|
Edifício A Noite, em 1929 e... |
|
...hoje, na Praça Mauá reconstruída. Foto de Alexandre Macieira/Riotur |
Entre as joias do “feirão” de imóveis promovido pelo governo federal para arrecadar dinheiro no Rio de Janeiro está o edifício A Noite, na Praça Mauá. Primeiro arranha-céu da América Latina, inaugurado em 1929, projeto do arquiteto francês Joseph Gire – o mesmo dos hotéis Glória e Copacabana Palace – tinha 22 andares e 102 metros de altura. Foi sede de A Noite, (1911-64), um dos primeiros jornais populares do Rio, que chegou a ter cinco edições diárias e uma tiragem de 200 mil exemplares, a maior do país. Nélson Rodrigues escreveu: “Estou certo de que, se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma maneira e por amor". Também trabalharam em A Noite os escritores Lima Barreto e Clarice Lispector.
|
O famoso auditório da Rádio Nacional. Foto D.P. |
Mas
a glória maior do edifício foi ter sido a casa da Rádio Nacional, que na década
de 1940 chegou a ocupar cinco andares. Maior rádio
das Américas e uma das maiores do mundo, teve no auge um elenco de mais de 120
atores contratados, sete orquestras e quatro maestros. A emissora ficou
no prédio da sua inauguração, em 1936, até 2012, ou seja, 76 anos. Ali se
escreveram alguns dos capítulos mais importantes da Era do Rádio no Brasil.
Aproveito para transcrever a matéria que publiquei em 2010 no caderno cultural
da Gazeta do Povo de Curitiba, com
destaque para a Rádio Nacional.
A Era do Rádio
“Foi a melhor
época, foi a pior época, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a
época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a
estação das trevas” – é Charles Dickens falando da
Revolução Francesa, mas pode se aplicar também à Era do Rádio
no Brasil, aqueles anos de definição da
nacionalidade sob a ambígua "ordem" getulista à beira do cataclismo global. Foi o rádio que começou a soldar
o país, do Oiapóque ao Chuí – como se dizia então –
na base de uma cultura oral rica e variada.
A primeira transmissão radiofônica no Brasil foi no
dia 7 de setembro de 1922, na inauguração da Exposição do Centenário da
Independência na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro. O público ouviu um
discurso do Presidente da República, Epitácio Pessoa, e a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, transmitida
diretamente do Teatro Municipal. No ano seguinte, Roquette Pinto inaugurou a
primeira emissora, a Rádio Sociedade. Vieram depois a Rádio Clube, a Mayrink
Veiga, a Rádio Educadora e outras, na Bahia, no Pará e em Pernambuco. Quando a
Rádio Nacional foi fundada em 1936, o aparelho de rádio já era não apenas um
ornamento das salas de estar da classe média, mas um eletrodoméstico
permanentemente ligado. A partir daí, até o final dos anos 1950, o rádio
conheceu os seus anos dourados.
Lembro de "assistir" aos prantos à final da
Copa do Mundo de 1950, como se estivesse no Maracanã naquela trágica tarde de
domingo em que o Brasil perdeu para o Uruguai. Na infância e na adolescência eu
passava horas ao lado do rádio, com meu avô, que era cego. "Víamos"
tudo através das "ondas do éter" –
ele até mais do eu – pois o rádio era um veículo
de comunicação que estimulava a imaginação.
Ríamos às gargalhadas com programas
humorísticos como a
PRK-30 e o
Balança, mas Não Cai; chorávamos com
novelas como
O Direito de Nascer, que
ficou três anos no ar, e com as histórias comoventes da série
Obrigado, Doutor. A dramaturgia
radiofônica tinha o apoio de anunciantes como Philips, Gessy e Bayer como nos Estados Unidos, onde as novelas eram patrocinadas
por marcas de sabonete, da
í a express
ão
soap opera para
designar "novela".
Éramos bem
informados pelos boletins do Repórter Esso, que anunciava, depois da fanfarra
de clarins, "Aqui fala o seu Repórter Esso, testemunha ocular da
História". Quando ouvíamos suas trombetas do Apocalipse fora do horário
habitual, anunciando uma edição extra, sabíamos que algo de muito grave tinha
acontecido no Brasil ou no mundo. Em compensação, caíamos de sono
– ou simplesmente deslig
ávamos
o r
ádio, coisa rara de acontecer
– durante o programa
oficial de not
ícias
A Hora do Brasil, criado por Get
úlio
Vargas em 1935 e obrigat
ório em todas as emissoras.
