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terça-feira, 1 de março de 2022

Da Ucrânia, com amor • Por Roberto Muggiati

Adolpho Bloch em Kiev.
Foto Manchete
Eu sabia que a contribuição dos ucranianos para o crescimento da sociedade e cultura brasileiras era importante, mas ignorava que o fosse em tão larga escala. Mesmo esta pesquisa feita com urgência em tempo de guerra, revela a amplitude da influência da Ucrânia em nosso país. 

De Jitomir, vieram para o Rio de Janeiro em 1921 os primos Adolpho e Pedro Bloch. Adolpho, empresário gráfico, criou aqui um império de comunicação, iniciado com a revista Manchete em 1952 e continuado com a Rede Manchete em 1983. Pedro Bloch, médico, um dos maiores foniatras do país, foi também, autor de livros infanto-juvenis, com mais de cem títulos publicados, pianista e dramaturgo. É autor da peça brasileira de maior sucesso, “As mãos de Eurídice” (1950), exibida mais de 60 mil vezes, em 45 países.

Sobrinho-neto de Adolpho Bloch, mas já nascido no Brasil, Jonas Bloch brilhou no teatro, cinema e na TV e passou o talento para sua filha, a premiada atriz Deborah Bloch.

Clarice Lispector. Foto Manchete
As irmãs Lispector, Clarice e Elisa, chegaram a Maceió em 1922. Depois de um tempo no Recife fixaram-se definitivamente no Rio em 1934. Nascida em Chechelnyk, Clarice se tornaria inquestionavelmente a maior ficcionista brasileira de todos os tempos, com o prestígio internacional cada vez mais em alta.

Samuel Malamud, nascido em Mogilev-Podolsk, chegou ao Rio em 1923, no auge da perseguição aos judeus com os pogroms da Rússia e Ucrânia. Formado em direito, tornou-se um dos mais conceituados juristas brasileiros e também importante líder da comunidade judaica.

Adolpho Milman, mais conhecido como Russo, nascido na província de Entre Ríos, , foi um futebolista argentino de origem judaico-ucraniana naturalizado brasileiro. É um dos cinco futebolistas que não nasceram no Brasil a ter sido convocado para a Seleção Brasileira. Russo foi um dos grandes artilheiros da história do Fluminense, tendo feito 154 gols em 249 jogos, entre 1933 e 1944, e um dos destaques do famoso "Fla-Flu da Lagoa", na final do Campeonato Carioca de 1941. Russo conquistou quatro campeonatos cariocas, um Torneio Aberto e um Torneio Municipal pelo Tricolor.

Noel Nutels nasceu em Nanaiyev, Ucrânia, e chegou ao Recife ainda menino. Lá se formou pela faculdade de medicina. Mudou-se para Botucatu em 1941 e depois ficaria para o resto da vida no Rio de Janeiro. Tornou-se um dos mais conhecidos indigenistas do país, batalhando pela causa dos povos nativos ao lado dos irmãos Villas-Boas e ajudando com eles a implantar o Parque Indígena do Xingu. Médico da primeira expedição Roncador-Xingu em 1943, acabaria trabalhando para o resto da vida pela saúde dos índios. Dizia: “Eu não clinico, não tenho consultório. Fazia Malária e agora faço Tuberculose. Minha mania: o índio”. Tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente, em Frei Caneca, volta e meia aparecia por lá, pois era casado com a prima, Elisa Trachtenberg, secretária de redação da Manchete.

Agitadora da cena cultural carioca, a psicanalista Irina Popow também veio da Ucrânia. É mãe de Andrucha Waddington, diretor, produtor e roteirista de cinema e publicidade, casado com a atriz e escritora Fernanda Torres.

São Paulo recebeu em 1920 Leon Feffer, nascido em Kolki, que aqui fundou o Grupo Suzano de papel e celulose, que seria expandido por seu filho, Max. Trompetista de jazz na juventude, Max Pfeffer foi Secretário de Cultura do estado e desenvolveu os importantes projetos do Festival de Jazz São Paulo-Montreux e do Festival de Inverno em Campos do Jordão.

Gregori Ilych Warchavchik , nascido em Odessa,  foi um dos principais nomes da primeira geração de arquitetos modernistas do Brasil. Chegou a São Paulo em 1923. Naturalizado brasileiro, entre 1927 e 1928, projetou e construiu para si aquela que foi considerada a primeira residência moderna do país.

