Nos meus tempos de
rapaz, eu adorava Carnaval. Coisa curiosa, na última sexta-feira, o Rio já
tomado pela folia, de repente me vi no final da Rua da Lapa, já na Glória, a
caminho da casa de jazz TribOz. Dei-me conta então de que, 60 anos antes, eu
caminhava pelo mesmo lugar, à mesma hora, no meu primeiro dia de Rio de
Janeiro. Esbaldei-me no baile de domingo do Clube Curitibano e saí direto para
o aeroporto Afonso Pena. Lá, pelas sete da manhã, peguei um Douglas DC3 no voo
Curitiba-Rio e me hospedei no Hotel Regina, no Flamengo. Nada de descansar.
Deixei as malas no quarto e sai pelas ruas do centro para acompanhar o
Carnaval. No fim da tarde, naquele mesmo local na divisa Lapa-Glória, uma
traveca mulata de dois metros de altura me deu uma patolada inesquecível, uma
verdadeira epifania momesca. Enfim, vale esse nariz-e-cera para dizer que eu
adorava o Carnaval.
Foi a partir de 1975
que começou minha overdose de Carnaval. Investido da função de diretor da
revista Manchete – no lugar de
Justino Martins – passei a ficar aqueles três dias prisioneiro das edições de
Carnaval. Sim, naqueles tempos nós esgotávamos três edições seguidas: a pré-carnavalesca,
a de Carnaval e ainda a de pós-Carnaval. A pré se valia de um evento que era um
factoide criado pela própria revista. Com a cumplicidade do Comodoro do Iate
Clube do Rio de Janeiro – que era amigo do Adolpho Bloch – a Manchete promovia o baile “Uma Noite no
Havaí.” As mais bonitas garotas-de-programa da Zona Sul eram arrebanhadas pela
produção da Manchete, enfiadas em
ônibus fretados e desovadas no entorno da piscina do Iate, na Urca. Havia
peitinhos à mostra, mas não se publicavam tais fotos – a revista seria
recolhida. Ficávamos no limiar entre o erótico e o pornô. Para as garotas,
aquilo era o seu catálogo – uma foto de página inteira valia um considerável
aumento de michê. Fechávamos no sábado, com uma foto do baile na capa. Muitos
cavalheiros nos telefonavam ou até procuravam na redação, temerosos de que
publicássemos sua foto abraçado a uma “havaiana” – que certamente não era a sua
“legítima metade.” (Na época, durante o verão, o Rio ficava entregue não às
baratas, mas às “cigarras” – aqueles maridos que, pretextando negócios e
trabalho, despachavam a família para a Serra, ou para a Região dos Lagos, e
ficavam na calorenta metrópole... se esbaldando, é claro.)
Descansávamos até o sábado
de Carnaval, quando começava a verdadeira pauleira. Resumindo: era preciso
muita rapidez e jogo de cintura para editar uma revista em três dias e meio.
Quilômetros de celuloide eram expostos e revelados. A qualidade exigia fotos em
grande formato da Hasselbald, a sucessora da Rolleiflex. Cromos em 6x6 ou até
em 7x5. As cenas mais dinâmicas eram flagradas em 35 milímetros. Os rolos de
filmes dos diferentes eventos eram recolhidos por motoqueiros e trazidos para
serem revelados no laboratório. Os banhos das emulsões químicas tinham de ser
vigiados atentamente para evitar qualquer queima de filme. A edição das fotos
era uma epopeia. As tiras de cromos subiam do laboratório envolvidas em
plástico protetor. O Alberto de Carvalho fazia a pré-seleção, com seu lápis
cera vermelho, marcando um X nas melhores fotos. Uma equipe cortava cada cromo
e o emoldurava para a projeção. Os cromos grandes eram colocados na travessa
linear; os 35cm, no carrossel. Todo mundo assistia à projeção – da alta
diretoria aos contínuos. A reação daquela vintena de pessoas – de diferentes
classes sociais – servia como uma espécie de pesquisa de opinião para o editor.
Ele anotava mentalmente as imagens campeãs; e o Alberto anotava o número de
cada foto e já colocava uma seleção das melhores na “churrasqueira”, uma mesa
de quase dez metros de comprimento com visor de acrílico iluminado por lâmpadas
frias (que faziam um calor danado). Aí o editor (eu) escolhia as fotos e
desenhava a paginação para o chefe de arte, o grande Wilson Passos.
