto com uma certa anemia editorial, encurralou a  Contigo!, que acabou repassada para a Editora Caras. Sob nova direção, foi ainda mais descaracterizada (tornou-se uma sub-Caras), pouco acrescentando ao atacado de notícias dos demais veículos impressos ou digitais, e trocou a periodicidade de semanal para mensal, com claro sinal de esvaziamento.

Sem oferecer boa alternativa, foi dispensada pelos leitores e vencida pelos novos modelos publicitários e pela forte concorrência dos sites e redes sociais.

A Editora Caras anuncia que investirá na versão on line da Contigo! 

Contigo! chegou às bancas em 2 de outubro de 1963. Pouco mais de 55 anos depois vai encarar uma prova de sobrevivência: resistir fora do papel.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Inventor de si - Carlos Heitor Cony comemora hoje 88 anos


Em novembro de 2008, por ocasião do lançamento da coletânea "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" (Desiderata), Cony e os demais autores revisitaram o prédio onde funcionou a Bloch Editores, na rua do Russel. O edifício estava fechado, empoeirado, uma espécie de casa-fantasma desde a falência da editora, em 2000. O motivo da visita ao local - cenário do livro que conta a história não-oficial da Manchete, Fatos & Fotos, Amiga, EleEla etc, revela bastidores de reportagens e focaliza personagens que fizeram nas história nas revistas da Bloch - era fotografar os autores para divulgação do lançamento. Mas em meio às poses formais, o fotógrafo J.Egberto flagrou Cony tentado ver o passado através do portal de vidro, vislumbrando o hall do prédio onde tantas vezes passou a caminho da redação. O escritor percebeu que o momento nostálgico estava registrado e sorriu para o fotógrafo. 


Carlos Heitor Cony. Foto de J. Egberto

Não passa um dia sem que o leitor, ouvinte ou telespectador tope com uma opinião de Carlos Heitor Cony na mídia. Aos 88 anos e com 40 livros publicados, contador de histórias compulsivo, é jornalista, cronista, escritor, pintor bissexto, pianista idem e “imortal”