Garoto, eu me ligava particularmente em seriados como
Tarzã, o Rei da Selva, cujo insólito
prefixo musical era a abertura de "Orfeu no Inferno", de Offenbach,
justamente a dança do cancã dos cabarés franceses da belle époque. (De tanto ouvir Tarzã, ainda hoje associo mais o tema
de Offenbach à selva inóspita do que aos tablados do cancã.) Tinha ainda Jerônimo, o Herói do Sertão, criado por
Moysés Weltman, que também dirigiu revistas na Bloch; e O Sombra, que começava com o sinistro bordão: "Quem sabe o mal
que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe." Eu ouvia sempre um
programa de histórias trágicas cujo prefixo musical era a tristíssima Pavana Para Uma Infanta Defunta, de
Ravel: nas noites frias e escuras do inverno curitibano era quase um convite ao
suicídio.
Mas o rádio era, acima de tudo, música. Até a
propaganda se fazia através de canções, os irresistíveis jingles. Lembro de
alguns, geralmente ligados a remédios: Grindélia de Oliveira Júnior,
Phimatosan, Pílulas de Vida do Dr. Ross, do "Melhoral, Melhoral, é melhor
e não faz mal" e das Pastilhas Valda, calcada no tema de "La
Cucaracha". E, ainda, o famoso anúncio do Óleo Maria, iniciado com o
apelo: "Maria, sai da lata!".
|
Cauby Peixoto |
|
Emilinha Borba |
Era principalmente nos programas de auditório ao vivo
que a música florescia. Cada emissora costumava ter sua orquestra residente,
regida por um maestro famoso. Para citar alguns nomes: Radamés Gnatalli,
Ghiarone, Maestro Chiquinho, Maestro Fon-Fon, Maestro Cipó, elogiado pelo
jazzista Dizzy Gillespie. A Rádio Nacional tinha até um programa,
Quando os Maestros Se Encontram, um
duelo musical entre talentos como Leo Peracchi, Alceu Bocchino, Lírio Panicalli
e Lindolfo Gaya. O auditório era o território sagrado onde surgiram os Cantores
do Rádio, ídolos cultuados por seus fã-clubes e que ostentavam apelidos
singulares, em alguns casos verdadeiros slogans: Francisco Alves (O Rei da
Voz), Orlando Silva (O Cantor das Multidões), Sílvio Caldas (O Caboclinho
Querido), Carlos Galhardo (O Cantor que Dispensa Adjetivos), Nélson Gonçalves
(O Rei do Rádio), Francisco Carlos (O Broto), Cauby Peixoto (Professor), Luiz
Gonzaga (O Rei do Baião). E, entre as mulheres: Linda Batista (A Maioral do
Samba), Emilinha Borba (A Favorita da Marinha), Marlene (A Que Canta e Dança Diferente),
Aracy de Almeida (O Samba em Pessoa), Elizeth Cardoso (A Divina), Ângela Maria
(Sapoti), Carmen Miranda (A Pequena Notável).
O assédio aos astros nos auditórios lembrava as
bobby-soxers de Frank Sinatra e as
tietes da beatlemania. Na época, talvez pela coloração um pouco tisnada da
pele, as fãs ganharam o apelido politicamente incorretíssimo de "macacas
de auditório." Miguel Gustavo as celebrizou numa marchinha do Carnaval de
1958,
Fãzoca de Rádio: "Ela é fã
da Emilinha,/ Não sai do César de Alencar./ Grita o nome do Cauby/ E depois de
desmaiar/ Pega a Revista do Rádio/ E começa a se abanar." Mesmo no coração
do mais humilde fã havia uma esperança de chegar um dia a desfrutar de fama igual
à de seus ídolos. Para isso se prestavam os programas de calouros, que
revelaram muitas novas estrelas para a música popular brasileira. Ary Barroso
comandava os
Calouros em Desfile, na
Tupi: qualquer deslize e o postulante a astro era desclassificado com a sonora
batida de um gongo; na Rádio Nacional, Heber Bôscoli reinava na
Hora do Pato e mandava os desafinados
passearem com um humilhante grasnado da ave palmípede; na Rádio Clube, do Rio,
Renato Murce submetia seus calouros ao teste do
Papel Carbono. Dalva de Oliveira não precisou submeter-se ao ritual
de passagem dos calouros. A Rainha do Rádio foi descoberta aos 19 anos por seu
Pigmaleão, Herivelto Martins. Para quem não lembra, Pigmaleão foi o artista
que, ao esculpir sua imagem da mulher ideal, se apaixonou pela estátua. Na
mitologia grega como na MPB, a tragédia foi que Herivelto, o criador, se
apaixonou por sua criatura, Dalva, e a realidade acabou demolindo o sonho.