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terça-feira, 16 de março de 2021

Viagem ao fim da Noite • Por Roberto Muggiati

 

Edifício A Noite, em 1929 e...

...hoje, na Praça Mauá reconstruída. Foto de Alexandre Macieira/Riotur

Entre as joias do “feirão” de imóveis promovido pelo governo federal para arrecadar dinheiro no Rio de Janeiro está o edifício A Noite, na Praça Mauá. Primeiro arranha-céu da América Latina, inaugurado em 1929, projeto do arquiteto francês Joseph Gire – o mesmo dos hotéis Glória e Copacabana Palace – tinha 22 andares e 102 metros de altura. Foi sede de A Noite, (1911-64), um dos primeiros jornais populares do Rio, que chegou a ter cinco edições diárias e uma tiragem de 200 mil exemplares, a maior do país. Nélson Rodrigues escreveu: “Estou certo de que, se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma maneira e por amor". Também trabalharam em A Noite os escritores Lima Barreto e Clarice Lispector.

 

O famoso auditório da Rádio Nacional. Foto D.P.

Mas a glória maior do edifício foi ter sido a casa da Rádio Nacional, que na década de 1940 chegou a ocupar cinco andares. Maior rádio das Américas e uma das maiores do mundo, teve no auge um elenco de mais de 120 atores contratados, sete orquestras e quatro maestros. A emissora ficou no prédio da sua inauguração, em 1936, até 2012, ou seja, 76 anos. Ali se escreveram alguns dos capítulos mais importantes da Era do Rádio no Brasil. Aproveito para transcrever a matéria que publiquei em 2010 no caderno cultural da Gazeta do Povo de Curitiba, com destaque para a Rádio Nacional.

 

 

A Era do Rádio

 

 “Foi a melhor época, foi a pior época, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas” – é Charles Dickens falando da Revolução Francesa, mas pode se aplicar também à Era do Rádio no Brasil, aqueles anos de definição da nacionalidade sob a ambígua "ordem" getulista à beira do cataclismo global. Foi o rádio que começou a soldar o país, do Oiapóque ao Chuí – como se dizia então – na base de uma cultura oral rica e variada.

A primeira transmissão radiofônica no Brasil foi no dia 7 de setembro de 1922, na inauguração da Exposição do Centenário da Independência na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro. O público ouviu um discurso do Presidente da República, Epitácio Pessoa, e a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, transmitida diretamente do Teatro Municipal. No ano seguinte, Roquette Pinto inaugurou a primeira emissora, a Rádio Sociedade. Vieram depois a Rádio Clube, a Mayrink Veiga, a Rádio Educadora e outras, na Bahia, no Pará e em Pernambuco. Quando a Rádio Nacional foi fundada em 1936, o aparelho de rádio já era não apenas um ornamento das salas de estar da classe média, mas um eletrodoméstico permanentemente ligado. A partir daí, até o final dos anos 1950, o rádio conheceu os seus anos dourados.

Lembro de "assistir" aos prantos à final da Copa do Mundo de 1950, como se estivesse no Maracanã naquela trágica tarde de domingo em que o Brasil perdeu para o Uruguai. Na infância e na adolescência eu passava horas ao lado do rádio, com meu avô, que era cego. "Víamos" tudo através das "ondas do éter" —– ele até mais do eu – pois o rádio era um veículo de comunicação que estimulava a imaginação. 

Ríamos às gargalhadas com programas humorísticos como a PRK-30 e o Balança, mas Não Cai; chorávamos com novelas como O Direito de Nascer, que ficou três anos no ar, e com as histórias comoventes da série Obrigado, Doutor. A dramaturgia radiofônica tinha o apoio de anunciantes como Philips, Gessy e Bayer como nos Estados Unidos, onde as novelas eram patrocinadas por marcas de sabonete, daí a expressão soap opera para designar "novela". Éramos bem informados pelos boletins do Repórter Esso, que anunciava, depois da fanfarra de clarins, "Aqui fala o seu Repórter Esso, testemunha ocular da História". Quando ouvíamos suas trombetas do Apocalipse fora do horário habitual, anunciando uma edição extra, sabíamos que algo de muito grave tinha acontecido no Brasil ou no mundo. Em compensação, caíamos de sono ou simplesmente desligávamos o rádio, coisa rara de acontecer  durante o programa oficial de notícias A Hora do Brasil, criado por Getúlio Vargas em 1935 e obrigatório em todas as emissoras.

