Para Henry Miller, o Sena era "como uma grande artéria correndo pelo corpo humano". A foto reproduzida de um cartão postal é de Cartier-Bresson |
William Faulkner em frente à Catedral de Notre-Dame, em Paris, em 1925 |
Há 50
anos, saía o primeiro livro póstumo de Ernest Hemingway. Em A Moveable Feast
(Paris É uma Festa), ele descreve a vida na cidade nos anos 1920 e sua
importância para escritores como ele, Scott Fitzgerald, John Dos Passos, Ezra
Pound e outros, que frequentavam o salon de Gertrude Stein. Em 2011, Woody
Allen revisitou a cena no filme Meia-noite em Paris, com deliciosas
reencarnações de personagens da época (Cole Porter, Josephine Baker, Picasso,
Dalí), além dos americanos amigos de Miss Stein, que ela batizou de “geração
perdida”.
Ao
retratar sua entourage, Hemingway não poupa sequer a si mesmo, um garotão do
Meio-Oeste americano jogado às feras na cidade mais cosmopolita do mundo.
Particularmente ferino é o perfil de Fitzgerald, em crise existencial por achar
que seu pênis era muito pequeno. Ernest leva Scott à seção de escultura grega
do Louvre e mostra a ele que o pinto dos rapazes helenos também não era lá
essas coisas. Mas nem tudo são farpas no livro e saímos dele com uma suave
sensação de nostalgia. Diz Hemingway: “Se você teve a sorte de morar em Paris
quando jovem, então, aonde quer que vá pelo resto da vida, ela persiste com
você, pois Paris é uma festa móvel."
Mas a
Paris literária não se resume à turma de Hemingway. Pelos mesmos cafés de
Montparnasse circularam um William Faulkner obscuro, que não deixou marcas, a
cabeça já imersa na sua imaginária Yoknapatawpha. O boêmio Henry Miller, que
imortalizou a cidade em seus romances autobiográficos, preferia a companhia do
fotógrafo húngaro Brassaï e dos escritores franceses Anaïs Nin, Alfred Perles e
Blaise Cendrars. No final de Trópico de Câncer, ele escreve: “O Sena flui tão
quieto que a gente mal nota sua presença. Está sempre ali, quieto e discreto,
como uma grande artéria correndo pelo corpo humano.”
Houve até
uma rive noire, a Paris dos americanos negros, o livro Do Harlem ao Sena trata
só disso. Escritores como Richard Wright, Chester Himes e James Baldwin fugiram
do racismo e fizeram da França sua nova pátria, como muitos músicos de jazz. E,
é claro, houve os beats, a partir do final dos anos 1950: Allen Ginsberg,
William Burroughs e Gregory Corso instalaram-se no que seria conhecido como
Beat Hotel, numa viela junto ao Sena. Burroughs e Corso eram editados em inglês
pela Olympia Press francesa, a mesma que lançou Lolita de Nabokov em 1955,
seguindo o exemplo da Shakespeare and Company, de Sylvia Beach, que publicou o
Ulysses de Joyce, em 1922.
Procope
Mas vamos
deixar os amerlauds de lado. Já no século 15, as tavernas estavam cheias de
poetas como François Villon (autor do belíssimo verso “Mais où sont les neiges
d’antan?/ Onde estão as neves de antigamente?”). O primeiro café literário
surgiu em 1686 em Saint Germain-des-Près, o Procope – seu dono era o siciliano
Francesco Procopio dei Coltelli. Obviamente, servia café, a exótica bebida
importada dos trópicos, e os primeiros sorvetes (sorbets), em taças de
porcelana. Próximo da Comédie Française, o Procope foi primeiro um café
teatral, mas já no século 18 era um efervescente centro para a discussão das
novas ideias. Os Enciclopedistas planejaram sua grande obra lá – Diderot,
Montesquieu, Rousseau e Voltaire, recordista no consumo de café, 40 taças ao
dia, misturado com chocolate. A Revolução Francesa foi praticamente tramada em
suas mesas, por Danton, Robespierre e Marat. O barrete frígio, símbolo da
Liberté, foi exibido pela primeira vez no café. Os pais da independência
americana, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, também respiraram os ares
libertários do Procope. Lá, o estudante brasileiro José Joaquim da Maia pediu o
apoio de Jefferson à Inconfidência: “Sou brasileiro e sabeis que minha
desgraçada pátria geme em um espantoso cativeiro, que se torna cada dia menos
suportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros
portugueses nada pouparam para nos tomar desgraçados, com o temor que
seguíssemos os vossos passos.”
O genial
Atlas of Literature, editado por Malcolm Bradbury, observa que “a rue
Chateaubriand em Paris leva à rue Lord Byron e é atravessada pela rue Balzac.