Nascido em Zolotonosha, Gregório Gregorievitch Bondar foi um agrônomo, entomologista e pesquisador que chegou à Bahia em 1921. Contratado pelo estado como entomologista e patologista de plantas no Departamento de Agricultura morou na Bahia até o final da vida. Em 1932, foi transferido para o Instituto de Cacau da Bahia. Em 1938, foi contratado como consultor técnico pelo Instituto Central de Fomento Econômico da Bahia. Bondar descreveu várias novas espécies de palmeiras. Seu livro "Palmeiras do Brasil" foi publicado postumamente, em 1964, pelo Instituto de Botânica de São Paulo. Descreveu 318 espécies de insetos, incluindo muitas pragas das plantas que estudou. A coleção de Bondar foi adquirida pela fundação  David Rockefeller e doada para o Museu Americano de História Natural. 

Aleixo Belov, nascido Alexey Dimitrievitch Belov em Merefa, na Ucrânia, em 1943, durante a ocupação alemã é um empresário, engenheiro e navegador  radicado em Salvador, Bahia. Aleixo recebeu da Marinha do Brasil o diploma reconhecendo-o como o primeiro navegador a dar uma volta ao mundo em solitário com veleiro de bandeira brasileira, o Três Marias. A viagem é relatada minuciosamente em seu primeiro livro A Volta Ao Mundo Em Solitário, lançado em 1981 pela Editora Nórdica. 

Embora nascidos já no país, vários filhos e netos de imigrantes ucranianos marcaram profundamente a vida do Brasil. Radicado em São Paulo, José Ephim Mindlin, cujos pais nasceram em Odessa, além de repórter, advogado, empresário e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, foi sem dúvida o mais famoso bibliófilo brasileiro.

Jacob Gorender e Nicolau Sevcenko, filhos de ucranianos, radicados em São Paulo, figuram entre os mais importantes cientistas políticos do Brasil.

Um dos mais importantes cineastas radicados em São Paulo, Hector Babenco, de ascendência judaico-ucraniana, nasceu na Argentina e naturalizou-se brasileiro. O filme “O beijo da mulher-aranha” lhe valeu a indicação para o Oscar de melhor direção em 1986.

Bakun, autoretrato

A vida cultural de Curitiba foi marcada por dois filhos de imigrantes da Ucrânia: o pintor Miguel Bakun e a poeta Helena Kolody. Nascido em Mallet, Bakun trabalhou como alfaiate antes de entrar para a marinha. Na Escola de Grumetes no Rio conheceu, como colega de farda, o pintor Pancetti, que o estimulou a desenhar. Um acidente num navio provocou seu desligamento por incapacidade física. Sem eira nem beira em Curitiba, Bakun trabalhou como fotógrafo lambe-lambe, pintor de cartazes e letreiros e decorador de interiores. Autodidata e instintivo, era obcecado por Van Gogh, cuja influência o crítico Sérgio Milliet confirmou a, dizendo que em Bakun inexiste a devida noção da tela, substituída por um excesso de “empastamento”. Bakun pintou paisagens dos arredores de Curitiba, com suas áraucárias e “capões” típicos e as casas de madeira dos imigrantes europeus. Assolado por problemas pessoais e pela ascensão do abstracionismo, Miguel Bakun se suicidou no seu ateliê de Curitiba em 1963, aos 53 anos.

Helena Kolody.
Foto UEM. Divulgaçã
o

Helena Kolody foi um contraponto suave ao torturado Bakun. Nasceu em Cruz Machado, no sul do Paraná, a 40km da Mallet de Bakun. Estudou piano e pintura, aos 16 anos publicou seu primeiro verso. Aos 20 iniciou sua carreira de professora do ensino médio. Entre 1949 e 2002 publicou 25 livros, a maioria de poesia. Morreu em 2004 aos 91 anos. Gostava de praticar o haicai, a forma poética minimalista de origem japonesa. Aliás, foi a primeira mulher a publicar haicais no Brasil, em 1941. Alguns exemplos:

• “Corrida no parque/o menino inválido/aplaude os atletas.”

• “O brilho da lâmpada/no interior da morada/empalidece as estrelas.”