Garoto, eu me ligava particularmente em seriados como Tarzã, o Rei da Selva, cujo insólito prefixo musical era a abertura de "Orfeu no Inferno", de Offenbach, justamente a dança do cancã dos cabarés franceses da belle époque. (De tanto ouvir Tarzã, ainda hoje associo mais o tema de Offenbach à selva inóspita do que aos tablados do cancã.) Tinha ainda Jerônimo, o Herói do Sertão, criado por Moysés Weltman, que também dirigiu revistas na Bloch; e O Sombra, que começava com o sinistro bordão: "Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe." Eu ouvia sempre um programa de histórias trágicas cujo prefixo musical era a tristíssima Pavana Para Uma Infanta Defunta, de Ravel: nas noites frias e escuras do inverno curitibano era quase um convite ao suicídio.

Mas o rádio era, acima de tudo, música. Até a propaganda se fazia através de canções, os irresistíveis jingles. Lembro de alguns, geralmente ligados a remédios: Grindélia de Oliveira Júnior, Phimatosan, Pílulas de Vida do Dr. Ross, do "Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal" e das Pastilhas Valda, calcada no tema de "La Cucaracha". E, ainda, o famoso anúncio do Óleo Maria, iniciado com o apelo: "Maria, sai da lata!".

Cauby Peixoto

Emilinha Borba

Era principalmente nos programas de auditório ao vivo que a música florescia. Cada emissora costumava ter sua orquestra residente, regida por um maestro famoso. Para citar alguns nomes: Radamés Gnatalli, Ghiarone, Maestro Chiquinho, Maestro Fon-Fon, Maestro Cipó, elogiado pelo jazzista Dizzy Gillespie. A Rádio Nacional tinha até um programa, Quando os Maestros Se Encontram, um duelo musical entre talentos como Leo Peracchi, Alceu Bocchino, Lírio Panicalli e Lindolfo Gaya. O auditório era o território sagrado onde surgiram os Cantores do Rádio, ídolos cultuados por seus fã-clubes e que ostentavam apelidos singulares, em alguns casos verdadeiros slogans: Francisco Alves (O Rei da Voz), Orlando Silva (O Cantor das Multidões), Sílvio Caldas (O Caboclinho Querido), Carlos Galhardo (O Cantor que Dispensa Adjetivos), Nélson Gonçalves (O Rei do Rádio), Francisco Carlos (O Broto), Cauby Peixoto (Professor), Luiz Gonzaga (O Rei do Baião). E, entre as mulheres: Linda Batista (A Maioral do Samba), Emilinha Borba (A Favorita da Marinha), Marlene (A Que Canta e Dança Diferente), Aracy de Almeida (O Samba em Pessoa), Elizeth Cardoso (A Divina), Ângela Maria (Sapoti), Carmen Miranda (A Pequena Notável).


O assédio aos astros nos auditórios lembrava as bobby-soxers de Frank Sinatra e as tietes da beatlemania. Na época, talvez pela coloração um pouco tisnada da pele, as fãs ganharam o apelido politicamente incorretíssimo de "macacas de auditório." Miguel Gustavo as celebrizou numa marchinha do Carnaval de 1958, Fãzoca de Rádio: "Ela é fã da Emilinha,/ Não sai do César de Alencar./ Grita o nome do Cauby/ E depois de desmaiar/ Pega a Revista do Rádio/ E começa a se abanar." Mesmo no coração do mais humilde fã havia uma esperança de chegar um dia a desfrutar de fama igual à de seus ídolos. Para isso se prestavam os programas de calouros, que revelaram muitas novas estrelas para a música popular brasileira. Ary Barroso comandava os Calouros em Desfile, na Tupi: qualquer deslize e o postulante a astro era desclassificado com a sonora batida de um gongo; na Rádio Nacional, Heber Bôscoli reinava na Hora do Pato e mandava os desafinados passearem com um humilhante grasnado da ave palmípede; na Rádio Clube, do Rio, Renato Murce submetia seus calouros ao teste do Papel Carbono. Dalva de Oliveira não precisou submeter-se ao ritual de passagem dos calouros. A Rainha do Rádio foi descoberta aos 19 anos por seu Pigmaleão, Herivelto Martins. Para quem não lembra, Pigmaleão foi o artista que, ao esculpir sua imagem da mulher ideal, se apaixonou pela estátua. Na mitologia grega como na MPB, a tragédia foi que Herivelto, o criador, se apaixonou por sua criatura, Dalva, e a realidade acabou demolindo o sonho.