por ROBERTO MUGGIATI (texto especial para a revista Contigo, publicado na seção Gente & Histórias)
O Cony salvou a minha vida. Ou, pelo menos, minha carreira. Em 1970, incorri na ira do Adolpho Bloch porque deixei passar um texto do Magalhães Jr que dava JK como nascido em 1900. O ex-presidente — amigo do peito do dono da Manchete — se dizia nascido em 1902. Adolpho queria demitir sumariamente a mim e ao Magalhães. Cony, que eu mal conhecia, veio em meu socorro: “Muggiati, mude sua mesa, esconda-se atrás de uma coluna.” As pilastras de mármore da redação da Manchete ofereciam amplo refúgio. Escapei assim do olho do Adolpho (e da rua) e continuei no prédio do Russell para me tornar o mais duradouro diretor da revista Manchete. E, ironicamente, para me tornar o “chefe” do Cony. Antes disso, fui chefiado por ele na redação de EleEla, revista mensal “masculina” — um oásis de paz em meio às outras redações, sempre à beira de um ataque de nervos. Não tínhamos nem a angústia de procurar mulheres nuas maravilhosas para esgotar cada edição: a censura só deixava publicar mulheres em biquínis largos. Vivíamos uma bela rotina: às cinco e meia Cony fechava as cortinas da redação e lotava seu carro de caronas para Copacabana, com direito a uma parada no Chuvisco do Leme para comer doces. Foi nos intervalos de ócio da EleEla que Cony escreveu seu romance mais transgressor, Pilatos. Foi lá que comecei meu Rock: o grito e o mito, cujo título ecoava O ato e o fato, o livro de Cony que foi o primeiro berro de protesto contra a ditadura.
Aquela dolce vita não podia durar. E voltamos à rotina das crises e demissões. Cony logo se tornou a Madre Teresa dos demitidos. As demissões na Bloch vinham em ondas, como os pogroms dos cossacos na Rússia, pogroms que a família Bloch sofreu, antes de escapar para o Brasil. O alerta geral nas redações era: “O passaralho está voando!” Cony conseguiu salvar 90% dos demitidos. Uma bela ação humanitária para quem se professa desencantado do mundo. Em seu último livro, Eu, aos pedaços, ele reitera: “Sou contra a exata compreensão dos meus direitos de cidadão e contra o impostergável dever de solidariedade.” No fundo, Cony se envergonha de ser um homem bom.
Volto a ficar cara a cara com Carlos Heitor quarenta anos depois que nos conhecemos. Apesar de insistir nos últimos vinte anos em se dizer “terminal”, continua com a saúde firme. Só foi levemente prejudicado recentemente por um desgaste na cabeça do fêmur. Implantaram-lhe um pino de titânio e hoje nos aeroportos e em outros locais com detetores de metais o Cony é uma festa, BIP! BIP! BIP! sem parar. Aliás, a palavra “aeroporto” lembra a Cony outra deficiência sua, que moldou muitos aspectos de sua vida:
— Não sei se você reparou, eu falo areoporto, nunca consegui pronunciar corretamente a palavra. Esta e outras.
Como o monarca de O discurso do rei, procurou até um terapeuta, o fonoaudiólogo Pedro Bloch, primo do Adolpho. Cony explica:
— Fui mudo até os cinco anos, Não dizia nada. Também, não tinha nada para dizer. Era uma criança que vivia debaixo da mesa, vendo o mundo como o Tom e o Jerry, vendo os personagens humanos de desenhos animados só da cintura para baixo. Não tinha vontade nem necessidade de falar.
Dois dias depois, vou com Cony ao chá das quintas-feiras na Academia Brasileira de Letras. (ele é “imortal” desde 2000.)  Falante e cordial, oferece um belo contraste ao menino calado foi outrora.
Nos primeiros tempos de escola, com seu mutismo e as palavras tartamudeadas, Cony sofreu a perseguição dos colegas, aquilo que hoje se cataloga como “bullying”. E aí estaria a explicação para outro comportamento seu. Todo jornalista que se preza odeia o patrão. Cony foi quase sempre “o amigo do Rei”. Particularmente com Paulo Bittencourt no Correio da Manhã e com Adolpho Bloch na Manchete. Ele me diz que sua intimidade com o poder foi uma compensação pelos traumas e perseguições dos tempos escolares.
Mas Cony precisaria buscar compensações bem maiores pelo fato de não ser o verdadeiro Carlos Heitor Cony. Trata-se de uma fantasia que ele alimenta há muitos anos, mas que, desta vez, me garante, é um fato incontestável. Aos dois meses de idade, aconchegado no berço na casa de Lins de Vasconcelos — bairro carioca onde nasceu — ele vive a sua experiência transcendental: é levado por uma cigana. Sua mãe saiu de casa e deixou a irmã para cuidar do bebê. Duas ciganas batem à porta, querem ler a sorte da tia solteira de Cony, ela se recusa, quando pedem um copo de água a tia não recusa. As ciganas entram na casa, uma distrai a tia, a outra faz a troca dos bebês. Quando a mãe volta e vai ver o bebê, grita espantada: ‘Mas esse não é o meu filho!’ O pai é chamado às pressas, o desespero é geral, mas não há nada a fazer. Sequer foi registrado boletim de ocorrência. Muito sério, ele me garante que “é tudo verdade.” Não é difícil perceber traços de cigano no rosto de Cony, descendente de franceses de origem marroquina.
