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sábado, 23 de janeiro de 2021

Edilberto Coutinho queria ser Gene Tierney • Por Roberto Muggiati

Edilberto Coutinho
No meu álbum de fotos aparece amiúde a figura de (José) Edilberto Coutinho, presente nas comemorações de aniversário da minha infância. Paraibano de Bananeiras, filho de um funcionário público, depois de rápida passagem por Recife arribou em Curitiba em 1946. Quatro anos mais velho que eu, brilhou no movimento estudantil paranaense, formou-se em direito no Recife e depois embarcou na carreira de jornalista e escritor no Rio de Janeiro, a partir de 1957. Insinuante, fez logo amizade com os irmãos Condé, donos do Jornal de Letras, e passou a orbitar em torno daquela referência literária da época. Seu homossexualismo latente veio à tona nos contos, notadamente aqueles que adotam o futebol como tema (Maracanã, adeus: onze histórias de futebol e Amor na boca do túnel). Morreu relativamente cedo, aos 62 anos, mas marcou a cultura brasileira com sua presença forte como ficcionista, ensaísta, jornalista e professor universitário.

Quero fixar aqui a lembrança do Edilberto que conheci nos anos 40 no edifício Marina, em Curitiba, onde éramos vizinhos. O Marina era um pequeno prédio de dois pavimentos com quatro apartamentos, dois por andar: minha família morava no 1, que ficava à esquerda no térreo; os Coutinho no apartamento 4, no andar de cima à direita. Na verdade, Edilberto morava com a irmã, Iolanda, casada com o engenheiro e professor José Pitella Junior. Ela acabaria entrando para o folclore do alto da Carlos de Carvalho por uma explosão temperamental que lhe valeu um apelido para o resto da vida. Telefones eram muito raros na época e minha família se orgulhava daquele aparelho de design clássico, preto de baquelite, e da linha cujo número nunca esqueci: 3549. A irmã mais velha do Edilberto usava nosso telefone por cortesia, mas esse tipo de gentileza estava fadado a acabar mal, principalmente levando em conta o choque cultural paraibano-paranaense. Um dia, dona Iolanda interpretou mal um comentário de minha mãe e subiu nas tamancas: “Tá bom, eu não preciso mesmo desse telefone de bosta!” Passou a ser conhecida então como “Dona B.O.”

Já Edilberto surpreendeu nossa turminha – tínhamos dez anos, ele já andava pelos catorze – com uma declaração insólita depois de assistir a um filme de sucesso da época, Amar foi minha ruina (1945). Confessou para nós que gostaria de ser Gene Tierney na cena famosa em que a estrela simula uma queda acidental na escadaria da sua mansão para abortar a criança que – na sua ótica ciumenta patológica – a separaria do marido, Cornel Wilde. Ela já havia levado o irmão mais moço do mocinho a se afogar num lago. Doente de ciúmes do relacionamento da meia-irmã com o marido, recorre a uma saída extrema: suicida-se com arsênico, incriminando os dois e levando-os a julgamento por homicídio.

Chocou-nos o apego de Edilberto a uma heroína tão deletéria. Em nossa inocência, éramos incapazes de apreender os delicados mecanismos da projeção homoerótica na figura feminina. Este episódio remoto voltou à minha memória ao rever agora Amar foi minha ruina no volume 17 do Filme Noir da Versátil, o primeiro noir em technicolor da série. Velhos filmes, de certa forma, nos trazem de volta fatos e pessoas longamente esquecidos...