 

sábado, 1 de julho de 2017

Memória carioca - Quando Antonio Maria revelou na Manchete o roteiro secreto dos primeiros motéis

Na sua coluna na Manchete, em 1952, Antonio Maria "entregou" o roteiro dos primeiros motéis
do Rio de Janeiro e do Brasil. 

por Ed Sá 

Respeite a instituição. Ela acaba de emplacar 65 anos. Mas a data passa em banco nesse 2017. Os motéis do Rio de Janeiro, pioneiros no gênero no país, ganharam notoriedade em 1952.

Naquele ano, o cronista Antonio Maria "entregou" tudo na revista Manchete, onde mantinha uma coluna. O autor de "Ninguém me Ama" publicou um roteiro do que era então quase secreto e divulgado apenas no boca a boca, literalmente. Eram bares rústicos, quase sem mesas, que ofereciam discretamente, no quintal, quartos e o essencial, camas. Nada de suíte, os banheiros eram coletivos.

A revelação não deve ter feito muito sucesso entre os frequentadores que se davam bem com o segredo bem guardado. Para chegar à Barra, que muitos chamavam de "sertão carioca", era quase necessário levar um mapa no porta-luvas do Ford Mercury.

"Você começa a viagem no Hotel Leblon e vai indo pelo asfalto velho, cansado de tantos Circuitos da Gávea, de tantos automóveis em viagens de amor. Do lado direito, a pedra e à esquerda, o mar. Contam-se histórias de dezenas de suicídios e o caso mais comentado é aquele da moça inglesa, que caiu no mar, com automóvel e tudo, sem que alguém jamais soubesse do seu corpo ou mesmo pudesse garantir se foi suicídio ou desastre.
Uma ladeira brusca e, lá embaixo, o Colonial, lugar onde gente séria não vai, nome que senhora bem casada não ousa dizer. A faixa de asfalto é estreita e os carros que vêm em sentido oposto correm muito e não baixam os faróis. Cada curva é um susto e um risco de vida; e são dezenas de curvas fechadas, espremidas, que o guiador tem que fazer colado em sua direita, com o coração na mão, embora. de vez em quando, ponha a mão no coração da namorada.
Depois, a baixada, onde surgem, aos potes, os bares abandonados. com um garçon bem triste debruçado em cada balcão. A gente morre de pena do dono daquele lugar sem fregueses, às moscas, dia e noite. Mesas vazias, prateleiras empoeiradas e o garçon sonolento atrás do balcão, só para constar. No fundo, há um quintal enorme, cheio de automóveis e vinte ou trinta quartos, servindo a núpcias permanentes. Mesmo no auge da luta contra o amor ilegal e ambulante nunca mexeram com aqueles hotéis de fachadas comoventes. São os únicos lugares onde, sem o luxo de várias espécies de matrimônio, pode-se amar sem castigo", escreveu Maria.

"Rua dos Motéis", no Itanhangá, anos 1970. Reprodução Facebook
Não faz muito tempo, o G1 publicou uma matéria afirmando que o primeiro motel do Brasil surgiu em Itaquaquecetuba (SP), em 1968. O estagiário sem noção errou por 16 anos e algumas centenas de quilômetros, como se vê pelo relato de Antonio Maria. Ninguém tira esse mérito do Rio.

Em 1975, o jornal alternativo Opinião publicou uma matéria sobre os motéis. O Opinião também errou. Dava como ano zero dos motéis 1967. Vacilo. Naquele ano, o transômetro da Barra já teria ultrapassado a casa dos milhões. Apesar de um certo toque moralista - a reportagem criminalizava os motéis - é um bom retrato da indústria em que os "hotéis de curta permanência" se transformaram, muito mais do que sonhariam os antigos proprietários dos bares com quartos no quintal revelados pela Manchete. Leia trechos, abaixo.







Maria foi profético nas últimas linhas da sua coluna na Manchete naquele distante 1952:

"Aí termina o roteiro Niemeyer. Há poucos lugares do mundo onde a semente do amor tenha proliferado tanto. Que Deus o conserve e abençôe os seus visitantes."