Outra decepção traumatiza o menino aos doze anos. Seminarista no convento de São José, no Rio Comprido, é um dos doze meninos escolhidos para a cerimônia de lava-pés na Semana Santa. Seu pai é redator do Jornal do Brasil e manda o fotógrafo do jornal, Ibrahim Sued, fotografar a cerimônia. A foto do pé de Cony beijado pelo cardeal sai na primeira página do Jornal do Brasil, mas com a legenda totalmente equivocada, chamando-o de “um pequeno órfão do Asilo de São José.”
Todo santo sofre seu martírio. Ainda nos tempos de batina, passando por um botequim a caminho da igreja num domingo de manhã, Cony topa com um bando de boêmios que prolongavam ruidosamente a noite em Vila Isabel “De repente, um cara sem queixo, tuberculoso notório, larga o violão, pega uma chapinha de cerveja e joga na minha direção. A chapinha raspa com força pela minha orelha, passo a mão e sinto o sangue escorrendo. Corri até a sacristia. Ao chegar, sem fôlego, exibi aquele sangue ao vigário. Era o testemunho da minha fé. O vigário confirma: eu era um mártir.” O nome do agressor: Noel Rosa.
O caso do lava-pés provou a Cony que o jornalismo é uma mentira. Mas isso não o impede de ingressar nas ditas lides, aos 19 anos, depois de largar a batina. Ciente de que é muito tênue a fronteira entre fato e ficção, ele parte para o jornalismo. Sem grandes ilusões. Na adolescência, apaixonara-se pelos romances de Eça, Machado, Flaubert e Zola. Publica em 1958 o primeiro romance, o único escrito a mão, O ventre.
— Por que resolveu escrever romances, Cony?
— Por nada. Excesso de imaginação e falta do que fazer.
A partir daí escreve outros romances, batucados nas teclas de uma Remington portátil. Em 1975 dá uma parada e fica vinte anos sem publicar qualquer livro. Em 1995, volta triunfalmente com Quase memória, o primeiro romance escrito ao computador e dedicado à cachorra “Mila, a mais que amada.” Enquanto Cony digitava suas lembranças, Mila morria a seus pés.
Também não lhe faltaram romances na vida real, muitos deles transformados em casamentos. Filhos (porque qui-los?): Regina Celi e Verônica do primeiro casamento; André, de um relacionamento alternativo no início dos anos 70. Em meados dessa mesma década, Cony aquietou-se no departamento conjugal: casou-se com Beatriz, até hoje sua mulher eleita e companheira de todas as horas.
Insisto em cobrar dele um romance longamente anunciado, mas que não escreveu até hoje: Messa pro Papa Marcello. Arredio, Cony diz que não tem mais energia para escrever romances. Vai continuar publicando outros livros, mas não romances. Por falar em Papa, pergunto a Cony se já alimentou a ambição de reinar no Vaticano.
— Quando era seminarista, sim. Eu era do ramo, por que não almejar o topo? Mas, quando viajei no avião do Papa, em sua primeira visita ao Brasil, vi que não gostaria daquilo. Você deve ter reparado no meu sorriso sarcástico, na foto em que estou conversando com João Paulo II...
A certa altura, cansado da literatura, Cony resolveu pintar. Pinceladas abstratas de acrílico sobre papel. O único óleo sobre tela é um pequeno auto-retrato que mostra Cony como Raskolnikov — o estudante de Crime e castigo que mata duas velhinhas a machadadas.
— Por que Raskolnikov?
— Nunca cometi um grande crime, apenas pequenos delitos sem importância. Aspirava a um grande crime como o de Raskolnikov para poder expiar todas as angústias que sempre me perseguiram.
Cony apega-se à vida, sem motivo justo. E não tem ilusões em relação ao mundo. Sintetiza esta sua visão no final do romance maldito Pilatos. Um grupo de jovens canta e dança na praia diante do sol carioca que nasce. Um passante comenta com o narrador:
— Estão felizes, hein?
— Estão mal informados — respondi. E afastei-me.
Humanista que se renega, Cony é brilhante no labirinto de suas contradições e, apesar de tudo, insiste em escrever. Como ele mesmo diz: Um gesto tão infantil como o de escovar os dentes, sentir na boca o gosto da espuma crescendo. Um rito infantil que talvez nunca tenha mudado, é sempre o mesmo.”

(Publicado na revista Contigo nº 1857, 21/4/2011)