Por Roberto Muggiati
li.no.ti.po s. f. Tip.. Máquina que compõe e funde linhas em bloco, de uma liga de chumbo, estanho e antimônio, com o auxílio de matrizes reunidas mediante operação de um teclado.
Na semana passada, dois colunistas importantes se comoveram com as linotipos que, contracenando com Tom Hanks e Meryl Streep, os protagonistas de The Post, praticamente roubam a cena no filme de Spielberg. Na quinta-feira, 15, Luiz Fernando Veríssimo escreveu, na crônica Amores: “The Post é uma história de amor, o amor de jornalistas pelo jornalismo. Me comovi com os linotipos. A mudança da impressão quente para a fria foi radical.” No sábado, 17, foi a vez de Arnaldo Bloch, no artigo O linotipo de Spielberg: “Em The Post, a bicicleta voadora está no correr dos caracteres nas caixinhas alimentadas pelo linotipista, exibindo as palavras-chave do grande furo.”
Vou aderir à homenagem e evocar, dos meus primeiros tempos de jornalismo, a visão daqueles linotipistas heróicos sentados diante de suas máquinas e tendo ao seu lado um copo de leite, considerado um antídoto seguro contra as inalações do chumbo, em estado permanente de efervescância na gráfica.
Comecei a trabalhar em jornal aos dezesseis anos – precisamente no dia 15 de março de 1954, uma segunda-feira – na Gazeta do Povo de Curitiba, que ficava num casarão da Praça Carlos Gomes.
Cinco meses depois eu vivia as emoções de minha primeira edição extra, com o suicídio de Getúlio Vargas. Eu trabalhava na redação, no primeiro andar. Minha tarefa era colocar em português decente as notícias que chegavam do Rio. Ainda não tínhamos teletipo e os telegramas caíam literalmente do céu: um velho senhor tranca¬fiado num cubículo, a cabeça dobrada ao peso de enormes fones de ouvido, recebia os últimos despachos em código Morse e os traduzia datilografando numa velha Remington. Por coincidência, o telegrafista Vergès era um kardecista convicto e tudo aquilo me parecia uma operação espírita. Uma notícia típica da época podia dizer em bom telegrafês: “DEP FED DIX HUIT ROSADO AVIONOU MOSSOROH PARA ENCONTRO SUAS BASES ELEITORAIS.” Ou seja: “O deputado federal potiguar Dix-Huit Rosado Maia viajou de avião para Mossoró a fim de se encontrar com suas bases eleitorais.”
Num galpão ao lado do casarão, as fotos eram transformadas em clichés por um ex-soldado russo, Konstantin Tchernovaloff, que lutara na Guerra Civil de 1920 — não sei se nos brancos ou nos vermelhos — e parecia um cossaco diabólico em meio aos clarões do seu arco voltaico. Os clichês metálicos eram pregados depois em blocos de madeira da mesma espessura das linhas de tipo vomitadas pela Mergenthaler de 1m75 de altura. Um revisor, com a clássica pala verde na testa, ocupava um mezanino que era um purgatório entre a redação (no primeiro andar) e a oficina (no térreo), versão moderna do Inferno de Dante, envolvendo com seus vapores de chumbo a bateria de linotipistas disposta diante das páginas – que eram parafusadas em molduras de ferro como nos pasquins do Velho Oeste — e da prensa plana obsoleta que imprimia as nossas verdades absolutas de todo dia.
Obrigado, Spielberg, pela lembrança.