Assim Paris comemora a literatura...e evoca um grande período da literatura
romântica.” Rejeitando a frieza do classicismo, os escritores do século 19
abriram-se para as emoções e os sentidos. Balzac (nos 95 romances da Comédia Humana)
e Victor Hugo (Os Miseráveis) criaram cenas e heróis inesquecíveis. Uma nova
força agitava a cena literária, a dos jornais diários, com romances em
capítulos semanais, os folhetins. Balzac escrevia horas seguidas, de
preferência na madrugada, sustentado pela cafeína: “O café é a bebida que
desliza para o estômago e põe tudo em movimento.” Certa vez trabalhou
interruptamente por 48 horas com apenas três horas de descanso. Outro que
empolgou a imaginação popular foi Alexandre Dumas, com suas aventuras históricas,
principalmente a saga dos Três Mosqueteiros.
Em meados
do século 19 surge a Paris Boêmia, descrita no livro de Henry Murger, Cenas da
Vida Boêmia (1851), que Puccini transformou na ópera La Bohème (1893). Os
boêmios eram pessoas cuja ocupação principal era não ter ocupação alguma. No
plano social mais rico, a vie bohème rendeu um romance de sucesso, A Dama das
Camélias, de Alexandre Dumas, filho, que inspirou a ópera de Verdi La Traviata.
Charles Baudelaire escandalizou com suas Flores do Mal; fazia a apologia do
haxixe e era um dândi exemplar, com suas roupas extravagantes – passeava pelas
ruas num terno malva puxando um cágado por uma coleira.
Nas
últimas décadas do século 19, o romantismo agoniza e surgem novos movimentos –
o realismo, no romance; o simbolismo e o decadentismo, na poesia. O famoso
quadro de Fantin-Latour, Le Coin de Table, reflete a atmosfera da época,
incluindo os poetas Verlaine e Rimbaud. Émile Zola faz literatura segundo
linhas científicas e proclama; “O realismo é a nudez!” Em 1889, na comemoração
do centenário da Revolução, a cidade ganha a Torre Eiffel, um monumento de
ferro modelado pelo vento, segundo seu criador. A Boêmia se instala em
Montmartre, ao som do can-can e sob as pinceladas dos impressionistas.
A belle
époque traz os anos dourados dos salões literários, descritos minuciosamente
por Marcel Proust. (Em A Cidade e as Serras, Eça de Queirós – morto em Paris em
1900 – faz também descrições magistrais da sociedade da época.) Nestes “anos de
banquete”, boêmia e burguesia convivem em paz, uma se alimenta da outra.
No início
do século 20, Paris é “o laboratório de ideias nas artes.” (Ezra Pound). O
modernismo nasce numa noite de primavera de 1913, com a tumultuada estreia de A
Sagração da Primavera, de Stravinski, pelos Ballets Russes de Diaghilev e
Nijinski. Dadaístas e surrealistas levam a arte às ruas, André Breton
revoluciona o romance com Nadja (1928), intercalando fotos ao texto.
Existencialismo
A crise
econômica e política dos anos 1930 estraga a festa. No dia 14 de junho de 1940
as tropas alemães invadem Paris. Durante a ocupação, os intelectuais franceses
mantêm uma complexa e polêmica coexistência com o ocupante e recorrem a uma
linguagem cifrada e parabólica em seus romances e peças. “Ter 20 ou 25 anos em
1944 parecia uma tremenda sorte: todas as estradas estavam abertas,” escreve
Simone de Beauvoir depois da libertação da cidade pelas tropas americanas. O
existencialismo toma conta dos cafés e clubes noturnos de Saint
Germain-des-Prés, ao som do jazz e da nova chanson, que tem em Juliette Gréco
sua musa maior. Jean-Paul Sartre e Albert Camus escrevem suas obras-primas e
discutem a “literatura engajada”. Sartre e Simone fundam a dirigem a revista
Temps Modernes. Quando Simone publica O Segundo Sexo (1949), Camus a acusa de
“querer desonrar o macho francês”. Já François Mauriac diz a um colaborador da
revista: “Aprendi tudo sobre a vagina da sua patroa...” O romance de Simone que
descreve o grupo existencialista chamou-se Os Mandarins, inspirado nas duas
figuras chinesas que decoram o Café Des Deux Magots. (Por falta de aquecimento
nos apartamentos hotéis, os autores passavam o dia escrevendo nas mesas dos
cafés.)
O
existencialismo foi o último movimento literário de peso na vida da cidade. A
própria Paris, na onda da globalização, reduziu seu espaço humanista. Os
escritores do nouveau roman se trancaram em casa com seu esteticismo cerebral.
E as novas gerações se refugiaram no território totalitário dos shopping malls
e das discothèques, como mostra Lolita Pille em Hell – Paris 75016 (2003). É o
caso de parafrasear François Villon: “Mais ou sont les cafés d’antan?”
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