Não era só o desfile
das escolas do Rio e de São Paulo (que construiu o seu sambódromo também),
havia ainda o tititi dos camarotes, o desfile de fantasias do Hotel Glória, os
Galas Gays e Scalas da vida e os bailes do Copacabana Palace e do Morro da
Urca, a Feijoada do Amaral, etc. Tinha também a Bahia com seus afoxés e trios
elétricos; e Olinda e Recife, com os bonecos e a apoteose do Galo da Madrugada.
Todo esse material se deslocava fisicamente, nos primeiros voos, dentro de
malotes, para ser revelado no Rio. Acompanhávamos o desfile das escolas de
samba (Rio e São Paulo) e fechávamos as últimas páginas na manhã de terça-feira
com as escolas cariocas da noite de segunda. Lembro que chegávamos à redação às
quatro ou cinco da manhã e começávamos a esquadrinhar as fotos das últimas
escolas. De repente, um sol rubro se erguia sobre a linha do horizonte marcada
pelo mar na entrada da baía de Guanabara e banhava com seus primeiros raios as
madeiras nobres e o assoalho em tábua corrida. Não tínhamos tempo de admirar a
vista, mas ela estava ali, ao nosso alcance: o Pão de Açúcar à direita, a
Fortaleza de São João à esquerda. Era a hora clássica do pão com ovo – nosso
emblema gastronômico, que nomeia esse blog. Um prato dividido por um acirrado
cisma ideológico: a natureza do pão era uma em Manchete, outra em Fatos&Fotos
(o pão de forma versus o pão francês, já contamos essa história antes...)
Lá pelas onze da manhã,
voltávamos para casa, com a consciência do dever cumprido. Às vezes, Adolpho
Bloch nos levava, em petit comité,
para almoçar em algum restaurante caro e arcava com a conta. A revista
pós-Carnaval tinha uma capa definida. Reuníamos numa foto de estúdio cerca de
dez destaques do Carnaval, das escolas, dos desfiles de fantasias e outras
freguesias (um ano, por exemplo, a musa do Carnaval foi a estrelinha que
acompanhava o Presidente Ithamar Franco no camarote presidencial e, no calor do
samba, ergueu os braços num gesto que, suspendendo a camiseta, revelou que a
moça esquecera as calcinhas em casa... ou em algum outro lugar.) O Tarlis
Baptista, encarregado da produção, tornava-se naqueles dias a pessoa mais
procurada do Rio de Janeiro: todo mundo queria sair naquela capa.
E assim se passaram 21
anos, até que, em 1996 – Adolpho Bloch morto no anterior – o Jaquito
contratou uma troika de São Paulo
para salvar a revista. Pela primeira vez em 21 anos, deixei a direção da Manchete. Vi-me investido da função de
Editor de Projetos Especiais e deslocado para a cobertura do terceiro prédio do
Russell, uma sala imensa que eu dividia com o Mauro Costa, da TV, também jogado
para escanteio. Foi a melhor época da minha vida na Bloch, longe daquele
insensato mundo, esquecido dos chatos – minha sala era acessada através de uma
escada em caracol que só pessoas em plena forma física podiam galgar. Mas o
sonho durou pouco. Quando chegou o Carnaval de 1997, Jaquito deu férias aos
paulistas e me convocou para fazer a edição de Carnaval. Alegou: “Esses caras não
entendem nada de Carnaval...” Ainda fechei as edições carnavalescas de 1998 e
1999. Em 2000, com o pé quebrado, fechei as edições de Fatos&Fotos – tinha a Fatos&Fotos
Gay, bilingue, um hit, lembro de uma madrugada, revendo os últimos
leiautes, a perna sobre uma cadeira, a muleta canadense ao lado – e passa pelo
corredor das redações uma figura fantasmagórica, uma sílfide deslizando como se
fosse alçar voo. Era a Isabelita dos Patins, sobre as rodinhas como sempre, e
nos ajudando na consultoria de assuntos e gírias gays.
Todo esse trabalho, o
desencanto com as engrenagens sórdidas do Carnaval comercializado, transformado
em programa de TV, a euforia fingida das celebridades, me fez cansar do Carnaval.
Sem mencionar que o de hoje, com subvenções até de um ditador de um país
africano faminto, nada tem a ver com aquele de 1966, quando fui escalado para
entrevistar um jovem talento da Princesa Isabel, Martinho da Vila. Seja como
for, vale a lembrança: além de outras áreas, a Manchete pontificou –e muito – também no Carnaval.