• “A morte desgoverna a vida/hoje sou mais velha/que meu pai.”

Denise Stocklos
em cena. Foto
Manchete


Também do sul do Paraná, em Irati, descendente de ucranianos, vem Denise Stocklos, a maior coreógrafa e dançarina da atualidade. A apresentadora Angelica Ksyvickis também tem sangue ucraniano correndo em suas veias, assim como, coincidentemente, seu marido, Luciano Grostein Huck: seu avô materno nasceu em Dnipro, Ucrânia. Outra apresentadora de TV famosa, Eliana, também tem ascendência ucraniana, por parte de sua mãe, Eva, nascida em Irati, PR.

Em Curitiba – que conta hoje 70 mil descendentes de ucranianos  – nasceu Alexi Stival, que se tornaria conhecido como Cuca, o técnico que acaba de encerrar uma carreira vitoriosa como campeão do Brasileirão e da Copa do Brasil pelo Atlético mineiro. 

Manifestação. Reprodução
imagem RPC
O maior contingente de descendentes ucranianos se encontra no estado do Paraná, cerca de 500 mil. A maior proporção está na cidade de Prudentópolis, onde 75% da população de 52.776 habitantes tem ascendência ucraniana. Todos se manifestaram veementemente contra a invasão russa. Um prudentopolitano declarou à RPC, afiliada da Globo: “Os invasores, mais fortes, podem até nos massacrar fisicamente. Mas jamais conseguirão extinguir o espírito e o orgulho da Ucrânia!”

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

...e Clarice não virou lixo



por Gonça
Será o Verão da Clarice Lispector? Beth Goulart encena a peça "Simplesmente Clarice", monólogo adaptado sobre a vida e a obra da escritora; há uma exposição no CCBB; e, agora, o lançamento da biografia Clarice, (assim mesmo, com vírgula no título) do americano Benjamin Moser, editada pela Cosac Naify. Nos EUA, o livro foi lançado com o título Why This World (em português, Por Que Este Mundo) e tem recebido elogios da crítica. Moser se empenhou em cinco anos de pesquisa para relatar a vida de Clarice. Lendo recente matéria sobre este livro no Prosa & Verso, do Globo, lembrei-me de um breve contato que tive com a autora de A Hora da Estrela. Se não estou errando a data, foi em 1976, na revista Fatos & Fotos. Clarice Lispector entrou na redação no 7º andar do prédio da Manchete, na rua do Russell. Chegou com Adolpho Bloch. Um par de brasileiros nascidos, por acaso, na Ucrânia. Adolpho queria nos apresentar a escritora e dizer que, a partir daquela semana, ela seria colaboradora da revista para escrever crônicas, entrevistar personalidades, o que preferisse. À sua maneira - testemunhamos outros episódios semelhantes - Adolpho apoiava a amiga, que vivia dias difíceis. A visita durou poucos minutos, o suficiente para troca de telefones, combinar como enviaria os textos, como marcaria fotógrafo, quando entrevistasse alguém, pagamento etc. Se ninguém decifrou Clarice - Benjamin Moser bem que tenta isso em seu livro de mais de 6oo páginas - não seríamos nós da então jovem equipe da revista que o faríamos naqueles poucos minutos. Podemos dizer que conhecemos Clarice naquele fim de tarde, quase hora de sair para o "terceiro expediente" no bar do Novo Mundo? Não. Foi só um flash a mais na agitada redação de uma revista ilustrada.
Moser afirma no livro que Clarice Lispector foi incompreendida. O livro relata episódios que traduzem essa incompreensão. "Lixo, sim: lançamento inútil". Foi como definiu, em julho de 1974, a revista "Veja" o livro "A Via Crucis do Corpo", de Clarice Lispector. O "Jornal do Brasil", onde ela trabalhou, atacou: "teria sido melhor não publicar o livro, em vez de ser obrigada a se defender com esse falso desprezo por si própria como escritora". Por arrogância - essa deformação frequente da mídia -, puro moralismo ou para agradar aos poderosos de então, os críticos se incomodaram com o teor do livro, que consideraram pornográfico.
Clarice não viveu muito após aquela visita à Fatos & Fotos. Morreu em menos de um ano depois, em fins de 1977.
E, ao contrário do que prediziam a revista e o jornal, não virou lixo.